Autor original: Maria Eduarda Mattar
Seção original: Notícias exclusivas para a Rets
![]() | ![]() |
O governo Lula chegou ao poder com a promessa de investir e se concentrar nas áreas sociais mais do que os governos que o antecederam. As expectativas eram grandes, principalmente em função do histórico de reivindicações do Partido dos Trabalhadores, representado na figura de Lula.
Independentemente das críticas ao predomínio da política econômica sobre todas as demais e do desencanto de diversos setores com esta gestão, há alguns fatos dignos de registro, como a criação de secretarias – com status de ministério – de políticas para mulheres e de promoção da igualdade racial. Outra novidade foi a criação do Ministério do Desenvolvimento Social, para gerir o carro-chefe do governo, o programa Bolsa-Família, colocando o foco, assim, em outro tema de muita preocupação da sociedade civil: a fome.
Paralelamente, dois ministérios já existentes – e cujos temas são alvos tradicionais de militância da sociedade civil – têm recebido bastante atenção, por motivos quase opostos: a gestão do Ministério da Cultura – embora com um dos menores orçamentos dentre os ministérios – é elogiada pelo próprio setor cultural, ao passo que o Ministério do Meio Ambiente está sempre no meio do caminho entre as grandes obras de infra-estrutura e os movimentos ambientalistas de preservação ambiental. Mesmo tendo apoiado algumas leis polêmicas, o fato de ainda ter Marina Silva à frente guarda um certo simbolismo.
Nesta última edição de 2006, a Rets selecionou algumas áreas relevantes para os movimentos sociais – dois ministérios tradicionais e dois novos – para fazer um balanço junto a algumas lideranças da sociedade civil sobre a atuação do governo Lula.
Raça e etnia
Em relação às políticas de igualdade racial, o governo Lula foi bem avaliado por uma das mais importantes lideranças do movimento negro, o Frei David, diretor da ONG Educafro, voltada para a educação de jovens afro-descendentes. Para o religioso, os quatro anos passados são "um caso a ser estudado". "Tivemos grandes avanços em comparação aos últimos cinco séculos, e tudo isso com pouquíssimos investimentos", diz.
Frei David acredita que o maior mérito do governo Lula tenha sido o aumento da visibilidade dos africanos e afro-descendentes na educação nacional. Por isso destaca a publicação do decreto presidencial que torna obrigatório o ensino de história da África nas escolas de Ensino Médio e Fundamental. Segundo ele, o decreto, que depois se tornou a lei 10.639/2003, estimulou a publicação de diversos livros relacionados à história africana e a realização de debates sobre o tema.
Outro feito do governo, segundo Frei David, foi ter criado o Programa Universidade para Todos (ProUni), que concede bolsas a alunos carentes para que estudem em universidades particulares. Desde a primeira seleção, em 2005, o Prouni já beneficiou 200 mil estudantes; mais da metade deles, negra. "Cem mil afro-brasileiros entraram na universidade desde 2005. É mais do que o número de negros que já cursaram o Ensino Superior em toda a história brasileira", comemora o diretor da Educafro.
O próximo passo, prossegue, é garantir a todos os bolsistas cuja renda familiar per capita seja inferior a um salário mínimo o recebimento de ao menos uma ajuda de custo para financiar seus estudos. "Precisamos evitar que essas pessoas deixem a universidade por não terem dinheiro para pagar a passagem de ônibus", reclama.
Apesar dos elogios, Frei David lamenta a não aprovação, ainda no primeiro mandato, do Estatuto da Igualdade Racial. Ele está previsto no projeto de lei do Senado 3.198/2000 e estabelece uma série de medidas cujo objetivo é o empoderamento de afro-descendentes e o combate à discriminação racial no Brasil. Entre elas, a implementação de cotas para negros em empresas e no funcionalismo público. Segundo o religioso, o texto do Estatuto precisa sofrer apenas uma alteração. "Ele precisa ser determinativo, em vez de autorizativo", afirma. "Se for determinativo, a tradição cultural brasileira, que faz algumas leis 'pegarem' e outras não, será nula nesse caso".
Por sua vez, a historiadora Wania Santanna, da Articulação de Mulheres Negras do Brasil, acredita que a aprovação do Estatuto iniciaria "uma revolução". "A aprovação dessa lei deve ser prioritária", afirma. Apesar da torcida pela aprovação do texto, mesmo sem alterações, Wania diz não ter expectativas em relação ao próximo mandato de Lula e se diz incapaz de fazer uma avaliação do governo. Segundo ela, o Executivo pode fazer pouco para resolver o problema do racismo no país. "A solução está na sociedade, cujo nível de discussão sobre o racismo está muito à frente do Estado, que não está em condições de intervir", garante.
Cultura
A política cultural do governo Lula, capitaneada por Gilberto Gil, recebeu bastantes elogios. Tanto que o presidente Lula já o convidou a permanecer no cargo. E Gil anunciou nesta quinta, 21 de dezembro, que aceita. O ponto alto indicado tanto por Marta Porto, diretora da ONG X-Brasil, quanto por Leonardo Brant, do Instituto Pensarte, foi a perspectiva de cultura adotada pelo ministério. Para eles, Gil conseguiu implementar uma visão de que a pasta não deve apenas financiar produções artísticas, mas também estimular novidades.
A gestão de Gil teve alguns fatos notáveis: a aprovação do Plano Nacional de Cultura – promulgado em agosto de 2005 –, a realização da 1ª Conferência Nacional de Cultura – a exemplo do que já acontecia em outras áreas do governo – e a criação dos Pontos de Cultura. O Plano, documento-base para a operacionalização do Sistema Nacional de Cultura, ordena as responsabilidades e cooperações dos entes da federação com a sociedade civil. Uma conseqüência direta e já executada do Plano foi a Conferência, ocorrida nas esferas municipal, estadual e federal no período de setembro a dezembro de 2005. Segundo o site do MinC, participaram cerca de 60 mil pessoas.
Os Pontos de Cultura pretendem articular as diversas produções culturais locais, especialmente em comunidades pobres. Foram instalados em entidades que já trabalhavam nesse campo, aproveitando o esforço já realizado. Os Pontos de Cultura são o carro-chefe de um programa maior, o Cultura Viva, concebido como uma rede orgânica de criação e gestão cultural.
Outro acerto da gestão que se encerra foi ter emplacado o Ano do Brasil na França, na versão 2005 das Saisons Culturelles (Temporadas Culturais), promovidas anualmente no país europeu.
"O Ministério da Cultura acertou em 60% de suas ações, por isso o avalio positivamente. Do ponto de vista tático, foi muito bem. O Gil avançou muito, indo além das demandas dos artistas, para perceber os anseios da sociedade", diz Marta Porto. Segundo ela, foi a primeira vez desde a criação da pasta, em 1985, que o ministério deixou de apenas manejar os recursos de incentivo à produção cultural.
Para Brant, o cantor-político "reinventou o ministério". Segundo ele, na atual administração, o conceito de cultura foi ampliado e integrado ao discurso ministerial. "A inclusão de políticas de estímulo à diversidade e à propriedade intelectual e a instalação dos Pontos de Cultura foram fundamentais para isso", afirma.
Apesar dos elogios, ambos também revelam críticas ao desempenho da pasta. Elas estão concentradas no sistema de financiamento e incentivos fiscais, principalmente no que se refere à lei Rouanet – que permite a empresas abater até 4% de seu imposto de renda investindo em projetos culturais e movimentou R$ 700 milhões em 2005. "É preciso democratizar o uso desses recursos", defende Marta. "Falta controle social do que é feito com esse montante".
Segundo a diretora da X Brasil, que também já foi da Coordenação do Escritório da Organização das Nações Unidas para Educação, Cultura e Ciência (Unesco) no Rio de Janeiro, "está na hora de radicalizar uma política de mercado na área cultural". Ela defende o fortalecimento de uma noção de "cadeia produtiva" no momento de concessão de benefícios. Entre elas, a consideração de critérios como preço de ingresso, palcos e tempo em cartaz da produção na decisão de projetos a serem incentivados. Além disso, diz, é necessário implementar uma política de formação de platéias para dar a todos a chance de viver experiências culturais. Ou seja, articular parcerias entre as áreas de cultura e educação. Ela pede ainda a criação de parcerias com a iniciativa privada, fora da lei de incentivos, para haver mais recursos para a estrutura dos pontos de acesso à cultura.
Brant reforça outro argumento: a necessidade de melhorias na gestão do ministério. Segundo ele, a pasta não consegue atender a demanda de projetos e nem ao menos implementar tudo o que há em seu discurso. "Falta sistematização para dar conta desse trabalho todo", lamenta.
Outro desafio a ser enfrentado pelo Ministério da Cultura – desafio surgido há poucas semanas e perto do fim da atual gestão – é com relação à Lei de Incentivo ao Esporte, tal qual outra que já existe no campo da cultura. Artistas desaprovam, por achar que a nova lei pode "roubar" recursos que originalmente iriam para produções culturais, em função da facilidade de exposição de marca de empresas em atividades esportivas – ao contrário do que acontece nas atividades culturais. Gil, ao anunciar que permanece no ministério, já manifestou ao presidente um pedido de veto a parte da nova lei, aprovada pela Câmara dos Deputados no último dia 20.
Gênero
De acordo com o IBGE, existem 2.647.140 mulheres a mais do que homens no Brasil. No mercado de trabalho, elas também são maioria. As desigualdades de gênero, no entanto, são históricas. Elas ganham menos, são apenas 10% dos representantes no Congresso, não têm os mesmos direitos na Previdência Social e muitas vezes carregam a responsabilidade de educar sozinhas os filhos e as filhas.
A criação da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres pelo governo Lula foi um marco histórico na luta dos movimentos pelos direitos das mulheres. Alguns temas merecem destaque na atuação do governo Lula nesse campo. Entretanto o caminho a seguir ainda é longo e encontra muitas resistências na sociedade brasileira, historicamente patriarcal.
A proposta de revisão da legislação sobre a interrupção voluntária da gravidez foi entregue ao Congresso no dia 27 de setembro de 2005 e é considerada por entidades da sociedade civil o passo mais concreto do movimento rumo à descriminalização do aborto. Em 2006, ano eleitoral, o assunto ficou em banho-maria. Em 2007, não deve ser diferente. "Duvido que o Congresso tenha coragem de enfrentar essa questão em ano de visita do Papa ao país", analisa Sílvia Camurça, da Secretaria Executiva da Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB) e da organização não-governamental SOS Corpo.
Apesar disso, ela reconhece o feito como histórico. "Foi o único governo que instalou um grupo de trabalho e abriu as discussões com ampla participação da sociedade civil, da Igreja, de médicos e especialistas", defende. Para Sílvia, o segundo ponto que deve ser louvado do primeiro mandato do presidente Lula é o enfrentamento da violência contra a mulher. "A SPM abraçou a causa e a proposta feita pelos movimentos sociais, que culminou com a Lei de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, conhecida como Lei Maria da Penha", afirma.
A lei a que ela se refere foi sancionada em 7 de agosto de 2006. A norma chegou para tentar dar conta de números alarmantes: a cada cinco minutos, uma mulher é agredida dentro de casa no Brasil, segundo a pesquisa “A mulher brasileira nos espaços público e privado”, elaborada neste ano pela Fundação Perseu Abramo, através de seu Núcleo de Opinião Pública. O estudo reforça a idéia de que a violência doméstica é a modalidade mais comum no Brasil e, ao mesmo tempo, a mais difícil de identificar e punir, justamente por ser realizada em espaços privados.
O projeto que gerou a Lei Maria da Penha foi elaborado por um grupo interministerial a partir de um anteprojeto apresentado por organizações da sociedade civil. O objetivo é oferecer à sociedade uma estrutura que estimule e encoraje as mulheres a denunciar qualquer forma de violência, inclusive a psicológica. A nova legislação é considerada um marco, pois triplica a pena para agressões contra a mulher e aumenta mecanismos de proteção às vítimas, pois permite que agressores sejam presos em flagrante ou tenham a prisão preventiva decretada.
Segundo a representante da AMB, outro destaque da atuação do governo Lula no campo da defesa dos direitos das mulheres é a participação da sociedade civil no Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, com caráter representantivo.
No entanto uma questão que não teve a atenção devida do governo é a inclusão das mulheres na Previdência Social. "Nós ganhamos menos. Por causa da maternidade, estamos muito mais sujeitas à interrupção do trabalho e, se uma catadora morrer atropelada, por exemplo, seus filhos nem têm direito à pensão", critica Sílvia Camurça. Ela defende uma contribuição progressiva, para que as mulheres possam contribuir e ter os mesmos direitos dos homens. "A maioria das pessoas que estão fora da Previdência são mulheres. Eles [o governo] estão muito mais preocupados em arrecadar do que incluir. Essa é uma questão considerada perdida nesse governo", lamenta.
Meio ambiente
Área em que a expectativa era grande, a pasta do meio ambiente recebe mais críticas do que elogios. A expectativa em alta se justificava: havia sido escolhida para o Ministério do Meio Ambiente uma ambientalista de longa data e companheira de luta de Chico Mendes. Marina Silva, no entanto, conclui sua gestão sem grandes louros colhidos. Para Délcio Rodrigues, pesquisador associado ao Vitae Civilis e coordenador da Iniciativa Cidades Solares, entre os principais avanços no campo do meio ambiente está a melhor estruturação ambiental do governo. "Antes, no setor de licenciamento, por exemplo, eram todos consultores que, quando iam embora, levavam as informações", critica.
Ele lembra que, até o final do governo de Fernando Henrique Cardoso, a área de meio ambiente cuidava de parques e jardins. "Não tinha conexão com questões mais relevantes em outros ministérios", afirma. Neste mandato, segundo ele, o governo deixou mais a desejar pela falta de transversalidade. "E nas questões em que o Ministério do Meio Ambiente (MMA) resolveu se colocar, perdeu", diz.
Um dos exemplos foi no caso da legislação relativa a transgênicos, cujo debate começou em 2003. A ministra Marina Silva fincou pé na necessidade de mais pesquisas de impactos ambientais antes da liberação, mas o texto da Lei de Biossegurança que acabou sendo aprovado foi bem diferente do que o ministério defendia. Para Rodrigues, desde esse episódio – e desde que o MMA foi vencido quando se opôs à alteração da mistura do álcool e da gasolina nos combustíveis –, a ministra perdeu um pouco do seu brilho.
"Mas acho que isso não é a opinião da maioria dos ambientalistas. No final de 2003, todos achavam que ela devia sair porque estava perdendo tudo, mas acabou ficando, e todos reconheceram que a sua presença ajudou a evitar algumas loucuras do governo e também a importância da reestruturação que estava fazendo no ministério. Mas será que vale a pena perder grandes batalhas para reorganizar o exército?", questiona Rodrigues.
Um dos pontos que geraram muita polêmica destacado por Rodrigues é o licenciamento ambiental de obras. O próprio presidente Lula afirmou que o licenciamento é um entrave para a construção de novas hidrelétricas. "O MMA foi atacado por vários setores do governo por não deixar que as obras andassem, como se a questão ambiental fosse o único entrave. É evidente que existem outras questões burocráticas que atrasam a obra", diz.
A aprovação da Lei de Gestão de Florestas Públicas foi outro tema cercado de muita controvérsia. A norma prevê a concessão de até 13 milhões de florestas públicas, na próxima década, para a produção sustentável de madeira. O objetivo é aumentar a oferta de madeira legal. O receio é de que isso contribua para a temida privatização da Amazônia e, principalmente, para a falta de controle sobre as atividades exercidas em solo amazônico, já que estará sob cuidados privados.
Segundo Rodrigues, a idéia não é nova. "Há dez anos, os ambientalistas caíram em cima da proposta, e hoje há um racha entre eles. Eu acho que o projeto é ingênuo porque, se estabelecermos regras para que a produção não seja predatória, a madeira legalizada vai acabar custando mais caro", diz. Para ele, o aumento da fiscalização com o objetivo de diminuir a oferta de madeira ilegal é a saída mais eficaz.
No que se refere a outro bioma – a Mata Atlântica –, a novidade surgida neste governo foi menos polêmica. Depois de mais de 13 anos de tramitação no Congresso, o PL da Mata Atlântica foi aprovado. O texto prevê a criação de um fundo de restauração, a redução de impostos e a facilidade de acesso a linhas de crédito para proprietários de terras com áreas preservadas, entre outras coisas.
Para Marcelo Furtado, diretor de Campanhas do Greenpeace, esse foi, sem dúvida, um avanço, mas nem todas as questões essenciais foram abordadas. "O processo de votação deixou um esqueleto no ármário, que foi a questão das reservas legais. Isso pode afetar todas as florestas brasileiras, se incorporado à Constituição", alerta.
Outra novidade desta gestão, o Plano de Combate ao Desmatamento, segundo Rodrigues, tem seu mérito por envolver todos os ministérios e tentar remanejar recursos mais existentes. Mas não foi posto em prática. "Faltou que o meio ambiente fosse prioridade no governo", critica o representante do Vitae Civilis.
Um erro grave do Ministério do Meio Ambiente, segundo ele, foi não ter colocado na pauta o tema das mudanças climáticas. "O Ministério de Ciência e Tecnologia tem conduzido as discussões sem uma preocupação ambiental. Estão mais preocupados em criar condições para o mercado de carbono", denuncia. Furtado concorda: "Nunca tivemos um desafio tão grande quanto o que as mudanças climáticas estão impondo ao mundo. Essa questão está sendo ignorada pelo governo", critica.
Furtado lembra que existe uma diferença grande entre os programas de governo do primeiro e do segundo mandato. "No primeiro mandato, havia indicativos que nos fizeram acreditar que existiria uma posição do governo pelo desenvolvimento sustentável. Mas a prática mostrou que não era bem assim", disse. Segundo ele, a dimensão ambiental foi ficando menor ao longo dos quatro anos. "A agenda desenvolvimentista foi ampliada. No plano de governo do segundo mandato, pelo menos a pouca importância da questão ambiental está clara", lamenta Furtado.
Ele destaca a criação de 12 milhões de hectares de áreas protegidas como um dos pontos fortes da atuação do Ministério do Meio Ambiente. Mas acredita que não podemos comemorar avanços em apenas um setor. "É preciso que haja transversalidade. É preciso haver desenvolvimento com um compromisso forte com a sustentabilidade", defende.
Theme by Danetsoft and Danang Probo Sayekti inspired by Maksimer