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Chamada a cobrar

Autor original: Fausto Rêgo

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Chamada a cobrar
Kumi Naidoo | Foto: Nick Clarke
A Chamada Global para Ação contra a Pobreza foi criada em 2005, numa aliança internacional que hoje conta com a adesão de cerca de 200 organizações e movimentos sociais de mais de 70 países. O objetivo era pressionar governos de todos os continentes a trabalhar pelas populações mais pobres. Desde então, a iniciativa tem sido responsável por uma série de campanhas, como a que resultou em uma das maiores mobilizações populares de todos os tempos, que envolveu mundialmente mais de 23 milhões de pessoas para um ato de 24 horas de duração, no dia 15 de outubro. Para o sul-africano Kumi Naidoo, presidente da Chamada Global, esse é um esforço fundamental para cobrar a transparência das ações dos governos

Naidoo, que também é secretário-geral da Civicus, aliança que reúne mais de 500 organizações da sociedade civil, redes e cidadãos em cerca de cem países, é um ativista de longa data. Ainda adolescente, chegou a ser preso por lutar contra a política racista do apartheid. Solto, teve de atuar na clandestinidade e, mais adiante, precisou deixar o país, rumo à Inglaterra, onde fez doutorado em sociologia política. Só retornou à África do Sul após a libertação do líder negro Nelson Mandela, em 1990.

Nesta entrevista exclusiva concedida à Rets por correio eletrônico, Naidoo fala do esforço global de luta contra a pobreza, das dificuldades para que se cumpram os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio estabelecidos pelas Nações Unidas e, de maneira especial, da situação vivida hoje no continente africano – um dos mais afetados pelos males decorrentes da pobreza.

Rets - Você esteve preso na África do Sul por sua militância anti-apartheid, nos anos 80. Mais de dez anos após o fim da política de segregação racial, como analisa hoje as relações entre negros e brancos?

Kumi Naidoo - De certa forma, o fato de não termos conflitos violentos relacionados a divergências políticas é compreendido por muitos como um milagre, uma vez que vários analistas previam um banho de sangue, há 15 anos. No entanto é importante reconhecer que não é possível legislar contra o preconceito e que a verdadeira dimensão desse processo de reconciliação ainda é uma questão aberta. De toda forma, apesar do histórico da África do Sul, a relação entre cidadãos negros e brancos é positiva.

Rets - E quanto à situação da população negra, que teve direitos essenciais negados por tanto tempo?

Kumi Naidoo - A democracia ampliou a voz e deu mais participação nos processos públicos formais, coisas que o apartheid negava à maior parte da população. No entanto a contradição entre uma democracia política sem a necessária democracia econômica é o grande dilema que vivemos hoje na África do Sul. Enquanto uma pequena parte da população negra se beneficiou com cargos importantes nos setores público e privado, a distância entre ricos e pobres é crescente e insustentável. O papel das organizações da sociedade civil ainda é tão importante quanto no tempo da luta pela igualdade, mas o setor está cada vez mais frágil financeiramente, uma vez que os recursos que naquela época iam diretamente para as organizações não-governamentais agora seguem para o governo federal ou para os governos locais. Mesmo assim, não seria correto deixar de reconhecer que houve um progresso democrático. Tivemos progressos substanciais na igualdade de gênero, nos direitos de diversas minorias, incluindo pessoas com discapacidades e cidadãos e cidadãs homossexuais.

Rets - O continente africano tem sofrido com a extrema pobreza de grande parte de sua população, com a exploração de seus recursos e com os efeitos devastadores da epidemia de aids. A ajuda humanitária não parece suficiente e a cooperação internacional tem se mostrado incapaz de resolver esses problemas, que seguem aumentando. Como a África pode enfrentar o desafio da sua própria sobrevivência?

Kumi Naidoo - Os líderes africanos precisam distinguir as áreas do desenvolvimento que podem controlar sozinhos e aquelas para os quais precisam de um esforço maior e de caráter global. Enquanto a sociedade civil africana se mostra disposta a debater com seus governos questões como as mudanças climáticas, o comércio justo, o cancelamento da dívida e uma ajuda internacional maior e de melhor qualidade, muitos acreditam que os governos do continente africano deveriam fazer esforço maior em outras áreas para as quais também estariam capacitados.

Líderes políticos africanos não podem pôr a culpa nas injustiças do sistema global – e de fato existem muitas – por seu fracasso em promover o progresso em áreas como igualdade de gênero, direitos humanos, boa governança e desenvolvimento efetivo em necessidades básicas como educação, saúde e saneamento. A sobrevivência e o progresso da África dependem de uma compreensão mais profunda da nossa história e de como se pode superar esse antigo legado de desigualdade. Muitos de nós da sociedade civil disseram, no ano passado: se você quer fazer história para os mais pobres, precisa entender a história dos mais pobres. No que diz respeito às riquezas naturais, ao subsolo, a África é um dos mais ricos continentes. Mas, quando falamos do que está acima do solo, é um dos mais pobres.

Se a África pretende obter progresso genuíno nos próximos 20 anos, precisa investir mais em desenvolvimento humano. Hoje temos, no continente, países cuja trajetória foi determinada por diretrizes do período colonial que não necessariamente fazem algum sentido político, econômico, cultural ou social. A resposta a isso é que precisa haver maior comprometimento com uma abordagem mais unificada e integrada da idéia de desenvolvimento. Existem alguns debates importantes em curso neste momento. Por exemplo, a adoção de uma moeda única e o aumento do comércio entre os países do próprio continente, e essas iniciativas precisam ser seriamente exploradas. O modelo de desenvolvimento atual, claramente, não está funcionando e precisa ser repensado urgentemente.

Rets - Vocês tem como meta desenvolver uma agenda comum para as organizações da sociedade civil com vistas aos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODMs), traçados pela Organização das Nações Unidas (ONU). Mas e as pessoas comuns, aquelas que não estão envolvidas em nenhuma organização? Como é possível chamar a atenção delas para os ODMs, que aparentam ser muito mais uma questão de governos do que dos cidadãos?

Kumi Naidoo - Precisamos desfazer essa mentalidade de que o governo, por seus próprios meios, vai promover a igualdade e a cidadania.Somente quando a população está organizada é que ela e capaz de exigir suas próprias reivindicações, pressionar os governos e exigir transparência em suas atitudes. Temos apoiado integralmente a Chamada Global contra a Pobreza porque acreditamos profundamente que apenas uma sociedade organizada e bem informada poderá garantir que os governos cumpram e até superem os ODMs, que são, a bem da verdade, pouco ambiciosos.

Em 2005, a Chamada Global mobilizou cerca de 30 milhões de cidadãos paa pressionar governos, os países do G8 [grupo formado pelas nações mais poderosas do mundo] e órgãos intergovernamentais como a Organização Mundial do Comércio para assegurar que fossem cumpridas as metas acordadas e assumidos compromissos mais ambiciosos. Novamente, neste ano, por ocasião do Dia pela Erradicação da Pobreza, comemorado em 17 de outubro, 23,5 milhões de pessoas em todos os continentes participaram de uma ação chamada Levante-se contra a Pobreza. O editor-chefe do Livro Guinness de Recordes disse que foi a maior mobilização popular em um único dia jamais registrada pela publicação. Ampliar a voz e as oportunidades de participação dos pobres nas lutas pela superação da pobreza é a coisa certa a fazer, e esse é um esforço fundamental para cobrar transparência dos governos.

Rets - Ainda sobre os ODMs: acredita que o mundo conseguirá alcançar ao menos metade das metas previstas para 2015? E que objetivos estariam mais comprometidos?

Kumi Naidoo - Havendo vontade política por parte dos países desenvolvidos e em desenvolvimento, essas metas poderão ser cumpridas. Se tomarmos como exemplo a quantidade de dinheiro tão rapidamente mobilizada para o que o secretário-geral das Nações Unidas, Kofi Annan, chamou de guerra ilegal no Iraque, podemos ver que, quando há vontade política, por mais equivocada que seja, ações decisivas e urgentes podem ser tomadas e bilhões de dólares podem ser destinados.

Os ODMs estão longe de serem ideais, mas estabelecem para a sociedade civil um parâmetro de luta, uma vez que os governos assinaram termos de compromisso. Entretanto existe uma duplicidade. Os objetivos de 1 a 6 são responsabilidades dos países em desenvolvimento, que geralmente têm alvos e prazos muito mais claros. O objetivo 7, sobre sustentabilidade ambiental, é compartilhado entre os países do Norte e do Sul. E o objetivo 8, sobre as responsabilidades dos países desenvolvidos, não tem alvos ou prazos claramente definidos. Mesmo que os países em desenvolvimento fizessem tudo que estivesse a seu alcance para alcançar os ODMs, a menos que os países ricos assumissem suas responsabilidades no que diz respeito à quantidade e á qualidade da ajuda internacional, ao cancelamento da dívida e à adoção de um sistema de comércio justo, não seria possível alcançar os resultados necessários e urgentes para salvar as vidas das 50 mil pessoas que morrem diariamente por causas que poderiam ser prevenidas.

Rets - Quando a Chamada Global contra a Pobreza foi criada, há cerca de dois anos, a intenção era lutar pelo fim da dívidas das nações mais pobres, pelo aumento da cooperação internacional e pela ampliação dos esforços de cada país em relação aos ODMs. Que progressos foram obtidos até aqui nessas questões e quais as perspectivas?

Kumi Naidoo - Quanto à ajuda internacional, houve algum progresso, mas muitos problemas permanecem, como as duras contrapartidas que ainda são adotadas para a concessão desse auxílio.Se, por exemplo, todos os recursos prometidos pelo G8 fossem imediatamente acessíveis, distribuídos e aplicados efetivamente, poderíamos salvar cerca de 13 mil vidas por dia. No entanto os compromissos feitos pelo G8 dizem que os 50 bilhões de dólares oferecidos estarão disponíveis em 2010. Isso é como dizer que responderemos aos efeitos da tsunami cinco anos depois de ela ter acontecido.

Sobre o cancelamento da dívida, temos observado uma movimentação positiva, graças à perseverança e ao compromisso dos ativistas da campanha Jubileu Sul. A Chamada Global considera que o progresso obtido no ano passado foi "um pequeno e tardio passo na direção certa". Gostaríamos que mais países pudessem se beneficiar do cancelamento da dívida e que esse cancelamento não impusesse contrapartidas capazes de minar a soberania econômica dos países em desenvolvimento.

No que diz respeito ao comércio justo, área fundamental para um caminho sustentável de superação da pobreza, não houve progresso, devido aos estreitos interesses das nações mais ricas. Esses países não deveriam negar ao mundo em desenvolvimento o direito de usar certos instrumentos econômicos para se desenvolver, principalmente porque esses mesmos instrumentos foram utilizados pelos países desenvolvidos para que suas economias pudessem se tornar o que são hoje. A imoralidade dos enormes subsídios pagos a certos produtores dos países mais ricos é um deboche contra o livre comércio e sugere, lamentavelmente, que certos países têm idéias oportunistas sobre o conceito de livre comércio. Por essa razão, passou a ganhar corpo o movimento por um comércio justo, um ideal que ainda está longe de ser atingido.

Fausto Rêgo e Maria Eduarda Mattar


Tradução: Fausto Rêgo.

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