Você está aqui

Entre a cruz e a pistola

Autor original: Maria Eduarda Mattar

Seção original: Notícias exclusivas para a Rets






Entre a cruz e a pistola
Ilustração: Peter Kuper

Estão presentes em 92 comunidades cariocas, viraram assunto nacional e sua existência sublinha a ausência do Estado nas favelas do Rio de Janeiro. Ao aniquilarem o tráfico de drogas e seus crimes associados nos locais em que se instalam, trazem uma muitas vezes questionada sensação de segurança. Embutido no preço – literal – que os moradores das favelas pagam por esta segurança, vem um outro pagamento: convivência com um poder semelhante ao ditatorial, que restringe liberdades e limita privacidades.


Esta é a realidade para as pessoas que vivem em locais dominados pelas atualmente famosas mílicias – grupos armados formados por policiais militares, civis e bombeiros, que atuam supostamente fora do horário de trabalho para garantir a segurança de uma determinada comunidade, especialmente extinguindo o tráfico de drogas naquelas onde ele existia. Atuando sem legitimidade para combater traficantes, assaltantes, assassinos etc., as milícias se igualam àqueles que querem combater: ambas atividades estão à margem da lei.


No meio da lógica de guerra que se instalou entre traficantes que se sentem ameaçados e policiais duvidosos que contrariam as normas da corporação a que pertencem, tendo como espectador um Estado enfraquecido, estão as pessoas comuns, que sofrem amendrotadas as conseqüências dessa situação belicosa. “O que a população das favelas quer é segurança. As milícias chegam com o discurso da legitimidade da ordem e acabam tomando o local dos traficantes, que representavam medo, violência e instabilidade para os moradores das favelas”, explica Jailson de Souza, coordenador do Observatório de Favelas.


Com os ataques realizados por traficantes na madrugada do dia 28 de dezembro contra diversos postos policiais em diferentes bairros cariocas, as milílias ganharam notoriedade, apresentando para o país uma subcategoria que cresceu em silêncio, alimentada pela conivência de alguns setores da polícia. Os ataques partiram de traficantes, em protesto contra a presença das milícias em um número cada vez maior de comunidades. Resultaram na morte de 2 policiais e 16 civis, inclusive sete passageiros de um ônibus com destino ao Espírito Santo incendiado na Av. Brasil, uma das principais vias de acesso à cidade.


Os traficantes temem perder ainda mais espaço: segundo relatório de Subsecretaria de Inteligência do estado do Rio, citado em reportagem do jornal O Globo no dia 3 de janeiro, atualmente as milícias estão presentes em 92 das mais de 500 favelas cariocas. Segundo a mesma reportagem, nos últimos 20 meses, as milícias tomaram do tráfico uma favela a cada 12 dias.


O choque e a polêmica causados pelos ataques próximos ao Reveillón tiveram repercussão imediatos. Recém-empossado governador do estado do Rio, Sergio Cabral Filho assumiu o cargo já solicitando ao governo federal auxílio de militares para resolver a situação. O presidente Lula já falou em mudança na legislação para este tipo de crime e cerca de 7 mil homens da Força Nacional de Segurança. Além disso, nesta sexta-feira, 5 de janeiro, assinou medida provisória liberando R$ 154 milhões para a área de segurança do estado do Rio. Destes, R$ 19 milhões são para a criação de um centro de inteligência integrado, que proporcionaria melhor interação entre as polícias estaduais com as Forças Armadas.


Além disso, o novo governador recebeu no dia 4 de janeiro uma carta assinada por ONGs de direitos humanos e associações de vítimas da violência, pedindo audiência para discutir a segurança pública no estado. Segundo Iracilda Toledo, presidente da Associação de Familiares das Vítimas da Chacina de Vigário Geral, uma das entidades que assinam a carta, as entidades querem propor a Cabral que envolva o Ministério Público nas investigações. Além disso, querem mostrar o lado de quem lida mais diretamente com isso, vendo o outro lado da questão: o das pessoas atingidas pela situação. “Nós da sociedade civil precisamos ser ouvidos, pois nós é que sentimos as represálias”, informou Iracilda à Rets na quinta, dia 4. E completou: “Estamos aguardando marcarem a reunião”.


O dia-a-dia


Enquanto governantes preparam o estratagema para combater novos ataques de traficantes incomodados com as milícias, estas continuam ditando as regras para pessoas comuns. E o número não é pequeno. De acordo com o site Favela tem Memória, “hoje, o número de favelados representa quase 20% da população total do município do Rio”.


Patrícia de Oliveira, integrante da Associação de Familiares das Vítimas da Chacina da Candelária é uma dessas pessoas. Em função de seu trabalho, tem que visitar pessoas nas mais variadas comunidades. E relata a falta de privacidade enfrentada nas favelas controladas pelas milícias. “Recentemente tive que ir a uma comunidade na Praça Seca [Zona Oeste carioca] e logo na entrada um dos “seguranças” do local me pediu para revistar minha bolsa. Não permiti, mas acabaram me deixando passar. A mesma pessoa me acompanhou até a casa da pessoa que fui visitar, ficou na porta o tempo inteiro da minha visita, me esperou terminar e depois me acompanhou até a saída da favela”.


Patrícia reconhece que há quem concorde com a presença das milícias, mas relata conhecer muita gente que não está de acordo. “Pessoas pagam R$ 10 por semana, e comerciantes, R$ 15”, diz. Os valores pagos pelos moradores e comerciantes variam ligeiramente de acordo com o local. Uma pessoa que preferiu não se identificar com medo de represálias informou que, na favela Gardênia, Zona Oeste do Rio, comerciantes pagam uma taxa mensal e mais uma porcentagem sobre os lucros. A mesma fonte contou que na comunidade vizinha, a grande e famosa Cidade de Deus, onde há tráfico de drogas, já existe uma parcela dos moradores que querem a presença da milícias.


Jailson de Souza, que estuda a formação e dinâmica das favelas, explica os motivos. “As pessoas das favelas dominadas pelo tráfico convivem com traficantes que cobram taxas de comerciantes, do transporte alternativo, para a instalação ou execução de serviços (como fornecimento de gás e de TV a cabo), além de trazerem pro local um terror em função das guerras de facções. Ou seja, vivem em situação de instabilidade, medo e violência. A população só quer paz, segurança. As milícias chegam com o discurso da ordem e acabam tirando o poder do outro grupo”, conta o coordenador do Observatório de Favelas, que também é professor da Universidade Federal Fluminense.


Mesmo compreendendo a linha de raciocínio, Jailson não concorda com a presença e os métodos das milícias. “Implantam um regime paralimitar e ditatorial. Sim, porque ninguém pode ter dúvida de que aquilo é uma ditadura”, classifica. “Não se pode fazer festa, quando mandam ficar todo mundo em casa, tem que obedecer”, completa Patrícia.

Theme by Danetsoft and Danang Probo Sayekti inspired by Maksimer