Você está aqui

Patentes: a luta continua

Autor original: Marcelo Medeiros

Seção original:






Patentes: a luta continua
No fim de dezembro, a organização Médicos Sem Fronteiras (MSF) iniciou uma campanha que pede à farmacêutica Novartis o fim do processo que a empresa move contra o Estado indiano. A Novartis quer suprimir um artigo da legislação da Índia que permite ao país não conceder patentes a medicamentos em determinados casos. De acordo com o MSF, a Índia é uma importante fonte de remédios contra a aids e outras doenças que atingem países em desenvolvimento. Por isso, não pode deixar de fabricá-los, pois tal atitude tornaria caro demais o tratamento de diversas enfermidades. A legislação indiana não prevê obediência a algumas patentes, mesmo o país fazendo parte da Organização Mundial do Comércio (OMC), instituição cujo acordo de propriedade intelectual obriga a aceitação desses registros e o pagamento de royalties aos laboratórios.

Segundo o coordenador da campanha por medicamentos da MSF no Brasil, Michel Lotrowska, a batalha jurídica entre a Novartis e o governo da Índia é “emblemática” da disputa entre países ricos e pobres sobre o direito de quebrar patentes de remédios. “Hoje, existe realmente uma batalha mundial entre as empresas multinacionais dos países ricos - que querem que qualquer modificação de pequeno porte seja patenteada para que os mercados de produtos já existentes sejam consolidados sob a forma de monopólios e preços altos - e os países em desenvolvimento, com forte visão de saúde pública que acham que patente deve ser apenas concedida para reais inovações”, explica.

A MSF argumenta que, para garantir a validade de suas patentes, laboratórios fazem pequenas modificações nos medicamentos e requerem novo registro. Assim, uma simples adição de sabor ou mudança de formato que não altere o princípio ativo, daria direito à continuidade da cobrança de direitos autorais e do monopólio da produção. Para Lotrowska, a utilização desse princípio é uma ode à frivolidade e ao desrespeito à vida. "Uma vitória da Novartis significaria um passo em direção à patente única, à frivolidade das patentes, à concentração de produção entre algumas empresas apenas e preços altos para todos nós".

O coordenador da ONG lembra ainda que o sucesso do laboratório na Justiça indiana pode influenciar o programa brasileiro de combate à aids, por exemplo. Lotrowska acredita que uma decisão favorável à empresa abriria um precedente internacional contra a quebra de patentes e poderia dificultar a produção de genéricos por aqui.

Nesta entrevista, concedida por email, Michel Lotrowska explica a batalha entre a Novartis e a Índia e ainda mostra como uma decisão tomada por lá pode influenciar o resto do mundo.

Rets - O governo indiano está sendo processado pela Novartis por produzir medicamentos patenteados pela empresa. Quais as chances da Novartis ganhar o processo?

Michel Lotrowska - Na verdade, o processo não é contra o fato de produzir medicamentos e, sim, sobre um artigo específico da lei de patentes da Índia que permite que a Índia não conceda patentes em certos casos bem definidos. Hoje, existe realmente uma batalha mundial entre as empresas multinacionais dos países ricos - que querem que qualquer modificação de pequeno porte seja patenteada para que os mercados de produtos já existentes sejam consolidados sob a forma de monopólios e preços altos - e os países em desenvolvimento, com forte visão de saúde pública, que acham que patente deve ser apenas concedida para reais inovações. O caso da Novartis na Índia é emblemático desta batalha.

Rets - Quais seriam as conseqüências de uma vitória da empresa para o combate a doenças na Índia e nos demais países em desenvolvimento?

Michel Lotrowska - Uma vitória da empresa seria muito ruim para os pacientes não só da Índia, como dos outros países em desenvolvimento do mundo. O artigo criticado e atacado pela Novartis é um que impede a concessão de patentes para pequenas modificações de substâncias já conhecidas e que já tiveram o privilégio da proteção por patentes. Isso permite à sociedade civil e às empresas de genéricos indianas entrarem com pedido de oposição à concessão de patente, evitando assim que patentes frívolas sejam concedidas.

Desta forma, é possível que versões genéricas sejam produzidas, permitindo a concorrência e a redução dos preços, podendo aumentar o acesso.

Vários casos de oposição a patentes já conseguiram, inclusive, convencer empresas mutlinacionais a retirarem o pedido de patente (pois sabiam que a patente ia ser recusada) e não queriam um vexame. Uma vitória da Novartis significaria um passo em direção à patente única, à frivolidade das patentes, à concentração de produção entre algumas empresas apenas e preços altos para todos nós.

Rets - O Brasil poderia ser afetado por uma vitória da empresa? Por quê?

Michel Lotrowska - Claro que sim. Apesar de o Brasil não ter uma legislação tão favorável à saúde pública no campo das patentes, ele permite um subsídio ao exame de patente e já tem dois subsídios ao exame para medicamentos de aids entregues ao INPI [Instituto Nacional de Propriedade Intelectual] para análise por parte de Farmanguinhos [laboratório estatal pertencente à Fundação Oswaldo Cruz] e também da sociedade civil organizada (para o Tenofovir e uma segunda patente para o Kaletra [dois medicamentos utilizados no combate à Aids]).

Também, a anuência prévia da Anvisa é um sistema de análise de patente de medicamentos que considera a inovação a partir de um ponto de vista muito estrito, o que é contundente com uma visão de saúde pública e de um país consumidor de tecnologia.

Isso é possível porque o Acordo Trips [sigla em inglês para Acordo Relativo aos Aspectos do Direito da Propriedade Intelectual Relacionados com o Comércio, firmado no âmbito da OMC] permite uma interpretação nacional dos critérios de patentabilidade.

Uma vitória da Novartis poderia abrir um precedente negativo, que significaria em parte a padronização dos critérios de patentabilidade, e isso seria muito ruim - inclusive para o Brasil - já que existem tantas críticas por parte das empresas em relação ao papel da Anvisa no âmbito da análise dos pedidos de patentes farmacêuticas. Além do mais, muitas matérias-primas de medicamentos são produzidas na Índia e exportadas para o Brasil. Quanto menos possibilidade de produção de matéria-prima na Índia, menos possibilidade de produção de produtos finalizados no Brasil também.

Rets - No fim de dezembro, os MSF lançaram uma campanha pedindo que a Novartis cancele o processo. Como a empresa reagiu à mobilização?

Michel Lotrowska - A Novartis está conversando com a gente sobre esta campanha e tem um certo medo que ações de comunicação estejam acontecendo. Nenhuma empresa gosta de ver seu nome citado negativamente pela maior organização médica humanitária do mundo. Não sei até onde isso irá, mas a petição está rendendo muitos adeptos e até agora está sendo um sucesso.

Rets - A Novartis afirma que está pedindo que a Índia cumpra o Acordo Trips, assinado na Rodada de Doha da Organização Mundial do Comércio (OMC). Tendo assinado o acordo, o governo indiano tem direito a autorizar a fabricação de genéricos sem o pagamento de royalties?

Michel Lotrowska - Primeiro, gostaria de esclarecer que o Acordo Trips foi assinado em 1994, durante e Rodada Uruguai do Gatt (Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio). Em 2001, em Doha, Qatar, foi assinada a “Declaração de Doha sobre o Acordo Trips e Saúde Pública”, que garante aos países membros da OMC o direito de proteger a saúde pública por meio do uso de flexibilidades, onde inclui a licença compulsória e, no presente caso, a possibilidade de interpretação dos requisitos de patenteabilidade de forma a proteger a saúde pública.

A Novartis está interpretando o Acordo Trips da forma que ela acha que deve ser interpretada. Por outro lado, a MSF acredita que o governo da Índia está em perfeita harmonia com os acordos internacionais, incluindo o acordo Trips e a Declaração de Doha. Obviamente, alguns governos de países ricos - que representam os interesses das suas multinacionais - têm uma outra interpretação deste acordo, mas ela é contestada por vários juristas e especialistas.

Quando os requisitos de patenteabilidade forem atendidos, segundo o que ficar estabelecido na lei indiana, a patente será concedida no país e poderá haver pagamento de royalties. Quando não forem, a patente não será concedia e certamente não haverá nenhuma necessidade de pagamento de royalties a ninguém.

Rets - A Novartis afirma que fornece alguns dos medicamentos em questão (o Glivec, por exemplo) gratuitamente para a parcela mais pobre da população indiana (99% dos consumidores) e que por isso não há por que outros laboratórios copiarem sua fórmula. Até que ponto esse argumento é válido?

Michel Lotrowska - Primeiramente, ninguém sabe realmente se as doações estão cobrindo 99% dos pacientes que necessitam do medicamento. E mesmo que fosse o caso de cobrir 99% dos casos, será que a Novartis está sugerindo que cada vez que uma patente é concedida na Índia, ela vai fornecer o medicamento de graça para 99% dos pacientes neste país?

Muitas vezes, as multinacionais preferem colocar um preço alto para o medicamento e associá-lo a um programa de doação. Doações não são sustentáveis, mesmo que sejam bem-vindas em alguns casos. A diferença de preço entre um genérico e um medicamento de marca original sob patente pode chegar a 99% (caso da triterapia de primeira linha -forma de tratamento da aids). Ou seja, haja programas de doação para compensar essas margens!

O mais importante desta questão é que o pedido de patente para o Glivec na Índia não foi considerado uma invenção patenteável e, por isso, não se justifica a concessão da patente. Se fosse de fato uma invenção, a patente seria concedida no país.

Rets - Segundo a empresa, "o melhor caminho para encorajar a inovação é o respeito à propriedade intelectual". Os MSF concordam com isso?

Michel Lotrowska - Querer polarizar a discussão entre respeitar e não respeitar a propriedade intelectual é uma simplificação que já está muito ultrapassada. A propriedade intelectual associada a preços altos para financiar a inovação não é a panacéia para estimular a inovação nos países em desenvolvimento.

Existem vários estudos internacionais recentes que mostram e provam que o sistema atual de patente não entrega os medicamentos necessários para os pacientes dos países em desenvolvimento. O estudo recente da Comissão da OMS [Organização Mundial de Saúde] sobre Propriedade Intelectual, Inovação e Saúde mostrou isso de forma clara. Outros mecanismos precisam ser inventados para suprir as falhas das patentes.

Um inquérito publicado em abril de 2005 pela “La Revue Prescrire” [publicação de uma ONG francesa de mesmo nome, voltada para assuntos médicos e humanitários], concluiu que 68% dos 3.096 novos produtos aprovados na França entre 1981 e 2004 não trouxeram “nada de novo” em relação às preparações previamente disponíveis. De forma similar, a revista científica British Medical Journal publicou um estudo que demonstrava que nem 5% de todos os medicamentos recentemente patenteados no Canadá podem ser considerados reais inovações. Além disso, uma análise detalhada de uma centena de novos medicamentos aprovados pela agência dos Estados Unidos Food and Drug Administration (FDA) entre 1989 e 2000 revelou que 75% dos mesmos não apresentavam benefício terapêutico em relação aos produtos já existentes.

Isso decorre principalmente de uma prática recorrente das empresas farmacêuticas de obterem patentes sobre pequenas modificações de medicamentos já previamente protegidos, no intuito de estender o monopólio, preservar o domínio sobre os mercados dos respectivos produtos e, conseqüentemente, ter o poder para estabelecer altos preços para os pacientes/consumidores, governos ou instituições que garantem acesso a medicamentos.

O respeito à propriedade intelectual não significa patentear qualquer coisa para agradar às empresas, e alguns governos dos países em desenvolvimento estão se conscientizado disso, assim como os grupos de pacientes que querem viver e ter acesso aos medicamentos que podem salvar suas vidas.

Marcelo Medeiros

Theme by Danetsoft and Danang Probo Sayekti inspired by Maksimer