Você está aqui

É hora de aplicar o ECA

Autor original: Fausto Rêgo

Seção original: Artigos de opinião






É hora de aplicar o ECA

José Fernando da Silva*

A construção de uma cultura de paz é uma tarefa que necessariamente deve envolver a participação co-responsável da sociedade civil e do poder público (executivo, legislativo, judiciário e Ministério Público) nos níveis federal, estadual e municipal. Também é algo que não se realizará em uma geração. É, certamente, um processo histórico permanente, no qual a qualidade da informação produzida e disseminada e o conhecimento da realidade são insumos imprescindíveis que alimentam a disputa de idéias, a elaboração de políticas e a efetivação de direitos humanos.

A interpretação e a aplicação correta da legislação são condições para a construção de uma sociedade sem violência. Esta é uma das bases da promoção, da proteção e da defesa dos direitos inerentes à pessoa humana. Estas breves considerações visam, em primeiro lugar, a situar o debate recorrente na sociedade brasileira sobre fatos que envolvem adolescentes em atos violentos, discussão muitas vezes alimentada pela mídia.

Um exemplo é o lamentável fato que tirou a vida de Ana Cristina Giannini Johannpeter no Rio de Janeiro. O acontecimento provocou, imediatamente, o debate sobre a redução da maioridade penal ou o aumento do tempo de privação da liberdade de adolescentes. Segundo informações divulgadas em diversos meios de comunicação, o assassinato, praticado provavelmente por um adulto, estaria sendo assumindo por seu irmão, um adolescente de 17 anos. Pronto, o cenário mais uma vez estava traçado para uma nova campanha por maior rigor no marco legal brasileiro. Editoriais e manchetes foram publicados com forte conteúdo contrário ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), entre as quais “A lei a serviço do crime” e “Hora de rever o ECA”. Nesta situação, e em tantas outras, a cobertura jornalística não contribui para informar com precisão os diversos aspectos que envolvem um acontecimento trágico. Há, sim, a pressa em condenar um suposto acusado e, por conseqüência, um terceiro – o adolescente irmão daquele – que diz ter sido ele o autor do disparo. A sentença condenatória, mais uma vez, foi dada pelos meios de comunicação, quando esta é competência única e exclusivamente do poder judiciário.

Infelizmente não é só a mídia a responsável pela defesa no endurecimento das medidas que devem ser aplicadas no enfrentamento da violência. Políticos também insistem na tese, com o fez recentemente o governador José Serra, em reunião com os chefes dos executivos estaduais de Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro e Espírito Santo, quando propôs o aumento da privação da liberdade de adolescentes para até dez anos, e não três como determina a legislação em vigor.

É preciso afirmar que a fixação da maioridade penal aos 18 anos no artigo 228 da Constituição Federal não foi – e nem é – uma arbitrariedade do legislador brasileiro. Foi, sim, um reconhecimento amplo de que crianças (até 11 anos) e adolescentes (12 a 18 anos) são pessoas em condições especiais de desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social (artigo 3º do Estatuto). A lei, ao contrário do senso comum alimentado por boa parte da cobertura da mídia, não é benevolente e nem alimenta a impunidade. Ela faz uma distinção entre o ato infracional praticado por crianças (artigo 105 do ECA), que recebem as medidas protetivas definidas no artigo 101. Aos adolescentes estabelece tanto as medidas protetivas quanto as sócio-educativas (artigo 112), que vão da advertência à privação da liberdade, um dos direitos humanos fundamentais. Portanto todos devem responder pelos atos praticados, sendo que para crianças não existe – o que é plenamente coerente com a definição do artigo 3º já citado – a privação da liberdade e nem as demais medidas sócio-educativas.

Aos adolescentes, a legislação nacional é precisa ao prever responsabilidade pelos atos infracionais, definidos como “a conduta descrita como crime ou contravenção penal”. Aqui é importante deixar evidenciado que o Estatuto da Criança e do Adolescente não é uma lei que deixa impune a falta do jovem. Ao contrário, a depender do ato infracional, o juiz da infância e adolescência – e somente ele – poderá determinar a privação de liberdade, com duração máxima de até três anos. Aqui outra crítica ganha espaço na cobertura da mídia: aumentar o tempo de internação, fazendo paralelo com o sistema para adultos, cuja duração da pena máxima pode ser de até 30 anos.

Duas questões centrais se colocam. A primeira, a relação com a redução da maioridade penal de 16 ou 14 anos, como prevêem algumas propostas, o que faria com que esses adolescentes fossem colocados no sistema penitenciário para adultos. Ora, é consenso nacional que o modelo prisional brasileiro não tem sido capaz de dar a resposta necessária à ressocialização dos presos. Defende-se para adolescentes o que não queremos para os adultos: um sistema falido. Só para se ter uma idéia, dados do Ministério da Justiça revelam que o total de detentos, em 2005, chegava a 296.919 pessoas. É a barbárie!

A segunda questão é que o tempo de internação (três anos), na compreensão de muitos, é pequeno. Aqui são importantes duas observações. De um lado, qual o sentido da medida sócio-educativa? É justamente possibilitar ao adolescente infrator que tenha durante o tempo da internação as condições (mesmo privado da sua liberdade) de alimentação, higiene, educação, atividades físicas, educativas e de aprendizado e defesa jurídica coerentes que o possibilitem voltar ao convívio da sua família e da comunidade. Do outro, não é verdade que três anos seja um tempo curto. Ora, a duração da adolescência do ponto de vista legal (e considerando aspectos sociais, psicológicos etc.) vai dos 12 aos 18 anos. Portanto três anos são praticamente 45% da sua existência.

Outro argumento amplamente utilizado é de que atualmente os adolescentes são mais informados e já podem votar a partir dos 16 anos. Aqui entra a confusão entre ser mais informado, ter conhecimento e capacidade de discernimento sobre o que é certo ou errado. Só para ser ter uma idéia, dados de 2002 do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e da Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH) revelam que 90% dos adolescentes privados de liberdade têm Ensino Fundamental incompleto. Contudo estão numa faixa etária compatível com o Ensino Médio. Explicando melhor: estão numa fase de ensino em que a idade não corresponde. O voto aos 16 anos não é obrigatório. É, sim, o início da participação política para contribuir com o exercício responsável e a formação da cidadania.

E agora, o que continuar fazendo? Em primeiro lugar, investir na qualificação das pessoas, com conteúdo para uma formação humanista, em que a privação da liberdade seja compreendida e realizada na perspectiva da reintegração do jovem à sua família e à comunidade. Que as Unidades de Internação sejam construídas em conformidade com a Resolução de nº 46/1996 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), que estabelece que em cada uma haverá no máximo 40 internos. Nestas os adolescentes deverão ser separados rigorosamente por idade, compleição física e gravidade da infração (art. 123 do Estatuto). Que as medidas em meio aberto (prestação de serviço à comunidade e a semiliberdade) sejam municipalizadas, pois, segundo a Secretaria Especial de Direitos Humanos, 60% das capitais brasileiras ainda não desenvolvem estas medidas. A municipalização é uma exigência do Estatuto e uma das principais prioridades do Sistema Nacional de Atendimento Sócio-Educativo (Sinase), política pública aprovada pelo Conanda. É preciso entender que a lei (o ECA) só sairá do papel com a co-responsabilidade da família, da sociedade e do Estado. Estes devem construir a cultura de paz para a promoção, proteção e defesa dos direitos humanos de todas as pessoas.

Por fim, que os mandatos iniciados em 2007, dos executivos e dos parlamentos federal e estadual, alimentem a esperança e estejam a serviço da luta política em prol do cumprimento integral da legislação, com o total respeito aos direitos humanos. Este respeito não será alcançado com endurecimento das medidas relativas à diminuição da violência. Será, sim, com a correta e plena aplicação da legislação (para a impunidade, a lei!) e com um orçamento público nacional compatível com a concretude da garantia dos direitos humanos para todas as pessoas.

* José Fernando da Silva é licenciado em História pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap). Foi presidente do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) no período 2005-2006, representando a Associação Brasileira de Organizações Não-Governamentais (Abong), e é integrante da Coordenação Colegiada do Centro de Cultura Luiz Freire (CCLF).





A Rets não se responsabiliza pelos conceitos e opiniões emitidos nos artigos assinados.

Theme by Danetsoft and Danang Probo Sayekti inspired by Maksimer