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Água: uma década de lei

Autor original: Luísa Gockel

Seção original: Notícias exclusivas para a Rets






Água: uma década de lei
Imagem: Adam Hart-Davis
A Lei nº 9.433, conhecida como Lei das Águas, completa 10 anos em 2007, trazendo alguns avanços no campo do gerenciamento dos recursos hídricos nacionais. Um deles foi a elaboração, com forte participação da sociedade civil brasileira, do Plano Nacional de Recursos Hídricos (PNRH), aprovado em janeiro do ano passado. Paralelamente a isso, a recente sanção da Lei do Saneamento Básico, que institui um marco regulatório para o setor no país, também trouxe um novo ânimo para ambientalistas e para a sociedade civil organizada. Apesar dos avanços, o caminho a ser percorrido rumo à utilização sustentável e democrática da água é longo e impõe inúmeros desafios à sociedade brasileira. E o principal deles é tirar a lei do papel.

O Brasil possui a maior reserva de água doce do planeta, mas 70% dos seus rios sofrem com a contaminação pelo esgoto despejado sem tratamento. Este quadro preocupante, no entanto, começa aos poucos a mudar. Para reverter o panorama atual de degradação e promover a utilização sustentável dos recursos hídricos, é preciso que a sociedade brasileira, organizada ou não, comece a olhar com mais atenção para mananciais, rios e bacias. Para isso, a Lei das Águas tem como um de seus pilares o intenso envolvimento de entidades da sociedade civil na gestão das águas. Foram criados mais de 130 Comitês de Bacia - advento da Lei das Águas, os comitês são o fórum específico para a participação da sociedade - em todo o Brasil, além de 22 Conselhos Estaduais de Recursos Hídricos. A partir da instituição da Lei, a legislação brasileira relacionada ao assunto passou a ser considerada uma das mais adiantadas no planejamento do uso dos recursos hídricos. Além disso, a partir do ano passado o Brasil se tornou o primeiro país da América Latina e Caribe a ter seu Plano Nacional de Recursos Hídricos, atendendo assim à recomendação das Nações Unidas. Para o coordenador do Programa Pantanal para Sempre do WWF, Michael Becker, é possível fazer um balanço positivo da Lei das Águas. “A norma é bastante avançada e tem muitos pontos que representam um padrão mundial. Ela traz novidades como a questão do valor econômico da água, o que dá uma direção muito boa para a gestão dos recursos hídricos no país”, afirma.

Becker admite, no entanto, que o processo de implementação da Lei é o maior desafio. “É um processo demorado e o Brasil, com as suas dimensões continentais, tem um desafio muito grande para vencer, pois tem ofertas de água muito distintas dentro de uma visão nacional”, avalia o coordenador. Para ele, a Lei está muito bem formulada e não é hora de pensar em reformular alguns pontos mais deficitários. “Eu sou a favor de investirem mais esforços na implementação da lei, no licenciamento, na cobrança pelo uso, na outorga, num sistema nacional eficiente de recursos hídricos. Acredito que estes sejam os pontos que exigem o maior investimento de conhecimento e energia”, defende.

Para a diretora do Instituto Ipanema e representante do Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais, Ninon Machado, a lei precisa de alguns aperfeiçoamentos, inclusive para rever certas distorções de representação. “Por exemplo, o Comitê de Bacia que é um órgão de Estado, a base do sistema nacional de gerenciamento de recursos hídricos, está na lista dos integrantes do Conselho Nacional de Recursos Hídricos (CNRH) como sociedade civil. Segundo ela, além disso, a composição do CNRH tem maioria do governo federal. “O que faz com que o Conselho seja de fato um coletivo federal, e não um órgão de Estado”, critica.

Ela admite, no entanto, que há avanços proporcionados pela Lei das Águas. “Se tivesse que dar uma nota, daria 7,5. Há muitos pontos positivos que estão no contexto da Lei das Águas, entre ele, o princípio da gestão participativa, descentralizada e compartilhada pelos segmentos do governo, usuários e sociedade civil”, pondera Ninon. Ela destaca ainda, como um resultado prático da lei e das resoluções dos Comitês de Bacia, a implantação da cobrança pelo uso da água em duas bacias federais: do Paraíba do Sul e de Piracicaba, Capivari e Jundiaí - a primeira sendo fornecedora de água para a cidade do Rio de Janeiro e a segunda, para a cidade de São Paulo.

Ninon Machado lembra que o Brasil ocupa uma posição única dentro do cenário internacional em função de suas águas. É um país que compartilha 74 bacias com seus vizinhos sem qualquer dificuldade entre eles. “Isto é um fato único no mundo”, comemora Ninon. “Temos o Sistema Aqüífero Guarani compartilhado entre Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai, onde há um comitê gestor com unidades nacionais e ONGs brasileiras”, comenta. Ela acredita que o Brasil já avançou bastante e concorda que o país é referência mundial de aplicação da gestão integrada de recursos hídricos. “Tratamos a água em relação a florestas, biodiversidade, assentamentos humanos, gestão do solo e clima tendo ainda uma preocupação de aplicar o equilíbrio entre gêneros e atender às Metas do Milênio sobre acesso à água e saneamento”, comemora.

Em relação à participação da sociedade civil através dos comitês, ela comenta que nem todos têm sido atuantes. “O que hoje estamos fazendo no CNRH é estabelecer indicadores de desempenho para avaliar a atuação dos conselhos estaduais. A simples criação não diz nada e sabemos que há situações pouco adequadas em alguns comitês”, avalia. “Existem comitês estaduais que não têm a participação da sociedade civil e, se têm, não são ONGs, mas outros segmentos da sociedade civil”, critica Ninon. Segundo ela, a governança compartilhada exige que as ONGs sejam devidamente capacitadas e com legitimidade de representação.

O coordenador do Movimento Grito das Águas, Leonardo Moreli, é mais duro ao criticar o desempenho dos Comitês. “O Brasil é um país de muitas leis e quase nenhuma justiça. A lei das águas ainda está muito na esfera da burocracia estatal. Os Comitês de Bacia – em sua grande maioria – são chapa-branca e não mobilizam efetivamente a população para a preservação da água como elemento fundamental. Não só ao meio ambiente, mas à garantia de saúde pública e soberania dos povos”, critica.

Para Moreli, o número de 130 Comitês de Bacia não impressiona. “Estamos num país continental e todo ligado de forma hidrográfica. Esse número é tímido para um país com as dimensões e importância estratégica do Brasil”, rebate. Ele critica a atuação dos Comitês, afirmando que apenas referendam políticas governamentais e empresariais. Além disso, chama a atenção para o fato de a sociedade brasileira ser pouco informada em relação à atuação desses órgãos.

Ele é categórico ao afirmar que não há mais tempo a ser perdido. E defende a necessidade de o processo de implementação da Lei das Águas ser mais dinâmico. “Os avanços ainda estão limitados ao campo institucional e, nos demais, é um processo lento. Não sei se teremos tempo para esperar. A cada ano, mais rios são contaminados, a reserva do Aqüífero Guarani está desprotegida de controle social enquanto as multinacionais se apropriam”, alerta.

Daqui para frente, segundo Ninon Machado, vários desafios se colocam. Um deles é a implementação do Plano Nacional, cuja estratégia acaba de ser aprovada pelo Conselho. “Sem dúvida esse passo dirá o que precisamos mudar na lei 9.433 e o tempo necessário para isso”, diz ela. Além disso, a presidente do Instituto Ipanema destaca a necessidade do efetivo fortalecimento das ONGs em todo o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos para que possa realmente refletir as aspirações contidas nos princípios da lei.

Outro ponto para o qual a representante do Fórum Brasileiro de ONGs chama a atenção é a necessidade de interligação entre políticas públicas axiais. “O Ministério do Planejamento e os demais que tomam conta do dinheiro precisam raciocinar de modo sustentável, e não seguindo déficits primários, enquanto o povo lota os hospitais com doenças de veiculação hídrica”, critica.

O coordenador do WWF concorda que existe um grande desafio de integrar a questão dos recursos hídricos às outras modalidades, como transporte, saúde e infra-estrutura. “Pelo fato de a questão dos recursos hídricos permear vários setores, existe uma dificuldade de integração. O exemplo clássico é o caso da saúde e outro exemplo é a agricultura. Se a agricultura não cuidar bem de seus recursos hídricos, sendo um dos maiores consumidores, também terá a maior perda de solo, que acarretará numa perda substancial de valor”, avalia Michael Becker.

O secretário de Recursos Hídricos do Ministério do Meio Ambiente (MMA), João Bosco Senra, acredita que o governo federal e o MMA têm feito esforços para amenizar essa situação. “Temos procurado integrar os órgãos na formulação e implementação dessas políticas e acho que estamos avançando. O Plano Nacional de Águas teve a participação de milhares de pessoas por todo o país e na esfera do governo federal não foi diferente. E é um desafio para 2007 avançar ainda mais na incorporação do Plano Nacional nas agendas dos demais órgãos do governo”, afirmou Senra em entrevista à Rets.

Ele ressalta ainda que, por causa de suas dimensões, o Brasil apresenta realidades muito diversas ao longo de seu território. “Existe uma realidade no Amazonas que é diferente do Nordeste, e a teoria precisa se adequar. Mas o que precisa ser melhorado é pouco em relação aos benefícios trazidos pela implementação e as resoluções dos seus Conselhos”, acredita Senra. Michael Becker concorda: “Regionalmente, o Brasil é muito diferente. Onde há uma indústria muito mais forte, há uma influência maior do setor privado. Mas os Comitês de Bacia abrem uma possibilidade de discussão, de a sociedade civil se articular e mostrar alternativas de desenvolvimento para determinada região”, avalia o coordenador.

Além da implementação da Lei das Águas, o secretário de Recursos Hídricos chama a atenção para a importância da sanção da Lei de Saneamento. Segundo ele, com esse marco regulatório, é possível avançar mais na preservação de nossos recursos hídricos. Além da garantia de um melhor abastecimento e coleta de esgoto mais ampla para a população. De uma maneira geral, Senra avalia positivamente os esforços que vêm sendo realizados para o gerenciamento dos recursos hídricos brasileiros. “Hoje temos mais de 10 mil pessoas envolvidas diretamente no processo de gestão das águas do país. Mas há algumas questões que ainda precisam ser melhoradas, como é natural em qualquer processo de aperfeiçoamento”, diz.

“É importante o envolvimento de toda a sociedade para que os resultados não sejam muito demorados. As águas de um país, a presença de nascentes é um grande diferencial que pode contribuir muito para o desenvolvimento, mas sempre de forma sustentável, sem prejuízos para as gerações futuras”, diz Senra. Moreli concorda: “O desafio do século 21 será a garantia de paz e sustentabilidade e isso só se consegue com integração e interação”, defende o coordenador do Movimento Grito das Águas.

Moreli reitera, no entanto, o seu ceticismo em relação aos avanços na esfera do governo federal. E defende um envolvimento cada vez maior e mais genuíno das pessoas na gestão das águas no país. “Se avaliarmos as políticas públicas até agora desenvolvidas, vamos ver que elas estão falhando em todos os quesitos e isso impede que certifiquemos sua qualidade. Para que existam políticas públicas efetivamente sustentáveis, precisamos ampliar e radicalizar a conquista do controle social sobre elas. Para isso precisamos ampliar o nível de informação e consciência das pessoas, afinal só se preserva o que se ama e só se ama o que se conhece”, conclui.

Luísa Gockel

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