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Notícias de uma guerra particular: mortes de jornalistas em 2006

Autor original: Marcelo Medeiros

Seção original: Notícias exclusivas para a Rets






Notícias de uma guerra particular: mortes de jornalistas em 2006
Imagem: www.rsf.org
O ano que passou não foi fácil para jornalistas. Nunca tantos profissionais morreram em serviço. As contas variam de acordo com a fonte, mas todas as organizações ligadas à proteção da liberdade de imprensa concordam em dizer que 2006 foi o pior ano, em mais de uma década, para se exercer o jornalismo mundo afora.

Segundo a Federação Internacional de Jornalistas (IFJ, da sigla em inglês), 155 jornalistas e profissionais de mídia, entre câmeras, motoristas a serviço e tradutores, por exemplo, foram assassinados no ano passado. Outros 22 morreram em acidentes. “Foi um ano terrível para o exercício do jornalismo”, resume Aidan White, secretário geral da FIJ, no relatório da federação.

Já o Comitê de Proteção a Jornalistas (CPJ, também na língua inglesa), ONG norte-americana de defesa à liberdade de imprensa, contabilizou 55 mortes ligadas diretamente ao exercício da profissão. A entidade ainda investiga outros 30 falecimentos, dos quais não se sabe se a causa está ligada a investigações jornalísticas, matérias publicadas ou mesmo pelo simples fato da vítima trabalhar na busca e divulgação de informações. O CPJ não contabiliza mortes de jornalistas em acidentes, como batidas de carro, a não ser que tenham sido provocados. Um carro que, fugindo de tiros, tenha capotado e, por conseguinte, causado a morte de jornalistas, entra na contagem, por exemplo. Profissionais que ajudam jornalistas também não entram na conta da entidade. Por isso, tradutores e motoristas executados, entre outros, não fazem parte do cálculo.

Os Repórteres Sem Fronteiras (RSF), por sua vez, acreditam que 81 jornalistas e 32 assistentes foram mortos e outros 1.472, atacados ou ameaçados. Assim como o CPJ, a RSF - que apresenta anualmento o Relatório sobre Liberdade de Imprensa - contabiliza como jornalista morto apenas os casos nos quais há certeza de que o assassinato tenha sido ligado ao exercício da profissão. Por outro lado, se a morte foi acidental, também é levada em conta, ao contrário do critério do Comitê. A organização afirma que 2006 foi o ano mais violento desde 1994, ano em que houve diversos conflitos armados sendo cobertos, como o genocídio em Ruanda, a guerra civil na Argélia e embates na ex-Iugoslávia.

A Human Rights Watch, ONG que fiscaliza o respeito aos direitos humanos em todo o mundo, dedicou um capítulo inteiro de seu relatório anual - lançado há poucos dias, em 11 de janeiro - à luta pela liberdade de expressão e, dentro dele, uma seção “Jornalistas no centro das atenções”. Sem citar números referentes a 2006, a organização afirma que está cada vez mais difícil ser jornalista e responsabiliza o combate ao terrorismo, discurso corrente desde os acontecimentos de 11 de setembro, e demais contendas por isso. “Apesar de correspondentes de guerra gozarem de imunidade sob as leis de conflitos armados, eles trabalham em circunstâncias precárias e estão vulneráveis”, afirma a organização.

Iraque

O lugar onde os jornalistas estão mais expostos é o Iraque. O país do Oriente Médio, que está sob ocupação norte-americana desde 2003, lidera o ranking de lugares onde mais jornalistas morreram nos últimos anos.

Novamente, os números variam de acordo com a metodologia utilizada por cada organização. A IFJ contabiliza 69 mortes em 2006 (relembrando: de um total de 155), enquanto o CPJ, 32 (total de 55). Os RSF acreditam que foram 64 mortos no país (dentro de total de 81 no mundo todo). De qualquer forma, são números altos, que se devem ao acirramento do conflito na terra do ex-ditador Saddam Hussein, recém-executado. Desde o início da guerra, a CPJ contabiliza 94 mortos; os RSF, 97, e a IFJ, 178.

“A contagem de mortes da mídia mostra como o conflito sectário piorou e, no fim do ano, o Iraque marcou seu lugar na história – o local mais perigoso para se trabalhar com jornalismo, com mais mortes em seu nome do que qualquer outro país em qualquer outro conflito”, afirma a IFJ em seu relatório. Para efeito de comparação, durante os vinte anos da Guerra do Vietnã (1955-75) morreram 20 jornalistas. A ocupação dos aliados no Iraque tem pouco menos de quatro anos.

A maior preocupação das organizações é o aumento da quantidade de casos nos quais os jornalistas foram alvo de ataques mortais propositais. Há cada vez menos acidentes e mais execuções.

“As mortes no Iraque este ano (2006) refletem a grande deterioração no tradicional status dos repórteres como observadores neutros em tempo de guerra”, afirma o diretor executivo do CPJ, Joel Simon. “Quando o conflito começou, mais de três anos e meio atrás, a maioria dos jornalistas morriam em incidentes relacionados ao combate. Agora, os insurgentes miram jornalistas rotineiramente por causa de possíveis afiliações- políticas, sectárias ou ocidentais. Essa é uma tendência extraordinariamente alarmante pois, ao lado da terrível perda da vida, está limitando a reportagem no Iraque - e, por conseguinte, nosso próprio entendimento de uma história vital”, complementa.

Nas contas do CPJ, em 2003, primeiro ano do conflito, 14 profissionais foram assassinados. No ano seguinte, 24, número que caiu para 22 em 2005 e subiu para 32 no ano passado. Em qualquer contagem, a grande maioria, cerca de 90% dos casos, é composta por jornalistas iraquianos.

Um dos últimos assassinatos registrados no ano passado foi o do editor da rádio Dijla, de Bagdá. Nabil Ibrahim al-Dulaimi, de 36 anos, foi alvejado no dia 4 de dezembro em uma rua da capital iraquiana logo após sair de casa para ir trabalhar. O atirador até agora não foi identificado. O prédio da rádio já havia sido alvo de ataques no começo do ano, quando um locutor foi seqüestrado.

“Quase todos nossos colegas mortos lá eram jornalistas iraquianos. Está claro que o governo iraquiano, assim como os militares dos EUA, devem fazer da segurança de jornalistas uma alta prioridade ou o país nunca terá uma verdadeira liberdade de imprensa”, diz Adam White, do CPJ.

O alto índice de jornalistas iraquianos mortos revela também um fato que, geralmente, passa despercebido. Ao contrário de seus colegas norte-americanos e europeus, os jornalistas iraquianos raramente têm equipamento de segurança adequado e garantias das empresas de mídia - mesmo das estrangeiras.

É o que disse Emad Alkhafaji, repórter de uma emissora de televisão iraquiana, em conferência sobre segurança de mídia organizada pela Unesco de 8 a 10 de janeiro deste ano em Paris. “O governo iraquiano não está perguntando à mídia estrangeira o que eles estão fazendo com jornalistas no Iraque, o que estão dando a eles. A maioria dos veículos no Iraque trabalha por intermédio de iraquianos, mas não lhes dão nada além de pequenos salários”, critica Alkhafaji.

A IFJ, em seu relatório anual, pede às empresas de jornalismo que adotem sempre o “Código Internacional de Práticas para a Conduta Segura do Jornalismo”. O documento, assinado por diversas corporações, dá ao jornalista o direito de receber todo o equipamento de segurança adequado, além de treinamento e assistência médica no caso de acidentes.

Apesar das críticas de Alkhafaji, a realidade tem revelado que também não há facilidade alguma para jornalistas estrangeiros no Iraque. Apontados como parte das forças de ocupação, são maltratados nas ruas e também constantes alvos de ataques e, mais recentemente, seqüestros, assim como ocorre com seus colegas locais. De acordo com os RSF, 17 profissionais foram seqüestrados no ano passado no Iraque, sendo que seis foram mortos pelos seqüestradores. No mundo, o número de jornalistas em cativeiro subiu para 56, ainda segundo a mesma ONG.

Para piorar a situação, nenhum dos casos de seqüestro ou assassinato até hoje chegou a ser investigado até o fim. Há, no entanto, algumas exceções a caminho. Entre elas, a recente decisão da Justiça espanhola de indiciar por assassinato três soldados norte-americanos que, de um tanque, dispararam contra jornalistas hospedados no Hotel Palestine em 2003. Entre eles estava o câmera espanhol José Couso. Na ocasião, o exército dos EUA argumentou que havia terroristas no edifício, ocupado, na realidade por toda a imprensa estrangeira. Outro ponto positivo foi a edição de uma nova resolução do Conselho de Segurança das Nações Unidas, que autoriza o indiciamento de assassinos de jornalistas como criminosos de guerra.

Outros países

Depois do Iraque, Afeganistão e Filipinas foram os dois países mais perigosos para jornalistas. A distância é grande, mas não deixa de ser preocupante. Houve três assassinatos em cada, segundo o CPJ. Logo após vêm Rússia, México, Paquistão e Colômbia, lugares onde dois profissionais de mídia foram mortos no ano que passou.

Na matemática da IFJ, a surpresa é o México, que passou a Colômbia como local mais perigoso da América Latina, com 10 assassinatos, a maioria de repórteres investigativos. Os RSF diferem um pouco: apontam nove casos na terra do presidente Felipe Calderón, todos envolvendo investigações sobre tráfico de drogas ou protestos. O editor da revista mexicana “Dos caras, una verdad”, Enrique Pêra, por exemplo, foi encontrado morto no acostamento de uma estrada em agosto. Sua publicação é especializada em reportagens sobre narcotráfico e assassinatos não resolvidos pela polícia. Não há, até agora, culpado preso.

Outro país que chama a atenção de todas as entidades de defesa da liberdade de expressão é a Rússia. Lá foram mortos três profissionais, mas o temor é que haja envolvimento do Estado em alguns desses casos. O mais recente é o da repórter Anna Politkovskaya, citado em todos os relatórios consultados para esta matéria. Especialista em reportagens sobre direitos humanos em seu país, Politkovskaya se concentrava há tempos em apurações sobre a luta pela independência dos chechenos. Publicava seu trabalho na Novaya Gazeta, um dos poucos veículos russos a criticar abertamente o governo de Vladimir Putin. É autora dos livros “A Rússia de Putin: vida em uma democracia decadente” (2004) e “A guerra suja” (2000), sobre a política de enfrentamento dos russos em relação aos chechenos. Em 2004, quando se encaminhava para cobrir o seqüestro de alunos em uma escola em Beslan, na Chechenia, surgiram suspeitas de que havia sido envenenada, mas nada foi comprovado.

Morreu com quatro tiros, dados no elevador de seu prédio, no último dia 7 de outubro. Segundo o editor do jornal, ela estava investigando torturas praticadas por agentes de segurança da Chechenia, aliados a Putin, contra ativistas pró-independência. Sua morte gerou grande repercussão internacional e o governo russo colocou 150 detetives para investigar o caso. Um suspeito foi preso, mas seu nome não foi divulgado.

“Quando uma repórter renomada internacionalmente pode ser alvejada no próprio prédio e os atiradores fogem livremente, isso tem um efeito devastador na imprensa. Poucas perguntas duras são feitas e menos histórias arriscadas, cobertas. O caso dela mostra porque a impunidade é uma séria ameaça à liberdade de imprensa, não só na Rússia, como também nas Filipinas, Colômbia, México e Paquistão”, diz Joel Simon no relatório da CPJ.

Tanto na Rússia quanto nos demais países onde há jornalistas sendo assassinados e perseguidos, a falta de justiça é uma constante, assim como no Iraque. De acordo com levantamento do CPJ, que conta assassinatos de jornalistas desde 1992, de todos os casos, apenas 6% tiveram culpados condenados. Os principais envolvidos são partidos políticos (em 26% das ocasiões) e agentes de governo (20%). Os repórteres, em geral, estavam cobrindo guerras (44%), política (34%) ou casos de corrupção (30%). A soma dos percentuais passa de 100%, pois alguns jornalistas estavam cobrindo mais de um assunto ao mesmo tempo. Há ainda, de acordo com as organizações, mais de uma centena de repórteres presos por criticarem, em suas matérias, governos ou grupos políticos.

O novo ano não está muito diferente. Segundo o Barômetro da Liberdade de Imprensa, dos RSF, 2007 começou com três jornalistas já mortos - todos no Iraque - e 142 na prisão, a maioria na China, que aparece como maior cerceadora de liberdade.

Marcelo Medeiros

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