Autor original: Maria Eduarda Mattar
Seção original: Uma entrevista semanal sobre temas relevantes para o Terceiro Setor
Há quatro anos movimentos ligados aos direitos humanos propõem e esperam pela disposição do governo em criar um Conselho Nacional de Direitos Humanos. O novo órgão extingüiria o já existente Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, criado durante a ditadura. A promessa, feita no início da primeria gestão do governo Lula, era de que a Secretaria Especial dos Direitos Humanos (Sedh), que tem status de ministério, apresentaria um projeto de lei para criar o novo conselho, dispensando a necessidade de lançar mão de uma Medida Provisória (MP). No entanto, o tempo passou, e a prioridade prometida ao assunto não se concretizou.
Agora, apesar de se encontrar na Câmara dos Deputados o substitutivo do Senado que transforma o Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana em Conselho Nacional de Direitos Humanos, ganha força mais uma vez a expectativa de uma medida provisória para regular o assunto. É o que explica nesta entrevista o coordenador nacional do Fórum de Entidades Nacionais de Direitos Humanos (Fendh), Ivônio Barros.
Ele explica os vaivéns que cercam a proposta, acredita que as entidades de direitos humanos têm que se adiantar ao governo e elaborarem em conjunto uma proposta de texto para a possível MP e sentencia: "Na verdade não queremos a transformação do que existe. Queremos uma coisa nova, completamente diferente. O que existe não serve para nada".
Rets - Qual é o interesse da sociedade civil na transformação do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana em Conselho Nacional de Direitos Humanos?
Ivônio Barros - Na verdade não queremos a transformação do que existe. Queremos uma coisa nova, completamente diferente. O que existe não serve para nada, não tem nenhuma autoridade, nem instrumentos. É uma criação da década de 1960 que foi ativada no período da ditadura, e lhe serviu bem. Queremos um instrumento de construção de um sistema de direitos humanos no Brasil. Com autoridade para fiscalizar, monitorar, instigar os poderes e as autoridades constituídas a cumprir o seu papel legal e constitucional. E queremos um Conselho Nacional de Direitos Humanos com grande participação da sociedade civil.
Rets - Quais seriam os pontos-chave a constarem da possível MP?
Ivônio Barros - Hoje está em fase de conclusão, na Câmara dos Deputados, de um projeto de lei que transforma o CDDPH [Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana] em Conselho Nacional de Direitos Humanos. Pode ser votado a qualquer momento se os líderes concordarem. Mas pode ficar engavetado mais 10 anos. Qualquer uma das opções tem grande chance de ocorrer. A idéia de uma Medida Provisória não é nova. Foi apresentada pelo primeiro ministro de Direitos Humanos do governo Lula, o ex-deputado Nilmário Miranda, durante a primeira reunião que entidades da sociedade civil tiveram com ele em Brasília, logo depois do Fórum Social Mundial de 2003. Ele nos contou que havia conversado com o presidente da República e que havia recebido orientação de nos perguntar se queríamos que o novo Conselho Nacional de Direitos Humanos fosse instituído por Medida Provisória ou por meio de mudanças no projeto de lei que estava tramitando na Câmara dos Deputados e que todos, governo e sociedade civil, concordávamos que era um projeto ruim. Como ele nos garantiu que o assunto seria colocado na prioridade do governo, acrescentando que acreditava que a tramitação não demoraria mais de seis meses, as entidades preferiram então não pressionar o governo por uma Medida Provisória, já que esse instrumento sempre acarreta algum desgaste ao Executivo.
Acontece que o governo naquele momento aprovou tudo o que quis no Congresso, inclusive reformas constitucionais, mas não levou adiante a promessa de priorizar a lei do Conselho Nacional de Direitos Humanos. Além disso, a equipe da Secretaria de Direitos Humanos que começou com uma posição de proximidade com a sociedade civil mais combativa, foi se afastando e assumindo posições mais conservadoras, inclusive no que diz respeito à constituição de mecanismos independentes de monitoramento de políticas públicas e da ação do Estado. Isso, no caso do Conselho, fez com que perdêssemos quatro anos!
Rets - Como tem sido a relação com a Secretaria Especial de Direitos Humanos (Sedh)? O cenário aponta para uma boa aceitação da proposta da sociedade civil?
Ivônio Barros - Nossa relação com o governo nessa área é muito tumultuada. Tem assuntos e setores em que as coisas andam bem, tem outros tema e outras áreas em que a situação nunca esteve tão ruim. Em algumas áreas da saúde, por exemplo, a relação é excelente. Inclusive considero que a principal coisa que aconteceu ano passado foi a declaração do Ministro da Saúde de que a política do SUS é racista e que precisa ser alterada e que está sendo alterada. Ele foi corajoso e verdadeiro. Na área indígena, o governo é um desastre. Estamos assistindo a verdadeiros massacres e genocídios, e o governo, nesta área, mantém o apoio aos fazendeiros, grileiros e empresas que destróem os índios, sua cultura e o meio ambiente.
Se o governo dispuser de alguns minutos para que possamos discutir com franqueza e lealdade o tema do Conselho Nacional de Direitos Humanos, podemos, sim, avançar e chegar a um acordo sobre a necessidade de uma Medida Provisória que incorpore o que se tem avançado na área no mundo e mais especificamente no sistema das Nações Unidas. Precisamos convencer nossos interlocutores a não temerem os resultados de um monitoramento de políticas públicas à luz dos direitos humanos. Precisamos tentar mostrar aos dirigentes governamentais que é melhor apostar nos direitos humanos e no futuro, do que se apegar a cargos presentes ou estruturas defasadas. Vários desses dirigentes depois voltarão para atividades junto à sociedade civil e não vão conseguir conviver com as decisões que tomaram no governo. Essa é a nossa orientação: temos certeza de que estamos lutando por uma causa justa e queremos convencer o governo de que ele pode ser um diferencial histórico importante em favor dos direitos humanos. Caso contrário, será marcado na história como quem retrocedeu nessa área.
Rets - Você acha possível a aprovação do conselho com reserva de 40 vagas (o dobro das vagas do governo) para a sociedade?
Ivônio Barros - Na verdade, o que estamos discutindo agora é um Conselho que tenha certa paridade, com alguma coisa a mais para a sociedade civil. Mas não vejo dificuldade nenhuma em podermos inclusive avançar para uma situação de um Conselho com maioria expressiva da sociedade civil. O do estado de São Paulo é assim. Não que os paulistas sejam bonzinhos. É que eles souberam se aproximar das posições que a Comissão de Direitos Humanos da ONU (agora Conselho) indicava para a formação de organismos nacionais de direitos humanos. A ONU, em verdade, a partir da experiência no mundo todo, acha que é necessário existir um Conselho ou organismo onde o governo nem possa votar, para não expressar em seu voto a posição dos que ferem os direitos humanos. Isso mesmo, os órgãos do Estado são os principais instrumentos de ameaça aos direitos humanos. No Brasil quem tortura geralmente e sistematicamente não são os policiais? As prisões não são instrumentos de tortura física e mental? Os grupos de extermínio podem ser compostos por policiais, ex-policiais e parentes deles, mas contam com a conivência dos poderes do Estado (Executivo, Legislativo e Judiciário). Um órgão que possa emitir pareceres e resoluções independentes não deveria ser dirigido nem controlado por quem ameaça os direitos humanos.
Mas não é só isso. Os governos trocam com muita facilidade os direitos humanos por qualquer acordo comercial que possa, aparentemente, trazer alguns dólares ao país. Ou não é esta a suspeita atual sobre o voto do governo brasileiro com respeito ao Sudão?
Não é possível pensar um Conselho controlado e amarrado pelo governo. Um conselho assim é pior que nenhum conselho. Não à toa a ditadura militar foi quem instaurou o CDDPH. E com isso mostrava para o mundo que aqui não havia tortura, não havia extermínio, não tinha assassinatos nem terrorismo de Estado.
Rets - Quem ou quais organizações já estão participando da elaboração da proposta? Em que pé está a discussão?
Ivônio Barros - Não há nenhum consenso ainda. Essa é uma questão que será debatida nos próximos meses. Talvez até no próximo Encontro de Direitos Humanos, que deverá ocorrer ou no final de junho ou início de agosto na Câmara dos Deputados. O que estamos agora tentando é interessar o maior número de entidades no debate sobre o tema. Se isso for conseguido, vamos ter uma proposta de Conselho mais estudada, de mais qualidade e que possa representar os anseios de um grupo maior de defensores e defensoras de direitos humanos.
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