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O Fórum faz sua autocrítica

Autor original: Fausto Rêgo

Seção original: Notícias exclusivas para a Rets







Foto: Sho Kasuga

O Fórum Social Mundial (FSM), realizado em Nairóbi, no Quênia, terminou no dia 25 de janeiro e deixou em participantes, organizadores e na sociedade civil, de maneira geral, a sensação de que alguma coisa tinha mudado. Como era esperado, alguns temas receberam maior atenção, como a questão da aids, que assola o continente africano. Mas nada mereceu mais destaque nessa sétima edição do evento do que o próprio Fórum. Como resolver os problemas de organização, tradução, financiamento e sustentabilidade? Estas foram algumas das questões levantadas por participantes e pelo comitê organizador.

Tanto a imprensa brasileira quanto a internacional anunciaram timidamente, e até com um certo descrédito (mantendo a cobertura superficial dispensada ao encontro de Nairóbi), a decisão de não realizar um evento central em 2008. As especulações de que o FSM e seu poder de mobilização estariam enfraquecidos, no entanto, são rebatidas enfaticamente pelos organizadores. “Podemos não acertar, mas estamos tentando envolver muito mais gente nesse processo e dar a sensação de que estamos vivendo a mesma aventura”, argumenta o diretor do Ibase Cândido Grzybowski, do Comitê Internacional do FSM, ao justificar a decisão de não realizar o Fórum no próximo ano e, em seu lugar, promover dois dias de manifestações nas ruas em todo o mundo.

Segundo ele, se a mobilização de janeiro do ano que vem for um sucesso, terá um impacto grande na opinião pública e facilitará a organização de um evento em 2009. “Em 2009, devemos ter um evento central. Mas pode ser que até lá desenvolvamos outra fórmula”, pondera. Grzybowski ressalta que há inúmeros fóruns realizados localmente e nacionalmente, mas a visibilidade maior recai sempre sobre o evento central. O importante disso tudo, alerta, é não repetir os vícios do passado, de criar uma entidade centralizadora e hierarquizada para dar conta do FSM, e buscar sempre inovar.

“O segredo [para o sucesso das mobilizações em todo o mundo] vai ser a conexão e a comunicação de tudo isso. Precisamos ver o que está acontecendo no mundo nessas 24 horas. Cada lugar escolhe o seu tema. A questão é como não dispersar”, observa o diretor do Ibase. Apesar dos acertos para o ano que vem, ele admite que nada pode substituir os encontros. “Todos os países estiveram presentes neste ano, e estar lá estimula as pessoas a reproduzirem os debates em seus países. A maioria dos membros do Conselho acha que o mais positivo desses encontros é essa onda de mobilização que se desencadeia. Precisamos de uma liga, de um sentimento de pertencimento, e ainda não temos um substituto para isso”, afirma.

A diretora executiva da Associação para o Progresso das Comunicações (APC), Anriette Esterhuysen, concorda: “Eu acredito que, de tempos em tempos, deva haver um evento central, idealmente em Porto Alegre, onde é mais bem organizado e traz participantes do mundo todo. Um FSM que consegue equilibrar as doses certas de diversidade, caos e organização inspira os participantes a continuarem seus esforços por mudanças em seus próprios contextos”, defende.

Sally Burch, diretora da Agência Latino-Americana de Informação (Alai), acredita que o modelo proposto para 2008 é uma solução temporária e positiva, que vai ajudar a envolver mais gente e valorizar as ações locais, sem perder a visibilidade mundial. “Apesar de a idéia ser bem interessante, seu êxito dependerá das condições e da vontade dos atores de cada país de investir esforços para organizar essa mobilização. Não é nada que se possa ditar de maneira centralizada”, acredita.

Um possível fator contraproducente, segundo ela, seria se alguns países aproveitassem para realizar fóruns internacionais nas mesmas datas. Se isso acontecer, as atenções poderiam ser desviadas das mobilizações locais. Ela lembra que a realização do Fórum a cada dois anos já era uma demanda desde a criação do Conselho Internacional do FSM, em 2001, para dar mais espaço para os fóruns locais e continentais e para as próprias lutas sociais.

Para Antonio Martins, da Ação pela Tributação das Transações Financeiras em Apoio ao Cidadão (Attac-Brasil) e membro do Conselho Internacional do Fórum Social Mundial, a atual crise do FSM é resultado de seu próprio êxito. Ele acredita que o problema está nos próprios limites que o FSM impõe a si mesmo, ao se restringir a ser um “evento”. Segundo ele, a articulação de múltiplas lutas do Fórum sugere um processo permanente e contínuo. Mesmo defendendo a importância de um encontro anual, Martins acha que o modelo deve ser superado, transformar-se num momento em que os resultados sejam apresentados e não na única oportunidade de encontro.

Para ele, o FSM teria um importante papel na formação de alternativas a problemas como o aquecimento global e a desigualdade nas instituições financeiras internacionais, trabalho que não pode ser feito em "oficinas de três horas” realizadas uma vez por ano. Para lidar com tais questões, aponta a necessidade de criar mecanismos de intercomunicação entre os movimentos sociais para reunir competências e conhecimentos de diversos sujeitos e organizações.

Diversidade e caos

Excesso de mesas de debate, programação confusa, dificuldades logísticas, serviços superfaturados e problemas de tradução. Do lado de fora do FSM, esses foram os temas que dominaram a cobertura da mídia internacional. Algumas pessoas aproveitaram para defender a volta do Fórum a Porto Alegre, onde a organização seria melhor; outras questionaram se não era o momento de um novo modelo ser discutido.

O intelectual português Boaventura de Souza Santos, que esteve presente em todas as edições do FSM e já bradava o êxito da edição queniana mesmo antes desta começar, defendeu ferrenhamente a importância da diversidade e do “relativo caos” do FSM. Segundo ele, estes seriam sinais de sua fortaleza. Flávia Antunes, da ActionAid, também acredita que a “beleza” do encontro está justamente nessa diversidade, pois possibilitaria que grupos absolutamente diferentes se articulem em torno de uma “agenda comum de luta por justiça social”.

Membro do Comitê Internacional do Fórum, Antonio Martins acrescenta que é através desse aparente caos que estão surgindo “as formas de ação capazes de mudar o mundo”. Ele cita como exemplos dessas lutas as campanhas que derrotaram a Área de Livre Comércio das Américas (Alca) e as que estão exigindo transformar a água em um bem público. Segundo ele, é preciso que as organizações e os movimentos sociais que participam do FSM encarem o desafio de propor “alternativas concretas” para a construção de “um outro mundo”. Para ele, o grande desafio dos movimentos sociais que defendem transformações é sair do campo discursivo e passar para a prática.

Como gerenciar a grande diversidade do Fórum – se é que deve ser gerenciada – de modo a não deixar que o FSM vire apenas um falatório sem maiores conseqüências? Para Cândido Grzybowski, existem de fato muitos problemas de organização, mas não há risco de que as propostas e reivindicações nascidas do Fórum não tenham efeito algum na sociedade. “O primeiro resultado do Fórum é no imaginário da sociedade. Criou-se um sinal de que é possível pôr em questão certas políticas. As mudanças nos organismos internacionais ou nos governos nacionais são mais lentas”, comenta.

Apesar disso, Grzybowski é um dos que acreditam que, pelo menos na América Latina, a influência do Fórum já vem mostrando a sua força. “Você acha que o que aconteceu na América Latina foi por causa de uma evolução natural das coisas ou o Fórum teve a ver com isso? Os tipos de governo que apareceram foram como uma onda que o Fórum ajudou a alimentar”, defende. Sally Burch, da Alai, concorda: “Especialmente na América latina, o Fórum tem contribuído para dinamizar articulações e movimentos sociais que vêm incindindo direta ou indiretamente nas transformações políticas da região”.

A diretora de Relações Institucionais do Instituto Paulo Freire, Salete Valesan Camba, também acredita que o ritmo das mudanças no continente latino-americano é maior do que no resto do mundo. “As mudanças não estão ocorrendo no ritmo em que gostaríamos. São milhares de décadas pautadas pela cultura da exclusão e de sistemas perversos. Mas o FSM tem apenas seis anos de existência e vem possibilitando o encontro dos sujeitos do planeta, aumentando e consolidando as perspectivas de mudanças locais e globais”, reconhece.

Grzybowski considera que a reunião deste ano do Fórum Econômico de Davos – ao qual o FSM se propõe, desde sua origem, a fazer um contraponto – foi uma prova concreta da influência do Fórum Social. “Davos mudou os temas de debate. Começam a aceitar discutir o clima, por exemplo. Isso já é uma bandeira da sociedade civil há algum tempo, mas o FSM deu mais eco a essas vozes. Se a agenda de Davos passou a ser menos arrogante depois de 2000, isso mostra que as coisas repercutiram por lá. O Banco Mundial e o FMI começaram a querer saber o que se passa no Fórum. Não dá mais para ignorá-lo”, afirma.

Sally Burch chama atenção para a cobertura midiática do Fórum de Davos. “Foi possível observar que, se a cobertura do Fórum de Nairóbi foi escassa, foi notável que a de Davos tenha sido focada principalmente nos temas sociais, especialmente nas mudanças climáticas, na responsabilidade das corporações internacionais e na pobreza da África”, afirma. Segundo ela, isso é um sinal claro de que as esferas de poder estão se sentindo obrigadas a responder a uma pressão social, mesmo que só para melhorar a sua imagem.

Sally Burch também acredita que a diversidade do Fórum é um de seus pontos fortes e que um certo caos é inevitável. Para ela, porém, é preciso ter cuidado com essa obsessão pela “horizontalidade”. “Essa diversidade pode ser ameaçada por certas tendências que buscam institucionalizar o Fórum e, em nome de um espaço aberto onde todos são iguais, impor uma lógica onde o que prevalece é a capacidade de alguns atores de manipular mais recursos”, alerta.

Segundo ela, é preocupante, por exemplo, que grande parte dos eventos de Nairóbi tenham sido organizados por grandes instituições ou igrejas, principalmente do hemisfério norte. “De certa forma, a oportunidade de fomentar intercâmbios entre setores e movimentos diminuiu, já que os espaços autônomos das redes e dos movimentos sociais se encontraram, até um certo ponto, marginalizados”, diz Burch.

Apesar dos problemas, os participantes receberam com uma certa complacência as dificuldades do Fórum de Nairóbi, por ter sido realizado com recursos insuficientes e num país com pouca infra-estrutura para um evento desse porte. O que chamou a atenção dos presentes foram os constantes protestos da população local por causa do alto preço das entradas – equivalente 5 euros, para os africanos. Em artigo, Sally Burch ressalta que essa quantia equivale a um salário mínimo semanal dos quenianos. Os protestos constantes levaram ao ingresso maciço de quenianos sem pagar entrada.

“O preço era muito alto, de fato. Não queremos reproduzir no Fórum a desigualdade existente na sociedade. Mas isso é um trabalho não só relacionado aos recursos, mas de educação popular e organização”, argumenta Cândido Grzybowski. O diretor do Ibase acha que há um problema sério de organização popular, pois algumas pessoas que eram muito pobres conseguiram ir ao Fórum através das igrejas. “Deve ser feito um trabalho de organização para que os invisíveis de hoje sejam visíveis amanhã. É um trabalho complexo de dar voz a quem não tem”, afirma.

Em busca da sustentabilidade

Estandes da Celtel – companhia queniana privada de telefonia celular – no FSM e outdoors de boas-vindas da empresa aos participantes no caminho até o estádio onde foi realizado o evento chamaram a atenção dos participantes e geraram muitas críticas aos organizadores. Muitos participantes rejeitaram a idéia de ter uma empresa privada patrocinando o Fórum, mas o comitê queniano se defendeu afirmando que o poder público não era capaz de financiar o evento como no Brasil ou na Venezuela.

Grzybowski explica que o financiamento do FSM está se tornando uma engenharia complexa. “Este ano, aceitamos parceria com a Petrobras. Achei bom, mas mostra uma certa fragilidade e a necessidade de pensarmos numa nova fórmula. Não podemos repetir o que houve no Fórum da Venezuela, onde foi tudo bancado pelo governo. Essa idéia do autofinanciamento é a parte mais frágil da nossa equação”, admite.

Uma das soluções já foi posta em prática neste ano, em Nairóbi. O comitê optou por cobrar taxas de inscrição que variavam de 5 a 300 euros. “Talvez essa não tenha sido a melhor escala. Eu defendia um euro para os quenianos. Mas a cobrança desigual é uma forma de financiar o Fórum”, afirma Cândido.

Para Anriette Esterhuysen, da APC, a sustentabilidade do FSM depende exclusivamente da vontade dos participantes. “É um processo que deve ser guiado pela energia e pelo interesse de seus participantes”, diz.

Grzybowski não acredita num FSM inteiramente autofinanciado, mas acha que há algumas saídas para o problema. Uma delas seria criar um fundo de financiamento. “A minha sugestão é usar os e-mails dos participantes do Fórum, que são uma base de dados ativa, e fazer uma campanha de doação de um dia de trabalho pela autonomia do FSM”. Essa, afirma, seria a alternativa mais justa, pois cada um doaria de acordo com as suas possibilidades.

Salete Camba, por sua vez, é mais enfática ao concluir: “O Fórum já é autofinanciado, se considerarmos que todo o dinheiro que circula no mundo é do povo. Além disso, movimentos, entidades, redes, campanhas e indivíduos que participam do processo do FSM investem conhecimento, energia, tempo e recursos, e normalmente isso não é computado quando a mídia faz uma análise de quem financia o Fórum”.

Luísa Gockel e Joana Moscatelli

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