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Vítimas e algozes

Autor original: Luísa Gockel

Seção original: Notícias exclusivas para a Rets






Vítimas e algozes
“Se os menores de 18 anos cometem crimes bárbaros, eles têm, sim, de ser punidos. Não pode só ficar três anos, para daqui a três anos matar outro João. Eles não têm coração, não têm, não têm!”. O apelo emocionado de Rosa Cristina Fernandes, durante entrevista a uma emissora de televisão, marcou o tom das notícias veiculadas na grande imprensa. Aos poucos, a exploração midiática da barbaridade do crime que tirou a vida de seu filho João Hélio Fernandes, de 6 anos, no Rio de Janeiro (RJ), deu lugar ao debate superficial sobre como tratar jovens infratores.

Políticos, advogados, especialistas e parentes de vítimas da violência passaram a ocupar grande parte do noticiário nacional, discutindo a necessidade de mudanças urgentes na legislação penal brasileira. Enquanto isso, em Brasília (DF), parlamentares aprovam penas mais duras para quem comete crimes hediondos e para criminosos que levam menores de idade a praticarem crimes e ensaiam o debate sobre mudanças no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), através da redução da idade penal.

Parentes de vítimas da violência e a sociedade civil organizada, no entanto, olham com desconfiança para os esforços no Congresso. “A aprovação da mudança da maioridade penal não pode ser apenas uma satisfação momentânea para a sociedade, para depois ser considerada inconstitucional no Supremo Tribunal Federal”, alertou, em debate na TV sobre o tema, o advogado Ary Friedenbach. Ele teve a filha Liana de 16 anos, assassinada em 2003, por um jovem da mesma idade, em Embu-Guaçu (SP).

Se, por um lado, as estatísticas mostram que o envolvimento dos jovens nos crimes mais graves é pequeno (apenas 1% dos homicídios em São Paulo são cometidos por menores de 18 anos, de acordo com dados da Secretaria da Segurança Pública do estado), por outro, a idade da população carcerária brasileira vem despencando nas últimas décadas e alcança hoje a média de 23 anos. Os dados controversos ilustram exatamente a dificuldade de se chegar a um consenso e indicam também a urgência de um debate responsável sobre o tema.

A questão, além de polêmica, apresenta nuances que devem ser examinadas com cautela. Não há exatamente dois lados opostos, com opiniões antagônicas, como pode parecer num primeiro momento: os defensores da criminalização dos jovens versus os defensores do ECA. Nem todos que se opõem à antecipação da idade penal estão satisfeitos com as determinações do Estatuto. Muitos afirmam que antecipar a maioridade para 16 anos não é o mais indicado, porque poderá criminalizar jovens que cometem pequenos delitos e que são potencialmente recuperáveis e, além disso, a lei continuaria protegendo os menores de 16 anos que cometerem crimes graves.

Nesse caso, os especialistas defendem que o mais indicado seria, em vez da fixação de um limite etário, a diferenciação por gravidade do crime. Dessa forma, um jovem de 16 anos que cometesse um pequeno delito teria a proteção do ECA. Mas outro, de 12 ou de 14 anos, que cometesse um crime bárbaro, uma vez que ficasse provado que tinha consciência dos seus atos, seria julgado com o rigor do Código Penal e permaneceria em presídios próprios para menores de 18 anos.

Para Paula Miraglia, diretora do Instituto Latino-Americano das Nações Unidas para a Prevenção do Delito e Tratamento do Delinqüente (Ilanud), a idéia não é boa. “Precisamos ter um recorte etário na aplicação da legislação e isso não é por acaso. Eu acho que o que pode ser debatido é o tempo de internação para determinados tipos de crime. Isso é uma dimensão do ECA que podemos debater”, defende. Como grande parte dos representantes de organizações de defesa dos direitos humanos, Paula entoa a defesa da necessidade de rediscutir o projeto pedagógico e de ressocialização no interior das unidades de internação. “De nada adianta ficar cinco anos internado se o jovem não está passando por um processo educativo”, afirma a representante da ONU.

Essa tese também é defendida ferrenhamente pelo desembargador Siro Darlan, ex-juiz da Vara da Infância e do Adolescente. Em artigo que comenta o resultado de uma pesquisa sobre a Febem divulgada em 2006 pela Ordem dos Advogados do Brasil e pelo Conselho Regional de Psicologia, ilustra como é a situação nessas unidades de internação: “A visita que os advogados e psicólogos fizeram ao Instituto Padre Severino constatou que, enquanto a capacidade para internação provisória de adolescentes masculinos é de 160 jovens, havia 320. O ambiente tem pouca ventilação; os alojamentos são inadequados, pequenos e quentes, com características de cela; alguns exalando mau cheiro. Os adolescentes só saem das celas 15 minutos por dia e, às vezes, nem saem. Quanto à saúde, foram constatados relatos de sarna e de dor de dente, sinais de traumatismo torácico e de espancamento, relatos de terem sofrido tapas, socos e castigos físicos. A troca da roupa se faz a cada dez dias”.

O desembargador não concorda com nenhuma mudança no ECA enquanto o poder público não cumprir as suas determinações. “O Estatuto não é respeitado. Não discutir a responsabilidade do administrador público que priva a liberdade em condições desumanas e deixa os jovens na rua sem escola é enganar a sociedade mais uma vez”, argumenta Darlan em entrevista à Rets. Segundo ele, os verdadeiros criminosos são os governantes que não estão proporcionando a reeducação para esses jovens. “Temos de cobrar responsabilidade de quem não está sendo eficiente. Essas unidades são ninhos de realimentação da violência. A responsabilidade de sair pior do que entrou não é do jovem, é do Estado”, defende. Para ele, colocar a culpa no jovem é ignorar a causa e atacar o efeito.

Se as unidades de internação estão longe de serem lugares para recuperação de jovens infratores – o próprio ECA determina que os jovens sejam separados por idade e por tipo de infração cometida –, as famílias das vítimas não conseguem digerir o fato que os menores de idade que mataram friamente seus filhos ou parentes são, na verdade, vítimas do sistema e não algozes da sociedade. O caso dos estudantes Felipe e Liana, mortos em Embu-Guaçu (SP) por um adolescente conhecido como Champinha, de 16 anos, ilustra esse sentimento. O assassinato chocou o país há quatro anos e foi um daqueles crimes que sazonalmente reacendem o debate sobre a maioridade penal.

“A população e a imprensa têm sido omissas. Crime não tem idade. Crime é crime”, sentencia o economista Reinaldo Caffé, pai de Felipe. Apesar da dor extrema de ver a vida de seu filho interrompida de forma violenta e trágica por um jovem que não poderia ser julgado pelo Código Penal, Caffé entende que o melhor caminho para a Justiça é longo. “A solução definitiva para diminuir a violência passa por uma série de fatores que requerem recursos e vontade política. Precisamos de uma reforma no sistema carcerário, de revisão do Código Penal e do ECA, de investimento em educação e saúde. Mas não há recursos para fazermos tudo isso. Então, enquanto os recursos não aparecem, vamos jogando a violência para debaixo do tapete”, lamenta.

No caso dos criminosos que assassinaram Felipe e estupraram e mataram Liana, segundo Caffé, a legislação foi aplicada com rigor. A juíza aplicou pena severa e um dos bandidos pegou 147 anos. “Nosso Código Penal é defasado e ultrapassado, mas é a lei que nós temos. No caso do Felipe e da Liana, a juíza não inventou nada, simplesmente aplicou o Código”, afirma. “Então só podemos concluir que falta seriedade no Judiciário, na sociedade, nos políticos e nas famílias ao educarem seus filhos. O resultado é a impunidade”, completa Reinaldo Caffé.

No caso do crime de Embu-Guaçu, laudos psiquiátricos do Instituto Médico Legal constataram que o jovem sofria transtornos mentais e não poderia ser solto depois dos três anos de internação na Febem, pois representava um “perigo à sociedade”. “Pergunto: que tipo de medida sócio-educativa se aplica ao Champinha? O crime cometido pelo maior e pelo menor de idade causa o mesmo dano à sociedade. As vidas que foram destruídas é que estavam em formação”, defende Jorge Damús Filho, que teve o filho Rodrigo, de 20 anos, assassinado em 1999, num sinal de trânsito na cidade de São Paulo, por um menor de idade a três dias de completar 18 anos. O motivo do crime: o adolescente queria dinheiro para uma grande festa de aniversário.

Nesses tipos de crime, críticos da inimputabilidade penal dos jovens defendem uma avaliação para saber se os menores de idade têm consciência da gravidade dos atos, como forma de aplicar penas severas, porém justas. “O menor de idade, hoje, não é o mesmo de 1940. Pelo excesso de informações provenientes dos veículos de comunicação, esse jovem não é mais desinformado a ponto de não ter a consciência dos seus atos”, acredita Jorge, que fundou o Movimento de Resistência ao Crime.

Para Reinaldo Caffé, ao cometer um crime, tanto os maiores quanto os menores de 18 anos devem passar por uma avaliação para ser constatado se têm ou não consciência do que fizeram. “Se tiverem, têm de ser punidos. Hoje, com o nível de informação disponível, dizer que eles ignoram as atrocidades que cometem é hipocrisia”, observa. O desembargador Siro Darlan, porém, discorda: “A TV brasileira não educa. Esse é um dos argumentos mais falsos que podem ser apresentados. O jovem rouba o tênis porque todos os meninos na TV são ricos e têm tênis”, critica Darlan.

Paula Miraglia, do Ilanud, entende que esse tipo de avaliação psicológica é demasiado subjetiva. “Estaremos tirando da esfera da Justiça por completo esse problema. O acompanhamento multidisciplinar é necessário, mas a Justiça não pode trabalhar pensando caso a caso. É preciso uma legislação que dê conta da problemática que vivemos hoje”, defende.

Ao contrário do que muitos podem pensar, os defensores da antecipação da maioridade penal têm consciência de que essa medida não vai resolver o problema da criminalidade. “Quem está falando em resolver?”, rebate Damús Filho. “Sempre nos deparamos com esse mesmo discurso de que o problema é social e falta de investimento em educação. Enquanto cada brasileiro não tiver uma casa, um carro, comida, acesso à saúde e à educação como vamos resolver o problema da criminalidade?”, questiona.

Apesar de acreditar que as desigualdades sociais agravam os problemas de segurança pública no país, Damús Filho acha que não é possível fazer associação direta entre pobreza e violência. “A maioria da população brasileira é pobre e honesta, e não é compatível com a criminalidade do menor de idade. Na Índia e na China, a miséria é muito grande e não há esses índices de criminalidade que temos aqui”, relata. Darlan, neste ponto, concorda: “É evidente que a pobreza não é responsável pela violência, mas sim o desrespeito pelas pessoas pobres”.

Dois pesos, duas medidas 

Enquanto parentes de vítimas tentam fazer com que a perda de seus familiares sirva de exemplo para que a sociedade reaja, entidades de direitos humanos se perguntam: por que a comoção gerada por crimes como o que matou o menino João Hélio não é a mesma para tentar evitar os abusos cometidos nessas unidades de internação? Por que a sociedade faz vista grossa para as freqüentes violações dos direitos humanos cometidas dentro das Febens? Por que não é tão chocante que o Estado cometa compulsoriamente o crime de deixar menores de idade nas ruas e fora das escolas?

Siro Darlan alfineta: "A questão do menor de idade envolvido em crime bárbaro é rara, mas causa essa comoção geral que estamos vivendo. Esse mesmo povo deu menos de 3% ao único candidato à Presidência da República que levantou a bandeira da educação”, critica. Para ele, é preciso mudar a postura dos governantes antes de mudar qualquer lei. “A fonte de violência está no meio como tratamos essas crianças. Nós, adultos, é que temos de mudar. Temos de ter clareza de que essa é a realidade e de que não dá para colocar toda a responsabilidade em cima desses jovens”, defende.

Estatísticas mostram que há hoje no sistema carcerário brasileiro 200 mil presos. Se forem cumpridos todos os mandados de prisão, serão mais de 1 milhão de detentos. Apesar de o problema ser bem mais a falta de presídios do que o excesso de presos, militantes contrários à antecipação da maioridade argumentam que prender não resolve o problema da segurança pública. “Não sei por que acham que colocar mais gente na cadeia vai resolver o problema da violência. Se tempo de prisão resolvesse, as pessoas que ficam por 30 anos presas não sairiam piores”, argumenta Darlan.

Jorge Damús Filho, no entanto, rebate afirmando que o ECA estimula os mais agressivos a cometerem crimes mais graves. “O Estatuto ilustra o paternalismo irresponsável. Retorná-los às ruas depois dos três anos de internação é, no mínimo, desrespeitar as vítimas. Resta saber quem se responsabiliza pelos novos crimes cometidos depois de soltos”.

Para a diretora do Ilanud, é inconcebível que alguém possa acreditar que o sistema prisional brasileiro é um modelo exemplar para os jovens. “Por que queremos reproduzir para os nossos jovens um sistema que não funciona, é falido e propiciou o surgimento de grupos do crime organizado? Em que medida isso é uma solução para os problemas de criminalidade que enfrentamos hoje?”, indaga. Segundo ela, se os criminosos estão cada vez mais jovens, é preciso atentar para o fato de que o crescimento do número de homicídios no Brasil está intimamente associado ao aumento do número de homicídios entre os jovens.

“Não podemos levar em consideração apenas o fato de os jovens estarem envolvidos com a criminalidade. Eles são também vítimas. Então, em vez de pensarmos em projetos de encarceramento e punição, é preciso pensar em como tirar esses jovens do lugar de vítimas. Por que ninguém se preocupa com isso?”, questiona a representante da ONU. Segundo ela, nos últimos anos, várias mudanças na legislação foram feitas, mas isso não se traduziu numa melhora nos indicadores de violência no país. “A comoção e a tristeza têm de ser compreendidas, mas essa indignação tem de se converter numa exigência da sociedade em relação ao governo por medidas concretas que assegurem que crimes como esse no Rio não aconteçam mais. Reduzir a maioridade penal não garante que esse crime não acontecerá de novo”, diz Paula.

Apesar das fortes divergências entre críticos e defensores do Estatuto, a maioria concorda que o excesso de crianças nas ruas estimula a delinqüência juvenil. O prefeito do Rio de Janeiro, César Maia, é contra mexer na idade penal, mas critica o ECA. Maia propõe que o Estatuto seja modificado para que as três esferas do poder possam retirar compulsoriamente menores de 13 anos das ruas. “A dificuldade está em abrigá-los quando os que os exploram sabem dos limites da autoridade do poder publico”, afirma o prefeito em entrevista exclusiva à Rets.

O desembargador Siro Darlan, por sua vez, defende o Estatuto: “O ECA diz que nenhuma criança pode sofrer constrangimento ou violência. E diz que não podem ser retirados pela política, mas sim pela ação social”. Darlan critica o prefeito: “Não há nenhum Ciep [Centros Integrados de Educação Pública, escolas públicas criadas no primeiro governo de Leonel Brizola com a proposta de oferecer educação em período integral] funcionando em regime integral, como era a proposta inicial”.

"Vamos agir como?"

A recente declaração da ministra do Supremo Tribunal Federal Ellen Gracie de que não se deve mexer na lei em momentos de emoção causou mal-estar entre parlamentares e parentes de vítimas. “Se não agirmos emocionalmente, vamos agir como?”, questiona Jorge Damús. Para ele, a não implementação total do ECA – criado em 1990 – até hoje indica que alguma coisa está errada com a legislação. Reinaldo Caffé concorda: “O ECA é uma lei complementar ao artigo 288 da Constituição, que diz que o menor de 18 anos é inimputável. É digno de Primeiro Mundo, mas, aplicado a um país subdesenvolvido, não funciona. É uma lei moderna para um país de miseráveis”.

Ambos acreditam que menores de idade que cometem delitos leves podem e devem ser recuperados. Mas, como a maioria dos defensores da alteração da idade penal, consideram que há também criminosos cruéis e irrecuperáveis que se escondem por trás do ECA. Para eles, o Estatuto garante a impunidade para o jovem criminoso, que tem plena consciência disso e abusa da proteção da lei. E é por isso que parentes e muitas associações de vítimas da violência exigem mudanças na lei.

Segundo Damús, a maioria da população é a favor da antecipação da maioridade penal para crimes mais graves. “Não importa a opinião do senador, do presidente ou da ministra. Eles estão lá para legislar e governar para o povo e não são sensíveis ao que a população quer”, critica. Para ele, um plebiscito seria a melhor forma de saber o que a população deseja fazer com os jovens que cometem crimes. Para Caffé, essa seria a forma mais democrática de mudar a lei, pois está prevista na Constituição.

Apesar do clamor popular, as entidades de direitos humanos fincam pé na manutenção da maioridade penal aos 18 anos. A posição “contra a corrente” dessas organizações é a responsável por uma certa fama de "defensoras dos bandidos", e não das vítimas. Muitos questionam se não seria o caso de rever essa posição e, junto com a população brasileira, procurar encontrar uma saída razoável e democrática. A diretora do Ilanud acredita que não: “As entidades de direitos humanos defendem um projeto de sociedade mais justo, igualitário e seguro, em que não vivamos numa situação de tamanha violência. As organizações insistem na não redução da idade penal porque alterar isso não vai significar uma sociedade mais segura. Isso é uma ilusão. A sociedade deve exigir outras respostas dos nossos governantes”.

Enquanto os governantes não dão as respostas esperadas, os parentes das vítimas correm contra o tempo para tentar envolver a sociedade nesse debate. Porque sabem que a mobilização, alimentada por cada crime bárbaro, dura apenas o tempo de sua digestão.

Luísa Gockel

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