Autor original: Luísa Gockel
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Não demorou a reação dos movimentos de luta contra a aids e do Programa Nacional de DST e Aids, que divulgou nota de esclarecimento rebatendo enfaticamente os argumentos do arcebispo. Segundo a nota, “o Estado brasileiro é laico e a prática de abstinência e o ‘autocontrole’ não são prerrogativas do Estado, mas questões de foro íntimo de cada pessoa, e de nenhuma forma podem servir de base na construção de políticas públicas”.
Para Roberto Pereira, coordenador do Centro de Educação Sexual (Cedus) e do Fórum ONG/Aids do Rio de Janeiro, essa polêmica é antiga, mas requer fôlego e empenho dos movimentos sociais. “Não podemos ser ingênuos, porque a fala da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e de uma pessoa como dom Eugênio Sales ainda tem um peso muito grande na condução de várias políticas no país”, alerta.
Antes disso, no dia 7 de março, a menos de dois meses da visita do papa Bento XVI ao Brasil, o presidente Lula defendeu publicamente o uso do preservativo. Pereira comemora: “Foi um momento marcante porque, pela primeira vez na história, um presidente da República assume publicamente o dever do Estado de participar desse processo das discussões acerca da sexualidade nas escolas e a própria questão da camisinha”.
Rets - Não é a primeira vez que a Igreja se manifesta contra o tema da educação sexual. Você acredita que essa é uma divergência produtiva, que traz o debate à sociedade?
Roberto Pereira - Para começar, essa nota de dom Eugênio Sales não é novidade, e parece que as notas dele se repetem ao longo dos anos. Cito um caso no Cedus [Centro de Educação Sexual]. Em 1994, terminamos um convênio com a Prefeitura para trabalhar com educação sexual com a rede municipal de ensino e a rede municipal de saúde. Quando a Prefeitura fez a divulgação desse trabalho na imprensa, saiu uma nota de dom Eugênio Sales, quase nos mesmos termos, sobre toda essa questão, falando que a sexualidade deve ser tratada pelos pais e que a camisinha não protege. Lembro que na época ele defendia que o prefeito deveria ser enquadrado no Código Penal porque estava incitando os jovens a incorrerem em riscos, porque a camisinha não protegia.
É claro que, quando vivemos numa sociedade democrática, essas forças de todos os setores são normais, mas não podemos facilitar com eles, porque essas forças reacionárias tentam o tempo todo impor a sua visão de mundo como hegemônica. A Igreja Católica se comporta de forma fundamentalista. Só existe ela e os seus dogmas, e tentam implementar essa visão até nas políticas de Estado.
Muitas vezes essas visões reacionárias se complementam. A posição do Vaticano em relação ao homossexualismo e ao uso da camisinha pouco difere da visão que os países islâmicos têm. A questão dos direitos fundamentais das mulheres, que já esteve em votação nas Nações Unidas e em muitas conferências internacionais, também é tratada de forma muito similar pela Igreja Católica e pelos países islâmicos.
As recentes declarações do papa reafirmando os dogmas da Igreja não nos preocupam se forem mantidas no âmbito da Igreja, porque é um direito individual das pessoas abraçar os dogmas da sua Igreja. Mas, no momento em que essa visão de mundo quer pressionar os governos, não podemos ser ingênuos, porque a fala da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e de uma pessoa como dom Eugênio Salles ainda tem um peso muito grande na condução de várias políticas no país.
O que defendemos o tempo todo é a questão do espaço democrático. O conflito de idéias é interessante, mas desde que se trabalhe com a idéia de que o outro pode ser diferente e que, por mais diferente que seja, ele não fere a dignidade humana. São apenas formas diferenciadas de ver o mundo. Isso é saudável. O que me preocupa é a pressão que se faz pelo uso desmedido de determinadas visões como se fossem exclusivas e definitivas.
Rets - Vemos a atuação da bancada evangélica no Congresso Nacional, que muitas vezes legisla baseada em dogmas religiosos. Como é possível lidar com esse tipo de comportamento?
Roberto Pereira - Agora mesmo, o movimento de homossexuais está muito preocupado, porque várias votações no Congresso vêm sofrendo pressões muito fortes por setores evangélicos. Aqui mesmo, no estado do Rio, recentemente, um deputado estadual, o pastor Édino Fonseca, tentava criar um fundo público para o tratamento de homossexuais que quisessem se “curar”. E algumas pessoas que amparavam essa idéia na época diziam que está ocorrendo uma invasão do homossexualismo no mundo todo e que eles estariam se infiltrando para derrubar as estruturas de poder.
Isso, num primeiro momento, parece engraçado. Mas imagine o impacto dessas idéias na cabeça de quem já tem uma forma preconceituosa de ver o mundo e que não respeita as diferenças. Até as falas dos deputados que eram contra o projeto eram assustadoras. Um deputado disse que ia votar contra porque o dinheiro do Estado não era para ser usado com esse tipo de gente. E as pessoas vaiavam na platéia, e ele dizia: “O que vem de vocês não me interessa. Vocês não são nada para mim”. Então esse é um aliado ou não?
Rets - Existem alguns segmentos da Igreja que fazem um trabalho de prevenção e assistência em relação ao HIV. Você acredita que iniciativas como essas podem ajudar a imprimir uma outra visão dentro da Igreja?
Roberto Pereira - É sempre importante dizer que as falas de evangélicos e da Igreja Católica em relação a esse tema, apesar de oficiais, não são hegemônicas. Existem instituições totalmente ligadas à Igreja Católica que fornecem preservativos e abrem espaço para discutir sobre gravidez na adolescência e homossexualidade. Existe uma pastoral gay dentro da Igreja Católica que não é muito difundida e discute a questão da homossexualidade. Felizmente, existem pessoas dentro dessas estruturas que pensam que é possível entender o diferente.
Rets - Desta vez o presidente Lula falou a favor da camisinha e o Programa Nacional de DST e Aids se manifestou rapidamente contra o artigo de dom Eugênio Salles. Você acredita que podemos estar iniciando outra era, em que o Estado laico brasileiro esteja saindo da teoria para a prática?
Roberto Pereira - Eu estava presente no evento em que o presidente Lula participou, e lógico que a gente sabe que aquilo foi um ato político. Mas foi um momento marcante porque, pela primeira vez na história, um presidente da República assume publicamente o dever do Estado de participar desse processo das discussões acerca da sexualidade nas escolas e a própria questão da camisinha. Há muitos governos que o movimento social de luta contra a aids vem tentando afetar a presidência da República ou os ministros.
Temos que aproveitar essas pequenas aberturas para provocar outras formas de pensar o mundo. Não podemos fechar os olhos para isso porque, apesar da aparente liberdade sexual, o Brasil tem uma das maiores taxas de crimes por razões homofóbicas. Em quase 100% dos casos, não existe investigação e, quando existe, os agressores não são punidos, porque é institucionalizado que, se é homossexual, foi ele que procurou e foi, de certa forma, o causador do ato. Isso tudo é questão de educação.
A fala do Lula foi importante por marcar um compromisso. Mas é interessante notar como a imprensa reagiu a essa fala. Não só a essa, mas também quando ele falou que de sexo todo mundo gosta e que se tem de aprender na escola como fazer direito. E também a fala durante a visita do presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, sobre o ponto G. Houve uma série de reações na imprensa, colocando com um tom pejorativo essas alusões, porque a sexualidade ainda é muito ameaçadora. Apesar de vivermos num mundo que se vende e vive sexo o tempo todo, temos uma relação hipócrita com a sexualidade.
Rets - Você acredita que a vinda do papa pode trazer alguns retrocessos por parte do governo?
Roberto Pereira - Obviamente, algumas questões serão bastante atacadas, como a da camisinha e a união de pessoas do mesmo sexo. Mas a idéia é que a sociedade civil organizada e as pessoas que tenham uma visão mais progressista em relação a esses temas possam dizer: "tudo bem, vocês pensam assim, mas tem gente que pensa diferente". Temos que pensar o que é melhor para a população, de uma maneira geral, baseados em dados reais e não em dogmas.
O Fórum do Rio vai divulgar uma campanha que fizemos, com a cantora Daniela Mercury na forma de um anjo e com uma camisinha, dizendo "Pecado é não usar". A Igreja não pode fechar os olhos para os órfãos da aids, e tem trabalhos muito bons na assistência às vítimas. Não pode fechar os olhos para a camisinha e tem de ter uma visão realista do mundo.
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