Autor original: Luísa Gockel
Seção original: Notícias exclusivas para a Rets
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De todos os argumentos usados contra a obra, um parece ser proferido em uníssono pelas lideranças envolvidas nas manifestações: o projeto seria a edição moderna da indústria da seca e estaria inaugurando uma nova era, a do hidronegócio. “Os grandes beneficiados com a obra serão as empreiteiras e as empresas de consultoria. É só vermos quem são os grandes financiadores da campanha de Lula e vão estar lá a Votorantim e a Gerdau, empresas que certamente vão faturar alto com esse projeto”, acusa o representante da Articulação São Francisco Vivo e da Comissão Pastoral da Terra (CPT), Ruben Siqueira.
De acordo com o Relatório de Impactos Ambientais (Rima), a região onde será executado o projeto encontra-se na área do Polígono das Secas, abrangendo parcialmente os estados de Pernambuco, Ceará, Paraíba e Rio Grande do Norte. Segundo o planejamento, dois sistemas independentes, denominados Eixo Norte e Eixo Leste, captarão água no rio São Francisco entre as barragens de Sobradinho e Itaparica, no estado de Pernambuco. Um sistema de canais, reservatórios e usinas hidrelétricas levará a água para o abastecimento de municípios do Semi-Árido, do Agreste pernambucano e da região metropolitana de Fortaleza. A previsão é que as obras estejam concluídas de 15 a 20 anos após seu início.
Um projeto de 160 anos
“Consta que essa história surgiu em 1947. Houve uma grande seca e D. Pedro II disse que venderia as jóias da coroa, se fosse preciso, para resolver o problema da seca no Nordeste”, diz Ruben Siqueira. Logo surgiu a proposta de construir dois canais para levar a água do rio São Francisco ao Semi-Árido. “Claro que não foi feito na época porque não havia tecnologia nem engenharia suficientes para a execução da obra”, conta o sociólogo.
Uma das principais reclamações dos movimentos sociais é a falta de diálogo do governo com a sociedade civil. “Debate nunca houve, e quando houve não foi pra valer. O que havia era um acordo com dom Luiz Cappio. Mas o que veio depois das eleições foi o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), em que a obra de maior orçamento era a transposição”, afirma Siqueira. Segundo ele, dos R$ 12 bilhões destinados à infra-estrutura hídrica, a transposição ficaria com praticamente metade: R$ 6,6 bilhões.
O coordenador-geral do Projeto de Integração do Rio São Francisco com Bacias Hidrográficas do Nordeste Setentrional, Rômulo Macedo, contesta os números. “O valor de R$ 6,6 bilhões não é real. O projeto continua orçado em R$ 4,5 bilhões, que representam um terço dos recursos destinados para toda a área de recursos hídricos”, contesta. Segundo o coordenador, não houve paralisação do diálogo. Muito pelo contrário, afirma. “Esse foi o projeto mais debatido e discutido da história da engenharia brasileira. Só de audiências públicas oficiais fizemos mais de 15 na região. Desde 1994, fizemos mais de 400 palestras e seminários, a maioria dentro do vale do rio São Francisco. Então não há do que reclamar”, sentencia Macedo. Para ele, o único problema de comunicação é a falta de um plano mais abrangente que informe a esclareça a sociedade sobre a real importância do projeto de transposição.
Mesmo sem diálogo com o Planalto, o assessor do Programa de Convivência com o Semi-Árido da Cáritas Brasileira, Luís Cláudio Mandela, acredita que o saldo do acampamento de março foi positivo. “Tínhamos três objetivos: pautar novamente a discussão sobre a transposição com a sociedade, formar novas lideranças, falando um pouco de políticas públicas em relação à água, e fazer o dialogo com os três poderes”, explica. A partir de agora, ele acredita que esse processo vai se reproduzir na região do Semi-Árido, nos estados que seriam afetados pelas obras da transposição.
“Estamos mobilizando a população dentro da bacia e temos tido um apoio muito grande. Por outro lado, no estados que teoricamente seriam beneficiados pela transposição há uma desinformação muito grande por parte da Igreja, dos sindicatos e de alguns movimentos sociais. Os políticos, em geral, ainda acham que o projeto da transposição é o que se alardeia na mídia, que vai beneficiar a população de 12 milhões de habitantes”, lamenta Mandela, tocando em mais um ponto polêmico do projeto. “Esse número já caiu por terra. A água para consumo humano representa 3% ou 4% da água total para o projeto”, afirma.
Segundo o representante da Cáritas, 70% da água vai para irrigação, culturas extensivas em água e para mineração. O coordenador do projeto rebate as críticas: “A água vai para o sistema produtivo. E isso é ruim? Só pode ser muito bom”, diz Macedo. Segundo ele, a água excedente, que se perderia no mar, será utilizada pelos estados para a indústria e para projetos de irrigação. “As pessoas precisam de água para o seu sistema produtivo”, defende Macedo. Ele explica ainda a polêmica em torno dos 12 milhões de brasileiros que o projeto vai beneficiar, de acordo com o Ministério da Integração. “Na região vivem hoje cerca de 9,8 milhões de pessoas. Daqui a 30 anos, viverão ali 12 milhões de pessoas. Os projetos hidráulicos são assim. Temos de pensar no horizonte de atendimento do projeto”, diz o coordenador.
Ruben Siqueira é crítico em relação à utilização das águas do São Francisco em atividades com uso intensivo da água. “Quando eles falam em segurança hídrica nessa região, é a segurança dessas atividades intensivas em água. Um quilo de camarão gasta 50 mil litros de água para ser produzido!”, ressalta o sociólogo. O representante da Cáritas concorda: “Esse tipo de produção não serve para uma região que tem déficit hídrico. Gastar R$ 6,5 bilhões pra fazer uma produção que pode ser feita numa região com quantidade mais abundante de água é inconcebível do ponto de vista da lógica econômica e até capitalista”, justifica Mandela.
Rômulo Macedo acha que as críticas não procedem, porque a cultura do camarão não utiliza água doce. Na página 3 do Relatório de Impactos Ambientais, no entanto, lê-se: “O empreendimento viabilizará o fornecimento de água para vários fins (abastecimento humano, irrigação, dessedentação de animais, criação de peixes e de camarão), numa área que, atualmente, possui cerca de 12 milhões de habitantes”.
Segundo Ruben Siqueira, o projeto diz que os usos insignificantes serão subsidiados. Mas ele defende que a abrangência do projeto é muito pequena, porque a água vai para onde já existe água. “O projeto concentra a água onde já está concentrada: nos grandes açudes, para fazer uso econômico”, critica o representante da CPT. Mas o coordenador do projeto reage: “Seria uma estupidez muito grande se nós não levássemos a água para onde ela já existe. Eles não sabem o que estão falando. O certo é isso, senão não haveria a integração das águas do São Francisco com as águas locais. Em vez de a água se perder no Oceano Atlântico, fica armazenada nesses reservatórios. Se fôssemos colocar em outras áreas, a água se perderia da mesma forma”, explica.
Impactos: quantidade ou intensidade?
No encontro com a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, as lideranças da sociedade civil questionaram o licenciamento ambiental concedido pelo ministério. Ruben Siqueira conta que a ministra justificou o licenciamento da obra com base em pareceres dos seus técnicos. “Não soube justificar por que 12 impactos são positivos e 24 são negativos, mas ainda sim o licenciamento foi concedido”, reclama. O coordenador do projeto, no entanto, não acredita que a ministra não soubesse explicar. “Ela é muito preparada e sabe exatamente o que faz”, defende Macedo. E rebate: “Impacto não se mede por quantidade e sim por qualidade. O risco de picada de cobra em operário é um impacto negativo. O impacto positivo é o abastecimento de água de 12 milhões de pessoas. Qual vale mais?”, questiona.
De fato, o risco de acidentes com animais peçonhentos está entre os impactos positivos listados no Rima. Mas esse risco figura ao lado de ameaças como a possibilidade de interferências com populações indígenas, a diminuição da diversidade de fauna terrestre, o risco de redução da biodiversidade das Comunidades Biológicas e o início ou a aceleração dos processos de desertificação. Entre os possíveis impactos negativos também está listada a possibilidade de haver especulação imobiliária nas várzeas potencialmente irrigáveis no entorno dos canais.
Segundo Alzeni Tomáz, do Conselho Pastoral dos Pescadores (CPP), esse impacto já pode ser percebido na região. “Há vários pequenos agricultores que estão sofrendo com especulação dos latifundiários, que querem comprar as terras mais baratas agora”, relata. Outro problema que deve ser enfrentado se as obras começarem é a necessidade de deslocamento da população. “Há agrovilas de pessoas reassentadas por conta da construção da barragem de Itaparica, que terão de ser deslocadas de novo”, explica.
Alzeni, que diz já ter nascido carregando lata d'água na cabeça, não vê possibilidade de a obra ser levada adiante. “O governo pode até começar, mas não vai conseguir terminar", garante. "O povo da Bacia está bastante convencido de que tem de impedir a transposição. Dada a forma como o governo vem tratando essas pessoas, elas estão dispostas a parar a obra e a ir à luta”. O clima, diz ela, é de grande desconfiança, pois há pouca informação para a população que vive na região setentrional. “São pessoas que já estão trabalhando as tecnologias de convivência com o Semi-Árido e sabem que são as ferramentas mais baratas e eficientes para gerenciar a água”, defende.
Mandela concorda. E explica que a luta contra a transposição segue duas linhas de trabalho. “Uma é a revitalização do São Francisco e a outra é uma alternativa a ser apresentada para o desenvolvimento do Semi-Árido através de uma agricultura e de uma economia baseadas na convivência com o Semi-Árido”. Segundo ele, a alternativa proposta pelo governo é a produção através do agronegócio, a partir de uma tecnologia de ponta que, a cada 100 hectares, emprega duas pessoas, degrada o meio ambiente e usa água demais. “Chega desse modelo de desenvolvimento que não serve para desenvolver a vida dos pobres! Estamos dispostos a mostrar que existe um outro tipo de desenvolvimento mais importante para o povo da bacia e do setentrional”, completa Alzeni.
Atlas do Nordeste
No fim do ano passado, a Agência Nacional de Águas (ANA) lançou o Atlas Nordeste - Abastecimento Urbano de Água. O relatório é um estudo de planejamento de alternativas de oferta de água para as sedes municipais do Nordeste do Brasil e do norte de Minas Gerais, totalizando um universo de mais de 1.300 municípios e 34 milhões de habitantes. De acordo com a ANA, o Atlas procurou identificar onde está a água, como e com que qualidade ela chega às demandas municipais e qual a melhor forma de levar esse recurso, a menores custos, às populações com abastecimento não satisfatório.
Segundo Siqueira, o lançamento do Atlas encorajou os movimentos sociais a irem a Brasília. “O Lula, por causa da audiência com o dom Luiz Cappio, em dezembro de 2005, disse que se houvesse um outro projeto que resolvesse o problema ele não insistiria na transposição. Quando apareceu o Atlas da ANA, achamos que era a hora de voltar a conversar com o presidente”, explica o sociólogo, que diz que o trabalho é inédito no Semi-Árido. “São 530 obras que resolveriam o abastecimento das cidades com mais de 5 mil habitantes de nove estados. Ao todo, 1.112 municípios seriam beneficiados. É o que sempre falamos: o problema não é escassez, mas sim gestão”, diz.
Para Ruben Siqueira, "caiu a máscara". Ele considera que, com o lançamento do Atlas, fica evidente que a transposição não resolve o problema do abastecimento humano, porque senão não seria necessário fazer outras obras. Mandela, no entanto, lembra que no último dia 15 a ANA divulgou nota de esclarecimento afirmando que o Atlas e o projeto de transposição são complementares. “Em primeiro lugar, o Atlas não pode ser considerado um programa ou projeto. É, na verdade, um portfólio de soluções técnicas eficientes para serem eventualmente financiadas com recursos públicos, por iniciativa dos poderes executivo e legislativo, federal, estaduais e municipais, ou mesmo com recursos privados”, diz o texto.
“Esse é um debate que temos que ter. Temos de colocar os técnicos da ANA para debater essas questões com a sociedade civil e os técnicos das universidades, para sabermos qual o real objetivo do projeto de transposição”, propõe Mandela. O coordenador do projeto, porém, reafirma a idéia de que uma iniciativa não exclui a outra. “São soluções complementares", contemporiza Macedo. "O Atlas Nordeste identificou a necessidade de abastecimento de água em cidades com mais de 5 mil habitantes. A transposição vai levar água para todas as cidades, independentemente da população que tenham. Das 391 cidades, 138 vão receber saneamento ambiental completo. Isso não é falado pelos que são contra o projeto”, critica o representante do Ministério da Integração. Segundo ele, o projeto é indispensável para o desenvolvimento da região. E garante: parte da água, por meio de uma outorga da ANA, será retirada para consumo humano.
Mandela chama atenção para os perigos de uma obra com essas proporções num rio que já sofre com a degradação ambiental. “Se pensarmos no rio como uma grande calha que passa grande quantidade de água, é possível transportar a água do São Francisco. Mas o rio não é só isso. Estudos apresentados pelo Instituto de Gestão das Águas de Minas Gerais apontaram que 1.000 nascentes do São Francisco já secaram. Há um nível de degradação e poluição muito grande. Tudo isso faz crer na necessidade de revitalização urgente da bacia. É inviável tirar água de um rio que está nessa situação”, alerta.
Ruben Siqueira concorda e teme que o projeto se transforme na “Transamazônica do Lula”. “Não esperávamos que em pleno século XXI tivéssemos a reedição da indústria da seca de forma tão poderosa e com uma quantidade de dinheiro como jamais foi gasta em nome da sede humana no Semi-Árido brasileiro”, afirma. Para Mandela, o projeto está claro. Falta, agora, convencer a população a lê-lo. “Essa é nossa próxima tarefa. Precisamos aumentar o nível de indignação da sociedade, para mudar a correlação de forças”, diz.
Segundo Rômulo Macedo, nenhum trâmite no Supremo Tribunal Federal impede o início da obra, apesar de as lideranças da sociedade civil ainda considerarem que há uma longa batalha jurídica pela frente. “O ministro do STF Sepúlveda Pertence, em dezembro do ano passado, derrubou todas as liminares. Não existe impedimento jurídico", assegura o coordenador geral de projeto. "Só estamos aguardando o licenciamento ambiental de instalação para iniciar as obras”, garante. Segundo ele, as novas liminares também não impedem nada até que sejam julgadas. “Temos convicção de que a reação contra o projeto, que está cada vez mais arrefecida, é por falta de embasamento técnico necessário para entender sua importância, o que é normal”.
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