Autor original: Marcelo Medeiros
Seção original: Novidades do Terceiro Setor
![]() Imagem: Fernanda Webler | ![]() |
A motivação vem de levantamento do Tribunal de Contas da União feito no ano passado. O TCU apurou irregularidades no repasse de recursos públicos a 28 organizações não-governamentais entre 1999 e 2005. Além disso, há suspeitas de fraudes com outras entidades em 2006.
Para as ONGs, a CPI, na verdade, estaria servindo a interesses políticos, como o desgaste da administração Lula. Além disso, sua instalação poderia atrapalhar a discussão que vem sendo feita no Congresso desde 2003 sobre o marco legal do terceiro setor.
“A abordagem da CPI generaliza e criminaliza todas as organizações sociais em vez de apoiar uma discussão mais ampla sobre a atuação delas. Além disso, ela esvazia o debate sobre o Marco Legal das ONGs que está sendo promovido no Senado, com o objetivo justamente de construir uma legislação mais condizente com a realidade e que regule a transferência de recursos para essas organizações”, analisa Tatiana Dahmer, membro da Diretoria Executiva da Associação Brasileira de ONGs (Abong) e também integrante da Fase-RJ, uma das organizações da sociedade civil mais antigas - tem mais de 40 anos - e ativas do país. Para ela, essa CPI reflete muito mais uma disputa política dentro do Congresso, que busca desestruturar as bases de apoio do governo Lula.
Senadores, no entanto, afirmam que a intenção da CPI é justamente deixar as generalizações de lado e separar boas e más entidades. Também descartam qualquer possibilidade de manipulação política, baseados no argumento de que a proposta de criação de comissão surgiu em novembro do ano passado e que só agora ela será implementada, depois de negociações com a bancada governista.
“Claro que vamos examinar irregularidades pontuais, mas o mais importante é, como tenho dito à exaustão, separar o joio do trigo e colaborar na elaboração deste marco legal, que preserve as instituições que prestam relevantes serviços ao país e, ao mesmo tempo, os recursos públicos”, disse à Rets o senador Heráclito Fortes em entrevista por email [veja a íntegra ao lado].
A CPI vai trabalhar durante 120 dias e não 60, como havia sido proposto no requerimento. Outra modificação foi a extensão do período de investigação de 2003 para 1999, abrangendo, portanto, o segundo mandato do governo Fernando Henrique. Seguindo a proporcionalidade dos partidos no Senado, o PMDB terá três representantes na comissão. PFL e PSDB terão dois cada, enquanto PT, PTB, PDT e PR terão um senador cada. Os nomes dos componentes da comissão não tinham sido divulgados até o fechamento desta matéria.
Histórico
A proposta de criação da CPI das ONGs surgiu em setembro do ano passado a reboque de escândalos envolvendo um teórico favorecimento de organizações lideradas ou compostas por membros do Partido dos Trabalhadores (PT). Veio também na esteira de relatório do TCU que apurava irregularidades em convênios de 28 entidades com o Estado.
A CPI acabou sendo adiada por não haver tempo hábil para terminar as investigações, já que ela deveria apresentar seus resultados até 31 de janeiro, último dia da legislatura passada. Houve um acordo entre a bancada governista e a de oposição para instaurar a comissão somente em 2007. O requerimento de abertura da CPI foi apresentado novamente pelo senador Heráclito Fortes no início de março. O congressista do Piauí conseguiu reunir 77 assinaturas dos 81 membros do Senado. Ou seja, membros do governo também apoiaram a CPI.
Entre as acusações que motivaram a instauração estão o aumento do repasse de verbas para a Unitrabalho, fundação universitária voltada para pesquisas sobre trabalho. A entidade possui convênio com o Ministério do Trabalho desde a gestão Fernando Henrique, mas seus recursos aumentaram significativamente com o início do governo Lula. Foi de menos de 1 milhão em quatro anos de gestão FHC para R$ 18,5 milhões em 2006, de acordo com a ONG Contas Abertas, que monitora o Orçamento Federal. Há ainda um repasse de R$ 4 milhões vindos da Fundação Banco do Brasil. Uma das razões apontadas pela oposição é a presença de Jorge Lorenzetti, amigo de Lula e ex-coordenador da equipe de inteligência da campanha presidencial do PT, na lista de colaboradores da instituição.
Na época, a oposição afirmou que parte dos recursos destinados à Unitrabalho foram direcionados para a compra de um dossiê que prejudicaria a candidatura de José Serra (PSDB) ao governo de São Paulo. Lorenzetti não foi enquadrado em nenhum crime, mas outros integrantes do PT, sim, em crime eleitoral. Outra acusação que estimulou a criação da CPI foi o repasse de R$ 31 milhões, pela Petrobrás, para ONGs teoricamente ligadas ao PT.
A proposta do senador Heráclito Fortes era delimitar o período de investigação de janeiro de 2003 a dezembro de 2006, ou seja, o período do primeiro mandato do governo Lula. A bancada governista, no entanto, conseguiu estender o prazo para 1999. Assim, entraram na lista de relações a serem detalhadas convênios estabelecidos entre o governo Fernando Henrique e a ONG Comunidade Solidária, por exemplo. A Comunidade Solidária era comandada pela então primeira-dama, Ruth Cardoso. "O ideal era que fosse até Cabral", brincou o senador piauiense à época.
Além da questão política, nas denúncias de ONGs envolvidas diretamente com membros do governo, no segundo semestre do ano passado houve várias notícias de ONGs fraudulentas. Em novembro, por exemplo, 16 pessoas acusadas de desviar recursos públicos por meio de uma ONG voltada para o atendimento de pessoas com câncer foram presas no Paraná. Acusações de desvios de recursos também surgiram no governo do Rio de Janeiro. A seqüência de casos fez surgir, de acordo com a Abong, um clima de “criminalização” das ONGs.
Medidas
A solução apontada para esses problemas varia de acordo com a fonte, mas todos concordam que mudanças no marco legal do terceiro setor são necessárias.
Para o senador Heráclito Fortes, é preciso aumentar a fiscalização sobre o terceiro setor: “temos até uma contradição em termos: se as organizações se dizem não-governamentais, não deveriam viver às custas do governo. O que temos visto é que até quem às vezes se propõe a fiscalizar o governo não é fiscalizado por ninguém. É necessário criar mecanismos de controle e avaliação de projetos financiados com recursos públicos”.
O senador Mozarildo Cavalcanti (PTB-RR), proponente e presidente da primeira CPI das ONGs (de 2001 a 2002), diz que aquela comissão serviu para alertar sobre problemas [Veja o relatório final desta CPI em Links Relacionados e as suas motivações e temas na matéria "Presença na Amazônia foi foco da primeira CPI". Ambos estão disponíveis ao lado, à direita]. “A CPI das ONGs serviu para alertar a sociedade, o Ministério Público e o TCU para a existência de desvio de verbas, de recursos e de finalidades de entidades do terceiro setor, como ficaram demonstradas pela CPI, pelo TCU e por várias denúncias do Ministério Público e por ações da Polícia Federal”, disse Cavalcanti à Rets, por email.
Ele acredita que esta comissão de inquérito deva servir não só para apurar possíveis irregularidades como também para estabelecer um marco legal. “Fundamentalmente, acho que os objetivos devem ser apurar irregularidades nos repasses e aplicações de recursos públicos para o terceiro setor e estabelecer um marco regulatório como existe para qualquer área que utilize recursos públicos ou mesmo privados”, opina.
Apesar do noticiário e do amplo apoio dos senadores, a Abong divulgou nota, ainda em dezembro, em que questionava a criação da CPI. Nela afirmava haver interesses políticos por detrás da proposta da comissão e que não há necessidade de instaurar uma comissão de inquérito já que o TCU e o Ministério Público possuem mecanismos de fiscalização e resolução de problemas. Segundo a associação, há uma “falsa problematização de que não há instrumentos de regulação dessas entidades nem de fiscalização do acesso ao dinheiro público”.
Com ela concorda a professora titular da Escola de Serviço Social da UFRJ Leilah Landim, especialista em terceiro setor. A professora acha importante a discussão sobre a transparência, prestação de contas e controle social da ONGs, No entanto, acredita que a CPI está sendo politizada de forma negativa. “É preciso pressionar para que a CPI não seja um instrumento político de oposição ao governo. O que está em pauta é a própria legitimidade das ONGs. Da forma como foi proposta, a comissão contribui para a confusão sobre o papel das ONGs, e não para diferenciar os vários tipos de atuação que podem existir”, defende.
O noticiário, de acordo com Tatiana Dahmer, levou a um clima de perseguição às entidades que se sobrepôs a um ponto considerado por ela mais importante: o aperfeiçoamento da legislação. A Abong acredita que deve haver reformas na lei para que se “garantam a transparência e o controle social do uso dos recursos públicos sem nenhum tipo de discriminação contra as ONGs” e se “fortaleça a organização autônoma das cidadãs e dos cidadãos”, segundo a nota oficial da organização divulgada em dezembro.
Segundo Paulo Haus Martins, presidente da Comissão de Terceiro Setor da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), mudanças são necessárias para fazer com que as ONGs deixem de ser vítimas e se esclareça o papel de cada personagem do terceiro setor. “É preciso definir qual o papel das Oscips, das fundações, das organizações da sociedade civil. Quando se pensa numa nova legislação não necessariamente você está pensando em mudanças, e sim em esclarecimentos de sua função na sociedade”, explica [em entrevista a ser publicada na íntegra na próxima edição da Rets].
Para Leilah Landim, o termo ONG perdeu seu sentido original ligado à democracia e à luta pela cidadania. “O termo está desgastado e não reflete a diversidade de interesses existentes dentro da sociedade civil. É preciso apontar essas diferenças e explicitá-las para a sociedade”, comenta.
A confusão em relação ao papel - e interesse - de cada entidade pode ser explicada justamente pelo fato de qualquer entidade que não seja governamental ou empresa poder se encaixar nessa categoria. A rigor, podem se encaixar na categoria desde condomínios residenciais até clubes de golfe, passando por universidades e santas casas. Muitas destas entidades diferem em objetivos e métodos daquelas citadas por Leilah e que originalmente utilizavam a denominação ONG: as identificadas com promoção da cidadania e luta por direitos.
Vale lembrar que o termo “ONG” não existe juridicamente, mas serve de guarda-chuva para o universo das mais de 270 mil fundações, organizações da sociedade civil (OSCs), organizações da sociedade civil de interesse público (Oscips) e organizações sem fins lucrativos (OSFLs). O número - 270 mil - vem de uma pesquisa de 2004, realizada em parceira por Abong, Gife, IBGE e Ipea. Para cada forma jurídica de organização há regras diferentes no que se refere ao repasse de dinheiro público e função social. Levantamento do Contas Abertas mostra que de 2001 a 2006 a União repassou R$ 14 bilhões para as “ONGs”. Só em 2006, 4.536 organizações receberam recursos diretamente do governo federal. Em 2001, eram mil a menos.
Dadas as acusações de fraude e o desgaste citado por Landim, a Abong e outras entidades pediram ao governo que promovesse debates sobre a relação entre sociedade civil e Estado. No fim de novembro foi realizado o segundo Fórum Senado Debate o Brasil, cujo tema foi “Terceiro Setor – cenários e perspectivas”. Participaram membros do governo, do Legislativo e de diversas ONGs.
O evento citou a grande quantidade de projetos de lei que visam regular o terceiro setor e sua relação com o Estado. Porém, poucos foram adiante.
Marcelo Medeiros. Colaboraram Joana Moscatelli e Luísa Gockel.
Theme by Danetsoft and Danang Probo Sayekti inspired by Maksimer