Autor original: Fausto Rêgo
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![]() Charão, em entrevista à equipe da Rets, no Rio | ![]() |
Um trabalho invisível para muitos, mas vital para um sem-número de pessoas em regiões marcadas por tragédias. O cirurgião plástico Alexandre Charão é um entre tantos anônimos que voluntariamente se dispõem a engrossar o contingente de profissionais que prestam ajuda humanitária em ambientes marcados por guerras, conflitos ou catástrofes naturais. Dois dos seus 33 anos foram dedicados ao trabalho desenvolvido pela organização Médicos Sem Fronteiras (MSF) com esse universo de quase-esquecidos. Na Libéria pós-guerra civil, no Paquistão sacudido por um terremoto, na Indonésia afogada pela tsunami. Ao todo, dez missões em oito países. Repletos de vítimas também anônimas de tragédias que se repetem. Mas a vida segue. De volta ao Brasil, Charão retoma a vida normal e faz planos: o consultório em São Paulo, o atendimento gratuito num hospital público, um possível livro sobre essa experiência que deixa marcas profundas. E sonha dar continuidade, agora em seu país, à medicina humanitária e filantrópica. "Sempre gostei de trabalho voluntário, de levar a medicina a quem precisa mais, sem ter de ficar perguntando se tem convênio ou não", diz. Foi um pouco dessa história, com reflexões marcadas pela sobriedade e pelo realismo, que ele contou à Rets em sua passagem pelo Rio de Janeiro, horas depois de ter recebido, no dia 21 de março, o prêmio Faz Diferença, oferecido anualmente pelo jornal O Globo.
Rets – Como é que você chegou até os Médicos sem Fronteiras?
Alexandre Charão – Tinha visto uma reportagem, lá por 1994, quando ainda estava na faculdade, e guardei aquilo na cabeça. Achava que um dia trabalharia com eles, mas queria me formar, fazer minha especialização primeiro. E assim que acabei, em 2004, fui bater nas porta deles: “Quero trabalhar com vocês”.
Rets – O que leva uma pessoa comum a sair do seu país e ir para uma região de conflito, um lugar de onde as pessoas normalmente estão saindo?
Alexandre Charão – Eu gosto de operar, é a minha profissão. E sempre gostei de viajar, já tinha trabalhado em lugares isolados do Brasil. Assim que acabei a faculdade, antes de fazer especialização, fui para o interior do Mato Grosso. Sempre gostei de trabalho voluntário, de levar a medicina a quem precisa mais, sem ter de ficar perguntando se tem convênio ou não.
Rets – O seu contato foi com o MSF França...
Alexandre Charão – Foi, mas o escritório aqui [no Brasil] é MSF Bélgica. Então os novos brasileiros estão sendo chamados pelo MSF Bélgica. A França tem muito mais missão cirúrgica. Hoje em dia são 15, a Bélgica deve ter três ou quatro. Pra um cirurgião ou pra um anestesista, a França oferece mais escolhas. Se bem que eu nunca escolhi, não. Eles ofereciam algum país... “Estamos precisando de gente no Burundi, você quer ir? Quero!”. Nunca disse "não". Você tem direito de dizer "não", aí então eles te oferecem outra missão.
Rets – E como é a mecânica? Vocês voltam à base na França entre uma missão e outra, ficavam trabalhando lá?
Alexandre Charão – Na França eu tinha visto apenas de turista, não poderia trabalhar lá. Eu trabalhava um pouco dentro na sede em Paris, mas dentro do MSF, em alguma coisa vinculada à minha missão. Você traz do terreno alguma coisa do que está acontecendo. Por exemplo: não estamos conseguindo operar porque tem muita perna quebrada e falta fixador externo, que a gente não tem, então precisa melhorar esse atendimento lá. Essa resposta do terreno é importante pra eles.
Ficava pouco tempo por lá, acho que o máximo de uma só vez foi de dez dias. E era o tempo de eles fazerem os briefings [informes] da próxima missão. Não é pegar a pessoa e dizer: “Você vai ficar um mês lá e pronto!”. Eles dizem qual é o país, como é o país, a população, quem governa, se é uma ditadura, como é o sistema de saúde... você tem de saber onde você está se metendo. E o MSF tem pessoas muito sábias na parte de geopolítica.
Nesses dois anos de trabalho, também vim ao Brasil algumas vezes, até porque cansava, eu era o único cirurgião nas missões de que participei. Lembro que na Libéria eram 210 cirurgias por mês, trabalhando todos os dias. Eram baleados, apendicite, queimados, muita infecção de perna, muita cirurgia em criança... e doenças como a febre tifóide, que já foram erradicadas na maior parte do planeta, mas existem lá. Coisa que eu conhecia apenas de livro. Quando atendi o primeiro caso, no Burundi, não parecia com nada que eu conhecia. Aí o enfermeiro falou: “Acho que é febre tifóide”. Eu perguntei: “Isso ainda tem aqui?”. Ele disse: “Tem, doutor, tem muito”.
Rets – Alguma missão foi mais marcante? A Libéria, por exemplo, você esteve lá durante a guerra civil?
Alexandre Charão – Não, cheguei depois. A guerra acabou em 2003, cheguei lá em 2005. Mas estava tudo destruído. Monróvia é uma cidade enorme, com dois milhões de habitantes, e não tem luz elétrica. Quem pode compra um gerador.
Mas todas as missões foram marcantes. Cada uma tinha a desgraça daquele país e, por outro lado, um povo sempre muito hospitaleiro, apesar de tudo. São muito pobres, muito miseráveis, mas sempre muito alegres. Pessoas que não têm nada, mas vão compartilhar comida, o chá...
Na Indonésia, por exemplo, a gente ouviu e viu muitas histórias tristes de pessoas que perderam tudo: bens materiais e família. Teve o caso de uma criança que morava num vilarejo que foi arrasado. E ela tinha ido ao médico numa cidade grande, a avó levou. Quando voltaram, não tinha mais nada, só sobraram a avó e ela. E o resto da comunidade acabou adotando a criança. Eles são muito unidos, muito solidários. O país ainda sofre enormemente, o sal que se depositou nos campos diminiu a produtividade de arroz e de outras plantações, mas eles estão lá, batalhando de sol a sol. Colocam aqueles chapéus enormes e saem cedinho. A gente indo pro hospital e eles saindo pra trabalhar. É um povo bem perseverante. Não só no trabalho, mas na dor, na tragédia.
E a religião ajuda muito a população, tem um papel predominante, tanto para os muçulmanos quanto para os budistas. O Islã dita algumas regras e condutas de vida. Ser hospitaleiro também faz parte, pois o Islã foi fundado em áreas muito secas, desérticas, então todo mundo que chegava numa caravana deveria ser bem acolhido. E eles continuam com isso.
Rets – Ao mesmo tempo, existe o problema das diferenças culturais. As mulheres muçulmanas, por exemplo, não devem ser vistas sem roupa, mesmo numa sala de cirurgia. Como é que vocês lidavam com essa situação? Houve algum caso em que isso inviabilizou o atendimento?
Alexandre Charão – A gente tem de ser bastante flexível, não deixa de atender. Colocamos dentro da sala mais duas enfermeiras locais que falem a língua e expliquem. Com os médicos, elas sabem que têm de fazer assim. Se tiver um ferimento na perna, o médico vai ter de ver, então não se importam muito, não. Ou então algo assim: eu saía, as enfermeiras preparavam o que a gente chama de campos operatórios, uns panos assim. Aí cobriam a paciente e deixavam apenas o curativo exposto.
Na Indonésia, a gente estava na parte norte da ilha de Sumatra, onde a população fala um idioma local. Então havia a peculiaridade de a gente falar com a tradutora, que passava do inglês pro indonésio. Daí outra tradutora passava do indonésio pro dialeto. Então se conseguia uma anamnese pobre, muitas vezes a resposta não era precisa. Eu perguntava: “Há quanto tempo a senhora tem isso?”. Ela dizia: “Ah, desde que meu filho mais velho nasceu”. “Mas quantos anos tem seu filho mais velho?”. E isso com duas tradutoras, na pergunta e na resposta.
Rets – E pra montar uma estrutura, manter a assepsia em um lugar desses, como se faz?
Alexandre Charão – Geralmente a gente reabilita, reforma ou aumenta hospitais do governo. Na Indonésia a gente pegou um posto de saúde e transformou num hospital pequeno. Ou usamos hospitais em barracas, como foi no Paquistão.
![]() Na Jordânia, durante instalação de hospital para atender os vizinhos iraquianos | ![]() |
Na Jordânia (foto) a gente contou com o apoio do Crescente Vermelho jordaniano, então tínhamos um hospital bom. Mas, normalmente, Médicos sem Fronteiras importa tudo que precisa: bisturi, anestésico, gerador, autoclave para esterilizar... é muito difícil comprar nos mercados locais, poucos países têm isso, por isso a gente importa. Tem uma logística enorme, um centro de logística na França, em Bordeaux. Quando é urgente, vai de avião; quando não é, vai de navio. Na Indonésia, 48 horas depois do tsunami, já havia provisões, mantimentos enviados por MSF.
Rets – Você chegou a estar em algum lugar durante um conflito?
Alexandre Charão – Alguns voluntários morreram, mas tive muita sorte, nunca peguei nenhum conflito aberto. No Chade, onde fiquei durante um mês, havia uma guerrilha, e do hospital nós ouvíamos os tiros ao longe. Aí, conforme a situação de segurança, a gente parava tudo e ia para um ponto central do hospital, pra não ser atingido por nenhum tiro que atravessasse as paredes.
No Burundi a gente pegava muitos baleados, mas eu não via os tiros. Quando fui embora, a situação piorou. Teve tiros e bombas muito próximo da casa dos MSF.
Fui parado algumas vezes na estrada por milícias ou exércitos. Na Costa do Marfim o governo é muito xenofóbico. Quando a gente era parado por tropas de governo, era ruim. Era melhor ser parado pelos rebeldes do que pelo governo. Chegaram a recolher minha máquina fotográfica e me pediram cem dólares. Eu falei: “Pra cima de mim, brasileiro?”. Eu disse que não tinha dinheiro, que tinha acabado de chegar, que vinha pra ajudar... ele baixou pra 50 dólares. Falei: “Mas acabei de chegar, estou indo direto pro hospital, sou médico, não tenho nada...”. E ele: “Então deixa duas cervejas”. Ele acabou liberando, só que na hora em que a gente ia pro carro começou a juntar uma população bem hostil.
Rets – Hostil a você?
Alexandre Charão – Aos brancos. Eles são xenofóbicos, e o governo estimula isso. Depois você começa a ler nas entrelinhas e ver na geopolítica o que está por trás disso. A Costa do Marfim é o maior produtor mundial de cacau. As grandes propriedades estão nas mãos dos franceses. E o governo diz que eles não prestam, que precisam sair do país. Óbvio: eles saem e o governo assume as propriedades.
As pessoas viram o carro com identificação em francês, com gente branca... acharam que éramos franceses. Aí começa a falar que é brasileiro, e lá no fundo da África eles conhecem Ronaldinho, Ronaldo... às vezes em lugar que não tem nem televisão, mas sabem quem é. O futebol é o maior produto de exportação brasileiro.
Rets – O sentimento de impotência é uma constante nesse tipo de trabalho?
Alexandre Charão – Não é constante. Quando você pegas alguns casos muito complicados, em que você sabe que a pessoa vai morrer, e acontece de esses casos virem juntos, dois, três, aí bate um sentimento de impotência. Aconteceu várias vezes. Uma vez, na Costa do Marfim, chegou uma mãe com um filho pequeno, de um ano ou menos, os dois muito queimados. Não adiantava fazer nada, fiquei meio paralisado. O anestesista percebeu que a única coisa a fazer pra dar um pouco de dignidade era dar morfina, pra eles morrerem sem dor. Passou 40 minutos e os dois morreram. Nesse dia eu pensei: "caramba, não agüento mais, quero voltar pro Brasil". Mas horas depois, ou no dia seguinte, você recebe outro paciente e diz: "vamos lá, vamos operar!"
Rets – Na África acontecem muitos casos de queimaduras, não é?
Alexandre Charão – A maioria dos lugares não tem energia elétrica, então eles usam fogo pra tudo: pra iluminar, cozinhar, aquecer... e têm um monte de crianças. A média é de 6,6 crianças por mulher. Então fica a criançada correndo pelos cantos. A mãe trabalha, por isso não dá conta de todo mundo. E às vezes acontece algum acidente.
De vez em quando aparece esse sentimento de impotência, sim. Por isso acho que também não dá pra fazer durante muito tempo esse trabalho. Fiquei dois anos. Bem no começo, no Burundi, eu pensava: “Que legal! Vou fazer isso a vida toda!”. Aí depois você pensa: "não dá, é muito sofrimento". Mas posso voltar lá, uma vez por ano, tirar um mês pra isso. Agora não dá, porque estou fazendo mestrado e tenho o consultório em São Paulo. Voltei para as próteses e a lipoaspiração, essa parte estética da cirurgia.
Rets – E como você vê o contraste entre essas duas realidades?
Alexandre Charão – Acho que se complementam. Gosto das duas coisas. Quem faz muita cirurgia reparadora acaba melhorando sua habilidade na cirurgia estética. Foi ótimo esse período todo, não vejo nenhum nonsense. Se complementam. Minha profissão é essa: cirurgião plástico. Seja na África ou no consultório. Estou fazendo aquilo que mais gosto de fazer, que é operar.
Rets – Mas você não teme que isso te faça esquecer um pouco dessa perspectiva que adquiriu lá?
Alexandre Charão – Não. É uma experiência tão forte que eu nunca vou esquecer e pretendo continuar esse trabalho aqui no Brasil. Aprendi muita coisa de logística e administração e tem muitas pessoas que querem fazer alguma coisa no Brasil, mas não sabem como. Há várias ONGs tentando preencher esse vácuo. Já estou atendendo em hospital público, aqui em São Paulo, mas depois pretendo continuar na medicina humanitária ou filantrópica. Abrir, quem sabe, meu consultório uma vez por semana para quem precisa.
Então não vou esquecer isso tudo. Pretendo um dia publicar um livro sobre essa experiência, talvez junto com um anestesista que trabalhou em algumas missões comigo, o Otávio Omati.
Rets – A gente sabe que a organização MSF mantém uma postura neutra. Mas houve algum momento em que você tenha desejado tomar partido em uma situação? E como é que você lidou com isso?
Alexandre Charão – O que a gente faz, além de levar a medicina, é protestar contra determinadas situações, o que é diferente de tomar partido ou escolher um lado, isso a gente nunca faz, embora algumas pessoas tentem manipular a organização. O MSF foi fundado por médicos e jornalistas, em 1971, após a guerra em Biafra, que é uma província na Nigéria. A grande crítica que os fundadores tinham era que a ajuda internacional era muda, calada, levava mantimentos, mas não fazia nada. Então esses médicos e jornalistas se uniram para protestar também, e não apenas levar a medicina. Só que isso não significa tomar partido. Claro que, pessoalmente, acho horrível o que os americanos estão fazendo no Iraque. Eu atendia iraquianos na Jordânia e eles falavam como era. Mas é minha opinião pessoal, não como membro do MSF.
Minha revolta maior, no caso do Iraque, é que a mídia acaba, mal ou bem, seguindo essa tendência de associar muçulmanos a terrorismo. E não é nada disso! O muçulmano é superbacana, tolerante, mas ninguém acredita nisso. Há uma minoria que é radical, como houve os católicos e protestantes na Irlanda, há dez, 20 anos. A imagem que se criou é ridícula, e dá uma pena danada ver que a mídia segue essa tendência.
Rets – É possível fazer um paralelo entre a realidade brasileira e a realidade nesses países africanos e asiáticos?
Alexandre Charão – Muito do que se vive lá a gente está vivendo aqui. Tiroteio, violência contra a mulher, estupro, os baleados que eu atendia no Miguel Couto [hospital municipal no Rio de Janeiro]. O médico europeu não está acostumado a ver baleado, mas infelizmente eu tive uma boa escola.
Rets – Que lembrança foi mais marcante e que lição você tirou dessa experiência?
Alexandre Charão – Eu não conseguiria escolher entre um país e outro, voltaria a todos. Mas a Indonésia me surpreendeu pela presença de várias religiões em paz. Visitei um templo budista, o segundo maior do mundo. Havia muitos turistas ocidentais e muitos muçulmanos da própria Indonésia. As mulheres de véu andando pelo templo budista em paz, em respeito... ninguém agredindo ninguém, a pessoa vai lá e vê as esculturas, vê Shiva, Ganesh... tudo normal, como deveria ser. No entanto, difunde-se essa imagem falsa de que muçulmano é agressivo, é terrorista. Mas os outros países também foram bacanas, eu não conseguiria eleger um só.
Acho que aprendi muito sobre a humanidade, sobre o ser humano, a ver nas entrelinhas o que acontece, todos os jogos de política e interesse. Isso me ajudou a compreender melhor o Brasil. Estando fora você enxerga melhor o que acontece aqui dentro. Até nisso essa experiência me ajudou.
Mas, enfim, o mundo é o mundo, sempre haverá guerras e desastres, sempre vai ter gente lutando contra isso e outros estimulando. Isso sempre vai acontecer, não tenho nenhum sonho de que vá melhorar, de que a África vai ficar em paz. Pode até acontecer uma melhora, mas depois volta. É um realismo, eu vi, é assim. Há 30 anos o mundo protestava contra o Vietnã; há 60, contra a 2ª Guerra Mundial, e assim vai. Não há como lutar contra isso, mas a gente tem como lutar contra os efeitos, as conseqüências para as populações, que estão sofrendo, morrendo.
O que talvez seja importante guardar é que as ONGs estão crescendo cada vez mais, as pessoas estão se organizando nesse vácuo de poder. E esse é um caminho que ainda vai crescer muito.
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