Autor original: Luísa Gockel
Seção original:
![]() Paulo Haus Martins | ![]() |
Em matéria publicada na semana passada na Rets, o senador Heráclito Fortes – que propôs a CPI, aprovada no dia 15 de março pelo Senado – mostrou quão difusa é a idéia que os políticos ainda têm do terceiro setor e, sobretudo, da finalidade dos recursos públicos. “Temos até uma contradição em termos: se as organizações se dizem não-governamentais, não deveriam viver à custa do governo”, afirmou, em entrevista concedida por e-mail.
São argumentos desse tipo que o advogado Paulo Haus Martins, que também coordena a área de Legislação da Rits, terá de enfrentar. Recém-nomeado presidente da Comissão de Apoio e Assistência Jurídica às Organizações Não-Governamentais (Cajong) da seccional Rio de Janeiro da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-RJ), ele defende ferrenhamente um marco legal para o setor, mas acha que o debate deve ser conduzido pela sociedade civil e não em seminários internos no Senado. Além disso, pondera, se há necessidade de mudanças na legislação, é para que se amplie o acesso aos recursos públicos. E dá um recado aos políticos: “Fundo público é público, e não de governo”.
Para Paulo Haus, a lei deve ser a garantia do direito do cidadão e das organizações e não a limitação da sua liberdade. "É uma nova forma de organizar e gerir o país. Quem tiver compromisso com a modernidade tem que discutir o terceiro setor”, defende. À frente da comissão da OAB-RJ, o advogado diz que o primeiro passo será ampliar o debate sobre terceiro setor e ouvir a sociedade civil organizada.
Ele condena a criminalização promovida pelo governo e a generalização feita pela mídia. E chama as organizações a reagir: “Essas denúncias vão acontecer e temos de estar preparados, porque não podemos ter a ilusão de que a sociedade civil organizada é um desfile de pessoas puras”, afirma. Haus acredita que toda essa movimentação é para desviar a atenção dos verdadeiros corruptores. “Chamar a atenção para escândalos com ONGs sem chamar a atenção para o corruptor ou o corrompido que está atrás é bater no mais fraco para não ter que bater no púlpito”, observa. Segundo ele, é preciso reagir e impedir que essas denúncias acabem com a esperança das ONGs de que podem fazer alguma coisa pelo país. “Porque é com isso que eles acabam quando nos atingem”, diz.
Rets - Qual é o principal objetivo da Cajong?
Paulo Haus Martins - Já houve uma experiência antes, mas que não teve uma grande atuação. A nova gestão que acabou de entrar é diferente, recupera o papel da OAB institucionalmente frente à sociedade brasileira e tem a intenção de fazer a OAB voltar para o centro do debate nacional e não apenas ficar prestando pequenos serviços para advogados. Com a nova gestão, essa comissão voltou à ordem do dia.
A rigor, existem alguns focos tradicionais de trabalho, como a divulgação e o estudo da legislação relacionada às ONGs e aos movimentos da sociedade civil organizada, a análise de projetos do terceiro setor e a participação no debate de formulação legal e normativo desse setor. E também o trabalho de formular qual seria a postura da OAB com relação à sociedade civil organizada e à legislação.
Temos de lembrar que a OAB tem uma grande história dentro da sociedade civil organizada. Por exemplo, quando as pessoas não têm a quem apelar ou quando acontece um grande problema, as ONGs que trabalham com direitos humanos vêm à Comissão de Direitos Humanos da OAB, que são as pessoas que vão para a frente da briga. Recuperar essa postura que a OAB tinha perdido é fundamental, porque, quando se trata de terceiro setor e ONGs, é literalmente isso: de construção da democracia.
Rets - Qual será o primeiro passo da Cajong?
Paulo Haus Martins - A primeira coisa que eu acho que a gente tem que fazer é ter uma postura correta. Eu mesmo poderia formular uma proposta do que seria certo ou errado para a Cajong. Inclusive, até mudar o nome, que acho que pode ser discutível. Eu não gosto do termo terceiro setor, mas colocar só "ONG" também não explica tudo. O fundamental mesmo é que temos de ter clareza de que essas coisas são construções coletivas. E não são construções coletivas dentro da OAB, são da sociedade brasileira. E a OAB é um dos instrumentos dela.
A primeira tarefa da Comissão será ouvir a sociedade brasileira, o movimento de ONGs e a sociedade civil organizada. E, a partir desse exercício de ouvir, entender aquilo que as pessoas esperam da OAB. E depois retornar para a sociedade uma proposta da OAB em que a gente seja protagonista e instrumento desse movimento da sociedade civil organizada, que surgiu com muita força já há algum tempo. A OAB quer aproveitar essa força e participar de tudo, ocupando o seu espaço e sendo um instrumento da sociedade civil para que a gente consiga um país diferente.
Rets – E quais serão os temas centrais desse trabalho?
Paulo Haus Martins - Neste país, toda vez que se vai discutir sobre normas a gente discute de que maneira a gente acrescenta mais alguma coisa. Existe uma ilusão de que uma norma ou uma lei podem fazer uma realidade. Não é assim. Não adianta ter a caneta e ter o papel, escrever uma lei, que eu não faço um país diferente. Eu faço um país diferente com aquela norma e mais uma série de outros fatores juntos. Essa ilusão faz com que, a partir dos primeiros problemas que apareçam dentro da sociedade civil organizada, surja uma série de tentativas – do meu ponto de vista, ilegais ou equivocadas – de criar cadastros sobre cadastros, prestação de contas e empecilhos para ter acesso a recursos públicos. A lei passa a limitar o direito do cidadão. E é o contrário: ela tem de assegurar o direito do cidadão, como o direito de se associar e de participar das políticas públicas. Essas atividades não têm que ser restringidas, são de interesse público. Temos muito campo pra debater. A OAB tem um espaço a ocupar e é o espaço da manutenção do debate.
Rets – Como deve ser levado adiante o debate sobre o marco legal?
Paulo Haus Martins - Em 2007, eu vejo esse movimento se reacendendo. Nós passamos por um período de baixa nesse debate. Terminamos a última legislatura, que foi a mais vergonhosa da história, com as mais graves acusações que a história brasileira já viu, em todos os sentidos. Vimos parlamentares importantes, figuras nacionais, sendo cassados publicamente. E outros sendo absolvidos, mas "cassados" pelo público. E o Congresso Nacional termina discutindo sobre terceiro setor! É um erro de cálculo. Primeiro, porque é uma tentativa de desviar a atenção de um debate que estava acontecendo dentro do Congresso e terminou batendo em quem era mais fraco, ia apanhar e não podia responder.
Houve seminários no Senado sobre o marco legal do terceiro setor. E quem do terceiro setor que você conhece foi convidado a participar desse debate? Foi um seminário interno do Senado que desconsiderou a realidade do próprio terceiro setor e a formulação que o terceiro setor tem de si próprio. Significa muito para mim e deve significar muito para a OAB a questão de quando vamos assumir o protagonismo desse debate.
Precisamos reformular a lei deste país. Pelo menos o relacionamento que o nosso povo tem com a lei e que a lei tem com o nosso povo. O marco legal do terceiro setor é uma prova disso. É uma demanda que a lei seja a garantia do nosso direito e não a limitação daquela liberdade que nunca tivemos e estamos tendo que exercitar agora. É uma nova forma de organizar e gerir o país. Quem tiver compromisso com a modernidade tem que discutir o terceiro setor, a função que cabe à sociedade civil organizada, às ONGs, às fundações, à Rits e à OAB.
Mas, quando pensamos numa nova legislação, estamos pensando não numa necessária repactuação, mas no esclarecimento da sua função e na responsabilidade que você tem com o futuro do país. É fundamental que tenhamos essa discussão sobre marco legal do terceiro setor e que se avance a partir de onde paramos um pouco atrás.
Rets – E em relação à CPI das ONGs? Como é possível reagir a essa generalização de que todas as ONGs são corruptas?
Paulo Haus Martins - Há uma vilanização dos movimentos da sociedade civil organizada. As nossas bandeiras estão virando pano de chão. E se isso está acontecendo, é uma prova de que por onde passamos limpamos o local. Não podemos nos enganar com relação à grande imprensa. Chamar a atenção para escândalos com ONGs sem chamar a atenção para o corruptor ou o corrompido que está atrás é bater no mais fraco para não ter que bater no púlpito.
Essas denúncias vão acontecer e temos de estar preparados, porque não podemos ter a ilusão de que a sociedade civil organizada é um desfile de pessoas puras. Como combater o preconceito promovido por essa imagem distorcida que os jornais passam é uma coisa que a sociedade civil organizada tem de assumir. Ela não tem que se retrair quando houver esse tipo de denúncia, tem que enfrentar. E, nesse momento, acho até que falta o reconhecimento da sociedade em relação às suas próprias lideranças. Quando o Betinho [o sociólogo Herbert de Souza, que liderou a campanha nacional contra a fome] morreu, perdemos uma figura emblemática que não sei se um dia poderá ser substituída.
Temos de impedir que isso acabe com a esperança que temos de que podemos fazer alguma coisa, porque é com isso que eles acabam quando nos atingem. Falam por aí que em São Paulo existem mais ONGs que tratam de crianças de rua do que crianças de rua. Que mentira! Peguem a lista telefônica e vejam quantas são as ONGs de São Paulo! Não precisa ser nenhum gênio da matemática para saber que isso é uma mentira. Mas quem de nós vai para a frente dizer isso?
Rets – Então o senhor é contra mudanças na legislação para regulamentar contratos entre ONGs e governo?
Paulo Haus Martins - O problema não é esse. A necessidade de mudança na legislação deve ser no sentido de dar mais acesso do ponto de vista formal. E que ela seja mais apertada do ponto de vista da finalidade. Se eu recebo recurso público, eu tenho que falar o que eu fiz com ele. Não como eu gastei, mas qual é o resultado. Isso é mais importante do que o fato de ter ou não nota fiscal.
Quando fazemos um projeto social nas áreas mais carentes do nosso país, quem é que pode dar uma nota fiscal do serviço que prestamos? Eu já visitei municípios na região amazônica onde as comunidades só são acessadas por barco. Você espera que o barqueiro te dê um recibo quando ele não sabe nem assinar o próprio nome? É preciso saber em que país vivemos.
Eu diria que é preciso que o poder público tire amarras e faça com que existam critérios para acessar mais amplamente os fundos públicos. Deixar claro para o administrador público que fundo público é público e não de governo. É preciso que se altere, sim, a lei, mas para adequar a lei àquele interesse da Constituição de fazer um país diferente, solidário e mais igual.
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