Autor original: Maria Eduarda Mattar
Seção original: Artigos de opinião
![]() Imagem do Papa Bento XVI na Basílica de St. Paul's |
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Washington Castilhos*
Desde os tempos em que era chefe da Congregação para a Doutrina da Fé, Joseph Ratzinger responsabiliza a Teologia da Libertação pela perda de influência da Igreja Católica na América Latina. Por isso, especialistas acreditam que a punição imposta ao teólogo Jon Sobrino seja uma mensagem de Bento 16 à igreja latino-americana. O Vaticano identifica vários sintomas desse enfraquecimento. Se um deles é o crescimento das igrejas evangélicas e de outras expressões religiosas, outro é, sem dúvida, a mudança de mentalidades e normas frente a questões em relação às quais o Vaticano tem mantido posições dogmáticas inabaláveis, como é o caso do aborto.
Em seu discurso aos participantes na Assembléia Geral da Pontifícia Academia para a Vida, realizada em fevereiro, Bento 16 fez um “apelo à consciência cristã”, e reiterou seu temor em relação à questão da descriminalização do aborto no mundo, particularmente na América Latina. “É necessário admitir que os ataques contra a vida, no mundo inteiro, se ampliaram e multiplicaram, adquirindo também novas formas. São cada vez mais vigorosas as pressões para a legalização do aborto nas nações da América Latina e nos países menos desenvolvidos, mesmo com o recurso à liberalização das novas formas de aborto químico, sob o pretexto da saúde reprodutiva”. O Papa está, de fato, correto. A ampliação do debate sobre a descriminalização do procedimento se intensificou na região nos últimos anos. Além de processos muito ricos de mobilização e debate em curso no Uruguai e na Argentina, a Corte Constitucional da Colômbia – país onde a influência da Igreja Católica sobre a política sempre foi acentuada e o aborto era proibido sob qualquer circunstância – assegurou o acesso ao aborto em casos de má-formação fetal, estupro ou risco de vida para a mãe em 2006.
Mais relevante ainda, a Assembléia do Distrito Federal do México aprovou, no dia 24 de abril de 2007, por 46 votos a favor e 19 contra, um projeto de lei que legaliza o aborto. Poucos dias antes da votação o Papa enviou uma carta aberta aos bispos mexicanos apelando para que impedissem, a qualquer custo, a reforma legal. A carta foi interpretada por parlamentares de vários partidos como grave desrespeito ao Artigo 113 da Constituição Mexicana que define a separação entre Estado e Igreja. Em decorrência, a Secretaria de Governo (Secretaria de Gobernación) pediu a hierarquia católica que evitasse excessos. A ativista LGBT mexicana, Gloria Careaga, avalia que: “Essa ingerência da Igreja deu mais força às vozes que sempre disseram que a laicidade do Estado deveria ser respeitada para que o aborto seja tratado como uma questão de política pública”. (Para saber mais a respeito clique aqui)
No caso específico do Brasil, o Projeto de Lei 1135/91 (calcado na proposta elaborada por uma comissão formada pelo Executivo, em 2005, para rever a legislação sobre o aborto no país) encontra-se em tramitação na Comissão de Seguridade Social e Família (CSSF) da Câmara Federal. Porém muito mais significativo foi assistir, nas semanas que precedem a visita do Papa, o novo Ministro da Saúde, José Gomes Temporão, fazendo inúmeras declarações acerca do aborto como grave problema de saúde pública e apelando para que a sociedade debata a questão, inclusive através de um plebiscito.
É preciso lembrar que muito antes da declaração do ministro, a Igreja Católica e seus aliados contrários à legalização do aborto vinham se organizando nos mais diferentes espaços sociais e institucionais. Em 2005, quando encerrou-se o trabalho da Comissão Tripartite, o governo não apresentou o projeto de lei ao Congresso como proposta do Executivo ao Congresso e imediatamente após a apresentação essas forças se mobilizaram constituindo uma Frente Parlamentar para Defesa da Vida que conta com vários membros da base governista. Nas eleições gerais de 2006 parlamentares que defendem a legalização do aborto foram abertamente atacados.
No final de março de 2007, o Movimento Nacional em Defesa da Vida (Brasil sem Aborto), liderado pela Igreja Católica e a Federação Espírita Brasileira, mobilizou um ato público em São Paulo divulgado através de outdoors espalhados por toda a cidade com os dizeres: “Diga não ao aborto até o 9º mês”. O slogan tinha como objetivo projetar uma imagem distorcida do projeto de descriminalização do aborto (PL 1135/91) que tramita na Câmara Federal. O texto defende a descriminalização do aborto quando realizado até a 12ª semana de gravidez, prazo que pode ser ampliado para 20 semanas em casos especiais, como grave risco à saúde da gestante, gravidez por estupro e malformação congênita incompatível com a vida ou doença fetal grave e incurável. Mas não propõe em nenhuma de suas linhas que o aborto possa ser realizado até o nono mês.
Após a declaração do Ministro esses ataques e reações, naturalmente, recrudesceram. Há duas semanas, o ministro foi surpreendido por um protesto contra o plebiscito na cidade de Fortaleza. No Rio de Janeiro, o cardeal-arcebispo D. Eusébio Scheid interrompeu a celebração da Paixão de Cristo, na Sexta-feira Santa, para falar contra o aborto. Não cabe dúvida, portanto, que o tema será uma das questões chave da 5ª Conferência do Episcopado Latino-americano e do Caribe, que vai ser aberta pelo Papa no dia 13 de maio, na cidade de Aparecida do Norte. O encontro definirá a linha doutrinal e as ações da hierarquia católica para os próximos 12 anos e vários analistas sugerem que seu maior objetivo é aprofundar o controle burocrático sobre a igreja latino-americana e influir na vida política e eclesiástica da região.
Mas para várias analistas, ao interpretar o avanço recente observado no debate sobre o aborto e a contracepção como sendo resultado do enfraquecimento da Igreja na região, o Vaticano desconsidera ou minimiza o significado das lutas sociais por direitos humanos e de cidadania. “Reconhecer os direitos reprodutivos como direitos humanos foi uma conquista da humanidade. É o direito da pessoa vivenciar a sua sexualidade sem coerção, sem violência e com garantia da sua saúde. A sociedade está se libertando da tutela da Igreja em áreas da vida em que considera a tutela indevida, e isso é um avanço”, analisa a socióloga Maria José Rosado, da organização não-governamental Católicas pelo Direito de Decidir. Margareth Arilha, diretora do PROSARE, programa de bolsas de pesquisa em sexualidade e saúde reprodutiva, faz a mesma avaliação: “A sociedade não é totalmente determinada pela Igreja Católica, é constituída por atores sociais e políticos que têm outras visões de mundo e interpretações da realidade, e que vão favorecendo possibilidades de flexibilização das posições emitidas pelo Vaticano”,
Da mesma forma, Dulce Xavier, também integrante da organização Católicas pelo Direito de Decidir considera que: “Pensar sexo e reprodução fora do âmbito privado, da decisão individual, e colocá-los no âmbito da legislação e dos direitos é um salto que foi dado pelo movimento feminista, incorporado pelos Estados”. Segundo ela o que ainda falta é que essa perspectiva seja incorporada pela população de forma mais ampla: “O tabu em torno da descriminalização do aborto é um problema cultural, e a religião tem uma grande parte na construção dessa cultura. As pessoas só pensam dentro dos parâmetros que o cristianismo colocou no Ocidente”, aponta a socióloga.
As percepções da sociedade
Resultados de pesquisas de opinião, contudo, sugerem que a resistência cultural, de fato, pesa bastante no imaginário social. Em pesquisa do instituto Datafolha realizada com 5.700 pessoas no fim de março, 65% dos entrevistados acham que a lei no Brasil deve continuar como está – que permite a prática em casos de estupro ou risco de morte para a mulher. A socióloga Maria Betania Ávila, coordenadora do SOS Corpo-Instituto Feminista para Democracia, avalia esse resultado como sendo um claro efeito da propaganda subliminar que se faz no Brasil em relação ao tema. Em entrevista para o jornal Folha de São Paulo, ela lembra que: “A novela ‘Páginas da Vida’, que acabou há um mês, fez com que os piores vilões aparecessem defendendo que a mocinha da trama fizesse um aborto. Todos os personagens decentes eram contrários. Foi um panfleto anti-aborto na TV recordista de audiência”. (Fonte: Mulheres de Olho)
Um dos membros da comissão criada em 2005 para rever a legislação relativa ao aborto, o médico e professor de genética humana da USP Thomaz Gollop pensa que a população se posiciona contrária à legalização do aborto por falta de informação. “Se perguntarmos se uma mulher que fez aborto deveria ir para a cadeia, provavelmente as pessoas responderiam que não. Mas quando perguntamos se a lei deveria ser revista, elas se colocam contrárias não por convicção, mas porque não têm idéia do que isto significa”.
Gollop tem razão ao indicar que as pesquisas de opinião, geralmente, não captam a dinâmica mais fina da percepção social sobre o aborto. Resultados de estudo realizado pela organização Católicas pelo Direito de Decidir no Brasil, por exemplo, mostram a ambivalência na posição dos próprios católicos: 78% dos católicos brasileiros entrevistados mostraram-se favoráveis à oferta de aborto legal nos serviços públicos de saúde, 82% afirmaram concordar com a realização do aborto em caso de risco de vida da mulher, 80% em caso de problemas congênitos e 67% se a gravidez resultar de estupro. (fonte: Pesquisa de opinião dos católicos brasileiros sobre direitos reprodutivos, relação Igreja e Estado e temas relacionados - clique aqui para saber mais)
Esses dados sugerem que a sociedade foi, de fato, sensibilizada pelo argumento desenvolvido pelas vozes que assim como o Ministro da Saúde consideram que a questão deve ser retirada do campo criminal e da lógica do pecado para ser encarada de frente como uma questão de saúde publica. “Principalmente porque quem vive o drama são as mulheres de baixa renda, que têm de se submeter a abortos clandestinos. Devemos discutir o tema sob uma ótica medica e visão de realidade, mostrando o que acontece na prática”, avalia Thomaz Gollop. Estima-se que cerca de 1 milhão de abortos clandestinos sejam realizados a cada ano no Brasil, representando a 3ª causa de morte materna no país. Em 2005, o Sistema Único de Saúde (SUS) registrou 230 mil internações por curetagem, que significam um custo de 30 milhões de reais por ano.
O determinismo biológico
Segundo Maria José Rosado, dois obstáculos fazem com que dificilmente a Igreja Católica venha a adotar essa perspectiva. O primeiro deles é a própria estrutura hierárquica da instituição: “A instituição católica se funda na necessidade de uma intermediação entre o fiel e a divindade, representada pelo padre. O fiel não se dirige diretamente a Deus, mas o faz através do padre e as mulheres estão excluídas desse lugar de intermediação. Enquanto a Igreja mantiver este tipo de estrutura, será impossível para ela ter uma visão da sexualidade mais positiva, mais liberal e aberta, porque isto toca na sua estruturação”.
O outro obstáculo, segundo ela, são os séculos de tradição da concepção das mulheres como seres reprodutores. “É uma sexualidade regulada pela reprodução. Não é uma sexualidade livre, e sim dirigida à procriação, e que continua sendo o ideário da igreja. Embora tenha havido um relativo avanço em relação a isso, no fundo esse vínculo entre sexo e reprodução se mantém, por isso a sexualidade nunca pode ser livre, autônoma e dirigida ao prazer. A teologia moral não avançou”, diz ela. Para Maria José, se a maternidade não for “desnaturalizada” não será nunca possível pensar o aborto como uma questão que se situa no campo de uma ética da autonomia. “Enquanto a maternidade continuar sendo concebida como algo da natureza das mulheres, a qual elas têm que responder obrigatoriamente e têm que se explicar quando decidem não serem mães, não conseguiremos colocar o aborto no campo da escolha. É preciso que a maternidade seja pensada nesse campo, para que então o aborto seja de fato uma questão de escolha. O aborto é solução diante de uma gravidez indesejada, impossível de ser levada adiante. Mas será impossível a sociedade enxergar desta forma enquanto não passarmos a pensar a maternidade como escolha. A maternidade deveria ser colocada como um projeto de vida, um desejo ou uma realização”.
No livro “Tiros cruzados: a laicidade à prova do fundamentalismo judeu, cristão e muçulmano”, as autoras Caroline Fourest e Fiammetta Venner identificam uma clara convergência entre as três religiões monoteístas mundiais – o judaísmo, cristianismo e o islamismo – em relação ao que “deve” ser o papel da mulher em uma sociedade: um papel de subordinação e de submissão. Os documentos lançados pelo Vaticano em anos recentes ilustram o quanto a percepção de Fourest e Venner é legítima no que diz respeito ao catolicismo. Em carta aos bispos da Igreja Católica discorrendo sobre a colaboração do homem e da mulher na Igreja e no mundo – publicado quando o Cardeal Ratzinger ainda era o prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé – afirma-se que a busca de autonomia das mulheres é um mal porque gera a desagregação das famílias e as distanciam do “determinismo biológico” que faz delas fundamentalmente “mães” . No capítulo intitulado “O problema”, o texto critica severamente uma certa “antropologia, que entendia favorecer perspectivas igualitárias para a mulher, libertando-a de todo o determinismo biológico, mas que acabou de fato por inspirar ideologias que promovem, por exemplo, o questionamento da família”.
Segundo Dulce Xavier essa formulação reflete “um pensamento negativo sobre as mulheres, como se elas não tivessem outra função no mundo que não seja estar submissas aos homens ou se prestar a maternidade. É como se elas não fossem humanas e não tivessem qualquer possibilidade de ter uma vida autônoma. Para o Papa, a sexualidade é uma coisa negativa, que precisa ser controlada dentro do casamento. A condenação dos métodos contraceptivos – pílula, preservativo – é uma condenação da possibilidade da liberdade. Segundo essa teologia, quando as pessoas têm relações sexuais sem o compromisso com a procriação, elas tendem à promiscuidade”, observa.
As múltiplas interpretações do “direito à vida”
No Brasil e no mundo, para fazer frente às proposições que visam descriminalizar o aborto, a Igreja Católica lança mão de dois fundamentos doutrinários: o primeiro deles é que sexo quando não se destina à procriação deixa de recriar a imagem do céu na terra e se aproxima da perversão. O texto da Encíclica Deus Caritas Est, tornada pública em dezembro de 2005, afirma inúmeras vezes que o amor que não procria é um amor fraco. O segundo argumento se apóia no conceito de direito à vida acoplado à posição dogmática de que a vida começa no momento da fecundação.
Em 2004, no Brasil, o tema do conflito entre o direito do feto e o direito da mulher ganhou grande visibilidade num debate que teve lugar no Supremo Tribunal Federal (STF). Em junho daquele ano, a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS) apresentou à corte mais alta do país uma Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), um instrumento jurídico que permite que a sociedade interpele diretamente o Supremo. O objetivo da ação era garantir à gestante “portadora de feto anencefálico” o direito à antecipação terapêutica do parto, sem necessidade de apresentação prévia de autorização judicial ou qualquer outra forma de permissão específica do Estado. Um mês depois, o ministro do STF, Marco Aurélio de Mello, concedeu a liminar – autorização de caráter provisório – pedida pela CNTS, o que gerou intensa mobilização de grupos pró-vida católicos. Quatro meses depois, essa liminar seria derrubada pelos ministros do Supremo Tribunal, por sete votos a quatro. Embora em abril de 2005, numa reunião plenária, a ADPF tenha sido julgada procedente, passados dois anos seu mérito ainda não foi julgado.
Para a diretora do Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero (Anis), Débora Diniz, parceira da CNTS na apresentação da ADPF, se existe um conflito de princípios, ele deve ser processado com base numa perspectiva argumentativa: “Isto é que faz a democracia. O fato de não haver uma única resposta sobre o início da vida, não significa não haver uma resposta melhor que a outra. Podemos partir de um consenso: o embrião tem forma de vida. Mas e daí?”.
Miriam Ventura, advogada e mestre em bioética também analisa os argumentos da Igreja como sendo expressão de “uma ética naturalista, que defende o status do feto como de uma pessoa. Eles se baseiam em argumentos naturalistas. Mas não podemos mais fundamentar questões em dogmas religiosos e sim pela racionalidade. Uma possibilidade de vida não pode ter mais direito do que uma pessoa”. Para ela, a questão do aborto deve ser discutida a partir da premissa de liberdade individual, prevista no artigo 5º da Constituição Brasileira, o qual estabelece que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade”. Para Ventura, “o direito à vida desde a concepção não está na lei. Defendo a autonomia do sujeito como valor. Não temos que discutir se um feto tem vida ou não, e sim o valor que a sociedade deve dar a essa vida. O valor da vida não é absoluto. Acredito no sentido de vida dado pela Constituição que é o de uma vida digna, social. O sentido de vida não deve ser visto pelo sentido biológico, naturalista como a Igreja enxerga. A vida é um valor social. Quando defendemos o aborto por anencefalia trabalhamos com o dado científico da inviabilidade fetal. Então a questão é: devemos privilegiar uma possibilidade de vida por uma vida que já existe?”
Vale lembrar que mesmo ponto de vista da ciência, não há uma posição unívoca sobre o início da vida humana e muito menos da condição de pessoa humana. “Não há dúvidas de que há vida em duas células que se juntam. No entanto, a questão central trazida pela Ciência é reconhecer a partir de que momento esta vida é moralmente relevante. Uma célula viva tem a mesma relevância do que o individuo?”, argumenta o médico sanitarista Sergio Rego, coordenador do Comitê de Ética em Pesquisa da Escola Nacional de Saúde Pública. Significativamente nesse momento em que uma vez mais se aquece o debate sobre aborto no país o Supremo Tribunal Federal convocou uma audiência pública para debater a questão das células tronco e o começo da vida, outro tema em relação ao qual ciência e religião, progressistas e conservadores tem se confrontado abertamente no Brasil e no mundo. (Para saber mais veja: Mulheres de Olho e FAPESP)
Embora a posição oficial da Igreja ser visceralmente dogmática em relação ao começos da vida há vozes católicas de peso que expressam visões distintas. Por exemplo, o teólogo brasileiro Leonardo Boff, um dos mentores da Teologia da Libertação, condenado em 1985 pelo Vaticano ao “silêncio obsequioso” afirma em texto recente: “Não podemos nos contentar com essa visão assumida oficialmente pela Igreja nos dias atuais. Na Idade Média não era assim, pois para Tomás de Aquino a humanização começava apenas 40 dias após a concepção. A Igreja, para efeito de sua ética interna, pode estabelecer um momento da concepção da vida humana” (fonte: Em Defesa da Vida: aborto e direitos humanos, Católicas pelo direito de decidir).
O exemplo de Portugal exige reflexão
Às vésperas da chegada de Ratzinger ao Brasil, a aprovação pelo Parlamento português da descriminalização do aborto para gestações de até dez semanas, causou uma onda de entusiasmo no cenário nacional e o tema do aborto tem ocupado as capas dos principais jornais e revistas do país. A recente experiência é, inclusive, um dos argumentos utilizados pelo Ministro da Saúde, José Gomes Temporão, ao sugerir a realização de um plebiscito para decidir sobre a legalização do aborto no país.
As declarações do ministro, por um lado, foram amplamente apoiadas pelas organizações feministas e outras vozes. Em reunião regional latino-americana convocada pela OPAS para discutir temas relacionados à Comissão da OMS sobre Determinantes Sociais da Saúde, a Rede Feminista de Saúde e Direitos Reprodutivos apresentou uma carta pública de apoio ao ministro que foi aclamado por outras organizações de mulheres presentes. Mas, por outro lado, mobilizou um intenso debate entre aquelas e aqueles que defendem a legalização dentro e fora do campo feminista.
A própria Ministra Nilcéa Freire, da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, entrevistada pelo jornal Estado de São Paulo afirmou que “Não parece apropriado discutir, a priori, o plebiscito. Se no desenrolar do debate a consulta popular for considerada importante, aí não há motivo para que ela não seja realizada”. Débora Diniz também apela para a cautela, sublinhando que um plebiscito é adequado para equacionar questões relacionadas ao ordenamento político, mas não para dirimir as diferenças de visão em relação ao aborto: “O aborto deve ser pensado a partir do marco constitucional do pluralismo que assegura o direito de voz às minorias. O plebiscito torna-se uma falsa expressão de democracia quando se confunde democracia por representação de maioria. Se o marco constitucional máximo da razão pública não for capaz de enfrentar essa questão, vamos então para o legislativo”.
Em carta ao jornal O Estado de São Paulo, a pesquisadora da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (ABIA) e co-coordenadora do Observatório de Sexualidade e Política, Sonia Corrêa, também afirmou que a proposta de um plebiscito exige reflexão cuidadosa. “Se de um lado abre campo para que forças favoráveis à legalização dialoguem amplamente com a sociedade, de outro o aborto não é questão que possa ser resolvida pela imposição de maiorias sobre minorias. Também considera que se o resultado do plebiscito em Portugal deve ser comemorado, é preciso bastante cuidado ao fazer analogias com o caso brasileiro: “Na União Européia, da qual Portugal é parte, a quase totalidade dos países conta com legislações liberais e existe um sistema transnacional de direitos humanos que cobra consistência das leis nacionais. Se Portugal não tivesse reformado sua legislação, muito possivelmente a Corte recriminaria o país. Estamos muito longe de dispor de um ‘sistema’ de regulação e convergência das leis nacionais como este”.
Se, por um lado, a Ministra, Débora e Sonia foram cautelosas, outras feministas avaliam o atual contexto político do país um bom momento para a realização de um plebiscito. “Penso que poderia ser um momento interessante para que a sociedade brasileira se olhasse no espelho. A idéia do plebiscito sempre foi muito assustadora até mesmo para os grupos pró-vida. É uma estratégia que assusta de parte a parte, mas particularmente penso que a sociedade deveria analisar o que pode sair daí. O plebiscito pode dar uma idéia mais precisa onde nós estamos”, avalia Margareth Arilha. Maria José Rosado concorda. “Eu me pergunto se a sociedade já não avançou o suficiente na consciência de seus direitos e autonomia em face da tutela da Igreja para se tentar um plebiscito”, defende.
Também em entrevista ao jornal O Estado de São Paulo, Carmem Barroso, diretora da Federação Internacional de Planejamento Familiar (International Planned Parenthood Federation-IPPF), afirmou ser a favor do plebiscito. “Sei de pessoas, defensoras do direito ao aborto, que não acham o plebiscito oportuno. Mas ele leva a população a pensar sobre o assunto e a tomar uma posição. Ainda que se corram riscos, o debate é um progresso. Veja o que aconteceu em Portugal: lá teve um plebiscito e não passou. Alguns anos depois, teve outro e passou. É o processo que conta”, disse.
Finalmente é importante dizer que a Igreja, de seu lado, se posicionou firmemente contra o plebiscito. O arcebispo de São Paulo e secretário-geral da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), d. Odilo Scherer, explicou essa posição a partir de uma perspectiva doutrinária afirmando em entrevista ao jornal Folha de São Paulo que é absurdo “colocar em plebiscito o direito de matar”. Para Sonia Corrêa, essa posição doutrinária esconde um cálculo político que não deveria ser minimizado: “O Vaticano não visa apenas derrotar a proposta de legalização. A Igreja tem um objetivo muito mais ambicioso: quer eliminar todo e qualquer permissivo penal. Isso aconteceu em outubro de 2006 na Nicarágua quando – por pressão da Igreja e com franco apoio de Daniel Ortega – o Congresso baniu a cláusula que permitia o aborto no caso de risco de vida que constava no código penal desde o século 19. O mesmo pode acontecer na Polônia nos próximos meses. No Brasil, onde 65 % dos e das potenciais eleitoras expressam opinião de que a lei não seja alterada, a realização de um plebiscito pode resultar na manutenção da lei como está, o que frente a esse objetivo radicalmente regressivo poder ser lido como uma derrota da Igreja. Exatamente por isso, embora minha posição em relação ao plebiscito seja de cautela, não tenho dúvida que estamos vivendo um momento privilegiado da longa e sinuosa trajetória da luta pela legalização do aborto no Brasil”.
Os contornos do debate em curso são, de algum modo, surpreendentes. Desde a apresentação, em setembro de 2005, do projeto de lei formulado pela Comissão Tripartite vários e várias especialistas analisavam o contexto brasileiro como sendo de franco retrocesso e previam que a passagem de Ratzinger pelo país poderia aprofundar essa tendência regressiva. Contudo, a cena política do momento não corresponde exatamente a essa previsão sombria. Margareth Arilha avalia que o ambiente democrático que hoje se respira no Brasil não permitirá que posições religiosas regressivas se cristalizem na sociedade após a visita do Papa. “Marcas sempre ficam, mas elas não são indeléveis. Esse é primeiro passo de um Pontificado duro e dogmático. Mas não será fácil para a Igreja impor sua visão monolítica em razão da existência de movimentos sociais favoráveis á legalização e do debate democrático que como estamos vendo hoje envolve e mobiliza muitos outros atores relevantes como demonstra a posição lúcida do Ministro da Saúde”.
* Washington Castilhos é jornalista e integrante do Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos (Clam). Trabalhou na Assessoria de Imprensa da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e especializou-se em escrever artigos jornalísticos nas áreas das ciências biomédicas, sociais e políticas. Este artigo foi
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