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Paraíso e Inferno - versão carioca

Autor original: Fausto Rêgo

Seção original: Artigos de opinião

Paraíso e Inferno - versão carioca

Daniel Becker*

Era uma bela manhã de verão no condomínio German Paradise, na Barra da Tijuca. Executivos, profissionais liberais, homens e mulheres cruzavam as guaritas em direção ao trabalho, em seus carros. Mães e babás circulavam nas praças e vias arborizadas com bebês. Crianças e adolescentes embarcavam em ônibus e vans para suas escolas.

O pesadelo começou às 8h37min da manhã. Funcionários nas guaritas erguiam as mãos para o alto, enquanto sete camburões e dois blindados com caveiras pintadas nas carrocerias entravam nos terrenos cercados. Logo atrás vinham dois ônibus da Força Nacional de Segurança. A operação parecia grandiosa – e se anunciava violenta.

Os policiais desceram dos carros com rifles e metralhadoras em punho. Em grupos, gritando, entravam nos diversos prédios. Estavam à procura de uma quadrilha que traficava drogas no condomínio e que, dizia-se, tinha se tornado muito violenta. Estaria estocando armas para um futuro ataque a uma gangue do condomínio vizinho. Logo começou a troca de tiros. Moradores de todas as idades, desesperados, jogavam-se no chão ou fugiam para trancarem-se em suas casas. Policiais nervosos e agressivos arrombavam portas, revistavam pessoas e apartamentos com violência, e o pior: atiravam antes de perguntar. Um grupo de adolescentes voltava da praia em shorts e chinelos e foi abordado por policiais, gritando para que fossem ao chão. Um deles se apavorou e correu. Foi atingido nas costas por um tiro. Um homem que corria falando ao celular também foi atingido na cabeça e morreu instantaneamente. Uma senhora de 60 anos foi atingida no ombro, dentro de seu apartamento, por uma bala de fuzil.

Os blindados circulavam pelo condomínio, esmagando os belos canteiros de flores, com seus alto-falantes bradando “nós vamos levar sua alma”, deixando moradores aterrorizados. Metralharam os transformadores elétricos, deixando todos os apartamentos sem energia. Estabelecimentos comerciais foram invadidos, e os comerciantes forçados a abandonar as lojas. Alguns moradores ousaram protestar; três foram espancados e tiveram seus celulares apreendidos.

O condomínio foi ocupado por 48 horas. Muitos moradores não puderam ir trabalhar, outros não puderam voltar às suas casas. Praticamente nenhuma criança foi à escola. Os telefones fixos não funcionavam. Até a água foi cortada por quase 12 horas.

Nos dias que se seguiram, os noticiários da TV e jornais no Brasil e no exterior destacavam o inacreditável episódio. O governador foi pessoalmente ao condomínio, após demitir o secretário de Segurança e o comandante da PM. O presidente da República repudiou o ocorrido e demitiu igualmente o secretário Nacional de Segurança e o comandante da Força. Os jornais falavam em impeachment do governador. O Ministério Público já investigava o caso, e centenas de advogados circulavam pelo condomínio. Falava-se em uma ação inédita contra o Estado, por violações gravíssimas de direitos humanos, danos ao patrimônio e morais, além, é claro, da perda de uma vida e de um jovem que ficaria paraplégico para sempre.

O aparelho de segurança do próprio estado havia agido contra a lei, atacando aqueles a quem deveria proteger; havia destruído vidas, traumatizado para sempre crianças inocentes, desrespeitado as regras mais fundamentais do convívio humano, infringido os direitos básicos de cidadãos respeitáveis. Pessoas haviam sido roubadas, humilhadas, ameaçadas; sua integridade, privacidade e patrimônio, despedaçados.

A história do German Paradise nos choca profundamente. Uma sociedade minimamente organizada reagiria de forma enérgica, para punir os responsáveis e garantir que um episódico grotesco como este não se repetisse jamais.

Mas já se repetiu muitas vezes. E não houve qualquer reação da sociedade carioca. O governador e o prefeito não estiveram lá. O presidente não repudiou o ocorrido. Ninguém foi demitido. Porque o tal condomínio se chama Complexo do Alemão – ou leva o nome de outras favelas - e porque as pessoas que lá vivem são pobres. Apenas pobres. Não são bandidos, marginais nem traficantes. Criminosos ali existem, em minoria – como em qualquer outro local da cidade. Ali vivem trabalhadores, comerciantes, artistas, donas de casa, idosos, crianças e jovens que, apesar de enormes dificuldades, sonham com seu futuro. No entanto, as ocupações e invasões que aterrorizam, isolam, ferem e violam os seus direitos são vistas como “normais” ou necessárias, e recebidas com descaso pela sociedade,

O combate à criminalidade baseado apenas no enfrentamento armado não a reduz, apenas a recicla; não diminui os homicídios, apenas os torna mais cruéis; não restringe a violência a certas partes da cidade, com muitos desejariam, apenas a banaliza e a faz regurgitar mais e mais, ameaçando a vida de todos. As mortes de policiais fazem parte deste ciclo interminável.

A violência do Estado nas favelas não se resume às invasões. Ela se expressa principalmente na ausência de recursos, na violação de direitos, na exploração política, nas intervenções baseadas em agendas eleitorais e não nas necessidades da população. No Complexo do Alemão existem apenas duas escolas. Uma quase foi fechada após um tiroteio em que 17 crianças ficaram feridas. Apenas cerca de 2% de seus jovens têm acesso a atividades culturais e esportivas que os afastem dos riscos a que são expostos. É hora de compreendermos a infâmia desta injustiça. É hora de intervenções de peso, de rasgarmos as favelas com políticas públicas, de integrarmos a cidade e seus territórios de pobreza, com a plena participação da população nas intervenções.

Uma política de combate a violência e de preservação da paz, em nossa cidade, precisa passar necessariamente por um olhar mais eqüitativo da cidade em direção aos seus diversos “condomínios”, ricos e pobres: em todos vivem pessoas que compartilham dos mesmos direitos. Quando compreendermos isto, e exigirmos respeito e cuidado pela vida para todos, poderemos sonhar com polícias comunitárias inteligentes e investigativas, policiais que não disparam suas armas a esmo quando há inocentes por perto, políticos mais confiáveis e punições mais severas contra crimes hediondos. Mas não enquanto formos cúmplices da hedionda desigualdade que divide nossa cidade e nosso país em cidadãos de primeira e segunda classe, em vidas valiosas e outras descartáveis.

* Daniel Becker é diretor do Centro de Promoção da Saúde (Cedaps).





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