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Livro da vergonha

Autor original: Luísa Gockel

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Livro da vergonha

No dia 15 de abril, os jornais Estado de Minas e Correio Brasiliense publicaram a primeira de uma série de reportagens falando de um livro secreto do Exército sobre a luta armada no Brasil no período compreendido entre 1967 e 1974. A obra foi produzida há 19 anos e tinha como objetivo mostrar a versão do Exército sobre esse período violento do regime militar. Pelo menos 1.700 pessoas são citadas no documento.

Os dois jornais conseguiram ter acesso ao documento de quase mil páginas, que comprova que o Exército possui informações sobre mortos e desaparecidos políticos que oficialmente nega ter. O livro foi produzido a partir de 1986, por ordem do então ministro do Exército, Leônidas Pires, que não aceitou o convite da Câmara dos Deputados para comparecer à Casa e prestar esclarecimentos. A Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados e o Ministério Público já pediram cópias do documento.

O historiador Carlos Fico, coordenador do Programa de Pós-Graduação em História Social da UFRJ, é pesquisador e autor de vários livros sobre a história da ditadura militar no Brasil. Em entrevista à Rets, ele analisa os impactos que a descoberta de documentos como esse podem ter e os motivos que até hoje levam os militares a negligenciar informações fundamentais para a história do Brasil e para as famílias de vítimas de tortura.

Rets - Alguns jornalistas e políticos têm considerado que os jornais Estado de Minas e Correio Braziliense deram um furo histórico no dia 15 de abril, publicando trecho de um livro secreto do Exército sobre o regime militar. O senhor já havia publicado uma pesquisa com descobertas semelhantes, não é?

Carlos Fico – Existe um documento que divulguei há alguns anos num livro que é mais ou menos isso. Antes, na década de 1970, já no governo Geisel, havia uma campanha muito forte no exterior, patrocinada por exilados brasileiros, no sentido de denunciar práticas de tortura no Brasil. Durante a década de 1970, isso foi comum.

O governo brasileiro decidiu fazer um relatório que seria entregue à OEA [Organização dos Estados Americanos], tentando demonstrar que eram acusações falsas. Ele relatório foi feito justamente a partir do recolhimento de uma porção de informações em prisões e com supostas evidências de que não havia tortura no Brasil

Esse relatório foi mais ou menos rascunhado e submetido ao ministro da Justiça. Quando este viu o relatório, por alguma razão, decidiu não divulgar. Eu intuo que a razão se deve ao fato de que, na verdade, o relatório acabava comprovando que tinha havido tortura, e não o contrário. Esse documento nunca foi divulgado. E ficou no acervo do Ministério da Justiça, que finalmente pesquisei em 1998 e 1999, quando fiz um livro chamado “Como eles agiam. Os subterrâneos da ditadura militar: espionagem e polícia política” [Record, 2001].

Rets - Que motivos podem levar os militares a escrever ou produzir documentos tão comprometedores como esses?

Carlos Fico - É um problema, sobretudo, relacionado à preocupação que eles sempre tiveram com a imagem externa do Brasil. As denúncias no exterior tinham uma repercussão muito negativa, não apenas em termos políticos, mas até mesmo em termos financeiros. Os EUA, por exemplo, reduziram o apoio econômico ao Brasil durante a ditadura depois do AI-5 e depois dessas denúncias de tortura. O impacto para a imagem externa era muito negativo em todos os sentidos, e uma das estratégias que a ditadura pensou em lançar mão foi essa: fazer um relatório bem extenso, tentando demonstrar que não havia tortura.

Mas isso não foi, afinal, aprovado. O governo não é uma coisa monolítica. Há iniciativas de um determinado setor, ou ministério, ou comandante etc. que, depois de analisadas por escalões superiores, acabam não sendo aprovadas. O relatório que eu publiquei passou por esse processo: começaram a fazer, achando que talvez fosse uma boa idéia, mas depois o próprio presidente da República e o chefe do SNI [Serviço Nacional de Informações] consideraram que era melhor ficar quieto, não falar nada. A decisão final foi essa: não fazer alarde, não comentar o assunto, não dar respostas a perguntas sobre o tema, quando houvesse perguntas até da imprensa estrangeira. Mas, no processo, houve relatório.

Rets – Então a grande preocupação não era, definitivamente, prestar cntas à população brasileira?

Carlos Fico - A grande preocupação não era com a opinião pública brasileira, pois havia censura, o assunto era pouco comentado, e muito menos com direitos humanos. Até porque eles não tinham dúvidas quanto à necessidade desses procedimentos. Eles - não só os subalternos, mas também os generais e até o presidente da República - achavam que era, como o próprio Geisel [o presidente Ernesto Geisel] falou, um "mal necessário". Como se fosse um mal menor. Para obter rapidamente as informações, era preciso, na opinião deles, submeter os prisioneiros políticos a interrogatórios violentos, mesmo que isso implicasse tortura, sem se preocupar muito com o ponto de vista humano. A preocupação mesmo começou a surgir quando ocorreram as denúncias no exterior.

Rets - Esse livro sobre a luta armada no Brasil nunca foi publicado. O que chama a atenção dos movimentos de defesa dos direitos humanos é que as Forças Armadas negam a existência dos documentos que serviram de base para o livro. Como o senhor analisa a resistência que as Forças Armadas têm até hoje pra divulgar informações? Será que a realidade é muito pior do que a que imaginamos?

Carlos Fico - Posso falar bem sobre a resistência ainda hoje em revelar informações daquela época. A tortura se constitui num crime contra a humanidade. É um dos crimes mais graves na tradição dos direitos humanos, é inafiançável. A admissão de que houve tortura sempre foi um grande problema para os militares, para a imagem deles, embora existam alguns relatos e algumas confissões de militares aqui e ali. Depois de tantas denúncias, tantas provas, fica ridículo negar que houve tortura. Porém a admissão oficial pública da tortura, por parte do governo ou das Forças Armadas, através da divulgação de documentos, implicaria um constrangimento pelo qual eles provavelmente não querem passar. Internacional ou nacionalmente.

E, por outro lado, há o problema da anistia. Existe uma controvérsia hoje em dia, um movimento ainda pouco conhecido, que começa a ser feito pelas vítimas e por familiares, de contestação da Lei da Anistia. A lei, de 1979, anistiou os presos políticos, mas anistiou também os torturadores. São os chamados crimes conexos. Houve essa peculiaridade tão esquisita de anistiar também, supostamente, os torturadores. Porque lançaram na lei a seguinte expressão: "Ficam anistiados também os autores de crimes conexos", para aliviar os torturadores.

O movimento Tortura Nunca Mais e outros e mesmo juristas importantes estão contestando isso, dizendo que no caso de tortura, não. Justamente porque a tortura é tradicionalmente caracterizada no Direito Internacional como um crime hediondo e inafiançável. Portanto, se houver documentos que provem concretamente que houve tortura, essa pessoa poderá ser submetida, no mínimo, a um questionamento jurídico.

Rets - O impacto, então, pode ser muito maior do que o choque na opinião pública. Pode desencadear processos jurídicos criminais contra torturadores da época.

Carlos Fico - Exatamente. E, sobretudo, além disso, que seria um prejuízo ao torturador, por assim dizer, haveria o questionamento da Lei da Anistia, de 1979, que foi um dos pilares dessa transição negociada, muito lenta, gradual etc. da saída da ditadura.

Quando a gente fala que a transição brasileira foi muito benevolente com os militares - ao contrário da Argentina e de outros países em que eles foram punidos - isso se deve à Lei da Anistia.

Se hoje alguém for ao Supremo Tribunal Federal mostrando um documento que comprova que fulano torturou, ele estará questionando a própria Lei da Anistia. E isso vai ser, dizendo muito simplesmente, um caos no sistema político brasileiro, que repousa nessa tese de que aqui foi tudo negociado, tudo pacífico, tudo tranqüilo. Provavelmente, os militares não admitiriam a rediscussão da Lei da Anistia. Mas se tivermos documentos muito explícitos com relação a algum militar que tenha torturado, então a Lei da Anistia fica passível de discussão.

Mas a tortura no Brasil, infelizmente, sempre foi praticada antes da ditadura, e continua depois dela, contra pobres - negros, sobretudo, mas contra pobres em geral. A prisão arbitrária das pessoas, a prisão, o inquérito e o interrogatório violentos, quando um policial vai a uma favela, dá um chute na porta e entra sem mandado na casa das pessoas... tudo isso é prática condenável e, em alguns casos, de tortura. Essa violência contra o pobre no Brasil sempre existiu e continua existindo. O que aconteceu foi que, na ditadura, ela foi praticada por militares e contra não só os pobres, mas também a classe média. Foi uma política que a ditadura institui para extrair informações com rapidez.

Luísa Gockel e Maria Eduarda Mattar

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