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Uma nova cidadania

Autor original: Marcelo Medeiros

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Uma nova cidadania
Ilustração: www.realpolitics.co.uk

Os países participantes da União Européia (UE), há muito tempo, estão em busca de respostas para a questão do grande fluxo de imigrantes de países pobres que rumam diariamente para o suposto eldorado. Na França, o recém-eleito Nicolas Sarkozy já defendeu a expulsão de quem esteja ilegal e o aumento da repressão nas fronteiras. Outros países, no entanto, buscam integrar os estrangeiros à sociedade, reconhecendo seu valor e seu potecial de contribuição para a economia e a cultura européias.

A polêmica está difundida na Espanha, uma das principais portas de entrada de imigrantes, sobretudo agora, a poucos dias das eleições municipais, marcadas para 27 de maio. Os estrangeiros querem participar dessas votações, uma vez que vivem no país e nele possuem mais deveres que direitos. Para isso, os imigrantes contam com apoio de diversas ONGs, entre elas a Associação Pró-Direitos Humanos da Andaluzia (APDHA).

Procurado pela Rets para explicar o que essa demanda poderia trazer de positivo, Carlos Arce, coordenador da Campanha pela Cidadania de Residência da APDHA, afirma que o direito ao voto "é uma aposta na integração e na coesão social, já que reconhece os direitos cidadãos de todas as pessoas que realmente formam parte da comunidade". Segundo ele, que respondeu por email, a imigração não é um problema. Pelo contrário, afirma: é solução para aquele país. Dados da Universidade Autônoma de Barcelona, uma das mais importantes da Espanha, mostram que, não fossem os estrangeiros, o Produto Interno Bruto espanhol teria caído 0,6%, em vez de crescer 2,6% em 2006. Só no passado, chegaram à Espanha 636 mil estrangeiros.

Essa contribuição fez com que alguns países europeus reconhecessem o direito ao voto dos imigrantes. Esse reconhecimento, diz Arce, faz parte de um novo conceito de cidadania, vinculado não à nacionalidade do indivíduo, mas à sua residência - o que faria mais sentido num mundo onde os fluxos migratórios são cada vez maiores. "Não existe democracia plena sem sufrágio universal real, que inclua todos os membros da comunidade sócio-política, algo que não ocorre se não se reconhecem os direitos de participação política dos residentes de fora da comunidade", diz. Na Espanha, podem votar espanhóis e estrangeiros vindos de países que permitam o voto de espanhóis em seus territórios.

Rets - A APDHA defende a idéia de que os imigrantes devem ter direito a voto ao menos nas eleições municipais espanholas. Por que uma pessoa que não nasceu na Espanha deve ter esse direito?

Carlos Arce - A posição da APDHA em favor dos reconhecimento dos direitos políticos dos residentes estrangeiros está ligada à nossa aposta em um conceito de cidadania vinculado à residência, ao pertencimento efetivo a uma sociedade, superando a atual concepção de cidadania definida exclusivamente pela origem nacional.

A reivindicação do direito ao sufrágio se sustenta em dois argumentos fundamentais. O primeiro: é uma exigência democrática. Não existe democracia plena sem sufrágio universal real, que inclua todos os membros da comunidade sócio-política, algo que não ocorre se não se reconhecem os direitos de participação política dos residentes de fora da comunidade.

O outro é que o reconhecimento de toda a extensão dos direitos dos residentes estrangeiros é uma exigência de justiça social, como contrapartida de eles estarem sujeitos às mesmas normas de convivência e deveres legais e tributários que seus concidadãos que disfrutam de uma cidadania plena.

Rets - Que critérios seriam utilizados para conceder esse direito? Qualquer um poderia votar?

Carlos Arce - O critério essencial é o pertencimento efetivo à comunidade sócio-política, ou seja, uma residência razoavelmente estável e a vontade do residente estrangeiro de participar. Ainda que acreditemos que a concretização dos prazos deva ser discutida numa fase posterior, como elemento de orientação, é possível tomar o prazo exigido aos nativos dos países da União Européia para participar nas eleições municipais e européias: seis meses de residência (não encontramos nenhuma razão que justifique um prazo diferente para os não-europeus).

Rets - Que países já adotam essa prática?

Carlos Arce - Se nos restringimos ao âmbito europeu, podemos verificar que Irlanda, Bélgica, Dinamarca, Finlândia, Luxemburgo, Holanda e Suécia já reconheceram aos estrangeiros o direito a participar de eleições municipais. Indo um pouco além em direção a esse conceito de cidadania vinculado à residência, na Nova Zelândia se permite aos estrangeiros residentes votar nas eleições nacionais. Por isso não estamos diante de uma questão nova, "exótica", mas sim diante de um debate aberto assumido e resolvido em vários países de nosso entorno.

Rets - O que a Espanha pode ganhar com a concessão desse direito aos imigrantes?

Carlos Arce - O não reconhecimento dos direitos de participação política dos residentes estrangeiros é um fator gerador de exclusão social. A desigualdade e a exclusão social e jurídica de determinados grupos, mantida por um tempo, põem em risco a convivência e harmonia social.

Por outro lado, seu reconhecimento é uma aposta na integração e na coesão social, já que reconhece os direitos cidadãos de todas as pessoas que realmente formam parte da comunidade, superando os limites do conceito clássico de cidadania, vinculado à nacionalidade. Facilita o processo de integração de novos cidadãos na sociedade que os acolhe.

Em resumo, é um reconhecimento da realidade social, já que assumir esta reivindicação em particular, e a da cidadania de residência em geral, nos leva a assumir que vivemos em uma sociedade plurinacional, multiétnica, multicultural e pluriconfesional.

Rets - Todos os países da UE possuem problemas com a imigração. Qual é o perfil do imigrante na Espanha? De que forma ele ajuda o país?

Carlos Arce - Não concordamos com o argumento de que a imigração seja um problema. Os movimentos migratórios têm sido uma constante na história, é quase possível afirmar que são inerentes ao ser humano. As migrações são um fato, uma realidade. Os problemas residem no enfoque sócio-político dado pelos países do norte.

Em relação ao "perfil do imigrante na Espanha", é uma questão que, se tentarmos responder, cairemos mais uma vez no tratamento reducionista do imigrante. Que "média" se pode tirar de um menor marroquino não acompanhado sob a tutela espanhola, uma mulher de idade equatoriana que vive na Espanha por reagrupamento familiar, um "romá" (cigano) romeno nômade que vive de catar sucata, um norte-americano executivo da filial espanhola de uma multinacional, uma jovem nigeriana em situação de documentação irregular, um estudante paquistanês que está fazendo seu doutorado em uma universidade espanhola e do aposentado britânico que vive nas Ilhas Canárias por causa do bom clima?

Todos eles são imigrantes, no sentido de que estão vivendo em um país diferente da nacionalidade que ostentam, mas o projeto migratório de cada um responde a motivações muito diferentes. E o tal projeto será totalmente distinto entre imigrantes que aparentemente poderiam ser enquadrados numa mesma categoria.

Portanto, não se pode incluir todos os imigrantes em uma classificação burocrática estreita e estereotipada. Cada imigrante é uma pessoa única, sujeita a direitos e deveres, e como tal deve ser tratada.

Respeito os que aportam na Espanha e volto a reiterar os argumentos mais conhecidos: desde o freio ao envelhecimento do país com índice de natalidade mais baixo do mundo, passando por seu aporte ao crescimento da economia, continuando pelo inestimável enriquecimento vindo dos novos elementos sócio-culturais trazidos de outras terras.

Ou seja, a chegada do imigrante está na essência do ser humano, como trabalhador e como cidadão. Infelizmente, essas chegadas são freqüentemente estragadas pela identificação político-midiática da imigração com a "invasão-avalanche" decontrolada, com a deliquência...

Rets - Que direitos possui um imigrante recém-chegado à Espanha?

Carlos Arce - Antes, é preciso distinguir estrangeiros com documentação regular dos com papéis irregulares. Estes se encontram em situação de inexistência jurídica, com a espada de Dêmocles da expulsão sempre rondando a esquina. Entre os primeiros, por sua vez, é preciso distinguir entre os nacionais de países da União Européia e aqueles que ostentam nacionalidade de países que não são da UE. Os cidadãos da UE têm reconhecido um alto número de direitos sociais, civis e políticos, inclusive. Por outro lado, os cidadãos de origem não européia têm seus direitos civis e sociais muito mais limitados, vinculados de forma quase exclusiva à condição de trabalhador estrangeiro (regulamentados pela ironicamente chamada Lei Orgânica de Direitos e Liberdades dos Estrangeiros na Espanha, mais conhecida como Lei dos Estrangeiros) e carecem totalmente de direitos de participação política.

Rets - Todo ano, a imprensa mundial repercute a quantidade de gente da África que chega à Espanha em más condições. O que faz o Estado espanhol para recebê-los?

Carlos Arce - Em primeiro lugar, teríamos que nos perguntar as razões pelas quais os imigrantes chegam em tão más condições às costas espanholas. E as respostas que poderíamos encontrar no aperto da política de controle de fronteiras da UE em geral e da Espanha em particular são os sofisticados sistemas eletrônicos de vigilância costeira, as cercas cada vez mais altas na fronteiras dos enclaves africanos sob soberania espanhola de Celta e Melila, a assinatura de novos tratados de repatriação com países subsaarianos, a externalização do controle de fronteiras em países com uma duvidosa trajetória de respeito aos direitos humanos... São todos elementos que empurram os imigrantes a tentar o salto ao eldorado do norte por meio de rotas mais perigosas e distantes.

Some-se a isso a questão do que faz o Estado espanhol a respeito de toda essa situação (com exceção do grande e inestimável trabalho dos serviços de salvamento marítimo, assim como o engajamento de algumas entidades não-governamentais de ajuda humanitária e ao imigrante).

Já haviamos adiantado nossa posição a respeito da Lei dos Estrangeiros, mas gostaria de reiterar que a consideramos um texto normativo que promove um aumento daquilo que prioritariamente pretende reduzir: a imigração administrativamente irregular.

Rets - A eleição de Sarkozy na França pode endurecer as políticas de imigração da Europa?

Carlos Arce - Sem dúvida que Sarkozy não vai se converter em uma bandeira dos direitos dos residentes estrangeiros na França e na Europa, mas as políticas restritivas e repressivas contra os fenômenos migratórios estão generalizadas em todo o entorno da UE há muito tempo, sem distinção entre os governo conservadores e os intitulados de esquerda.

Posto isso, não podemos esconder que nos preocupa que um dos pilares da campanha de Sarkozy tenha sido o agitar do fantasma da migração "avalanche-deliqüente" e que tenha, assim, conseguido muitos votos.

Rets - A Europa deve estimular a imigração internacional?

Carlos Arce - Nem estimular, nem deter; apenas regular as implicações que os fluxos migratórios têm para a Europa de forma racional e respeitosa aos direitos humanos. Acreditamos que o caminho para isso não tem nada a ver com repressão no controle de fronteiras, com o não reconhecimento de direitos fundamentais dos imigrantes, com o fomento da cultura do medo e o rechaço aos imigrantes.

Marcelo Medeiros

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