Autor original: Maria Eduarda Mattar
Seção original: Notícias exclusivas para a Rets
![]() Feto com 6 semanas | ![]() |
Era esperado, mas o Papa foi ainda mais rápido no gatilho. Já no dia em que chegou ao Brasil - na quarta-feira, 9 de maio -, fez declarações duras contra o aborto e os políticos que apóiam sua legalização, destravando uma batalha entre argumentos religiosos e científicos que há tempos envolvem a questão.
As organizações de mulheres já temiam que a passagem de Bento XVI ajudasse a engrossar o coro dos que repudiam o aborto e, por isso mesmo, saúdam a iniciativa governamental de esclarecer que, no país, será respeitado o princípio de Estado laico, previsto na Legislação, e que o tema será, antes de tudo, tratado como questão de saúde pública - como querem as feministas.
O presidente deixou isso bem claro, ao afirmar que iria "preservar e consolidar o país como Estado laico". No encontro que tiveram na quinta, 10, Lula e Bento XVI nem chegaram a tocar neste e em outros assuntos delicados, como a inclusão da disciplina de religião no ensino público, informaram à imprensa fontes que participaram da reunião.
Para Angela Collet, do Observatório de Sexualidade e Política, iniciativa internacional cujo secretariado está sediado na Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia), "as últimas declarações do governo sobre o tema apontam para a continuidade de um processo de aprovação de leis que ajudem a garantir os direitos humanos das mulheres, contendo o atual processo de injustiça social no qual mulheres estão morrendo ou sendo presas por falta de uma legislação justa sobre o tema do aborto. Ou seja, como o ministro da Saúde vem ressaltando nos últimos dias, o tema do aborto deve ser tratado como uma questão de saúde pública".
"As declarações, tanto do presidente Lula como do ministro Temporão [que reiteradamente tem defendido que seja travado um debate sobre o assunto], têm demonstrado um compromisso político no sentido de fazer avançar estas políticas [públicas de direitos sexuais] no Brasil, tratando inclusive da questão do aborto, considerada uma solução extrema para o problema da gravidez indesejada e que tem colocado a vida de mulheres, pobres, em risco. Trata-se então de um compromisso político de governo com a cidadania das mulheres, que precisa ser bastante valorizado", avalia Carla Batista, secretária executiva da Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB) e membro da ONG SOS Corpo.
A articulação lançou nesta sexta uma nota oficial apoiando a laicidade do Estado e apoiando a posição de Lula [leia a íntegra ao lado]. A carta, que já tem a assinatura de 15 organizações e está aceitando adesões, expressa "apoio à postura do ministro da Saúde, que tem manifestado o compromisso com uma sociedade democrática e com a defesa da cidadania das mulheres, reconhecendo como um dever do Estado brasileiro a garantia do direito das mulheres a uma vida com saúde". Já deram seu apoio à nota as Católicas pelo Direito de Decidir, a Central Única dos Trabalhadores (CUT), a Associação Brasileira de ONGs (Abong), a Rede Brasileira pela Integração dos Povos (Rebrip), a Marcha Mundial das Mulheres, a Rede Nacional Feminista de Saúde, a Campanha Brasileira do Laço Branco – Homens pelo Fim da Violência contra as Mulheres e outras.
Os dois lados da trincheira
De um lado, organizações como estas acima querem que o aborto seja legalizado, dando a qualquer mulher a opção de interromper a gravidez se considerar necesssário. Atualmente, a lei que rege a questão é de 1940 e prevê a interrupção de gravidez somente quando ela for decorrente de estupro ou em casos de risco para a vida da mãe. Em qualquer outra circunstância, é crime.
Uma nova legislação para a questão vem avançando a passos lentos, e a última grande vitória para as organizações feministas foi a criação, em 2005, de uma comissão tripartite que elaborou um projeto de lei progressista para o assunto [Leia a matéria Legalização do aborto: proposta que gera polêmica, de outubro de 2005]. Entregue ao Executivo pela ministra da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, Nilcéa Freire, em setembro de 2005, a proposta está desde então, quase dois anos atrás, praticamente parada. Outra briga é para que o aborto previsto em lei seja devidamente garantido nos hospitais do SUS.
Do outro lado, a Igreja Católica mantém o discurso de séculos, em que o único método admitido para controle de natalidade é a tabelinha. Nem a camisinha - amplamente utilizada por católicos e não católicos, e cujo uso é estimulado por todos os programas de saúde do mundo, incluindo a Organização Mundial da Saúde (OMS) - é admitida pela doutrina do Vaticano.
Dado o anacronismo das regras papais, surge a dúvida se já não é uma guerra perdida, na qual, mesmo que vagarosamente, as questões ainda defendidas pela Igreja que contrariem preceitos de saúde pública vão saindo da área de influência do Vaticano. Angela Collet analisa a questão lembrando que a imposição de dogmas e práticas, mais que qualquer coisa, sempre foi uma forma de a Igreja demonstrar poder.
"O Papa e a Igreja não vão 'atualizar' seu discurso porque não se trata de uma questão apenas de discurso. Estamos falando de relações de poder. A Igreja desfrutou durante muitos séculos do lugar privilegiado do poder de decisão sobre os corpos e as mentes das pessoas, e este poder foi colocado em questão. Mas ele existe, de outra forma e com outra roupagem, até os dias de hoje", acredita, completando: "É deste poder que estamos falando quando pensamos no discurso conservador da Igreja. Porque é este poder que tem ao longo do tempo rivalizado com posições mais progressistas também existentes no seio da própria Igreja desde muitos séculos.
Para Paula Viana, coordenadora do Grupo Curumim, ONG integrante da Articulação de Mulheres Brasileiras, a Igreja tem todo o direito de radicalizar seus discursos e fazer com que seus fiéis sigam seus dogmas e leis, mas não pode querer que o Estado brasileiro siga essas mesmas regras. "A política do Vaticano é centralizadora em torno do poder papal. A sexualidade faz parte de nossas vidas desde muito cedo. A escolha pela livre expressão dela é de caráter privado. Ninguém pode exercer o poder de constrangimento sobre isso, pois estará ameaçando a própria saúde das pessoas. A Igreja deveria ser responsabilizada por esses prejuízos causados nas mentes e nos corações", decreta.
Theme by Danetsoft and Danang Probo Sayekti inspired by Maksimer