Autor original: Maria Eduarda Mattar
Seção original: Notícias exclusivas para a Rets
A Rets conversou com representantes de três ONGs feministas sobre a presença do Papa no Brasil e o aquecimento do debate sobre o aborto: Carla Batista, secretária geral da Articulação de Mulheres Brasileiras - rede que divulgou nota oficial nesta sexta - e membro da SOS Corpo; Paula Viana, coordenadora do Grupo Curumim, ONG de Pernambuco que ao longo da semana foi uma das protagonistas dos protestos pró-laicidade do Estado; e Angela Collet, do secretariado do Observatório de Sexualidade e Política, que preparou e veiculou uma série de artigos sobre o assunto nas semanas que precederam a vinda de Bento XVI. Veja abaixo a íntegra das respostas de cada uma.
Angela Collet, do Observatório de Sexualidade e Política
Rets - No Brasil, as políticas públicas de direitos sexuais e reprodutivos têm caminhado bem (estímulo ao uso da camisinha contra a aids, aborto permitido em casos especiais etc.) e a legislação quanto à descriminalização do aborto no mínimo foi apresentada. O ministro Temporão, inclusive, tem mostrado posições progressistas, chegando a abordar a questão do aborto em entrevistas. Porém, a Igreja ainda hoje tem um peso de influência política grande. Você acha que a declarações do papa durante esta visita podem gerar um retrocesso na aprovação de novas leis que garantam a descriminalização do aborto?
Angela Collet - O que acontecerá no futuro, em relação a novas leis não se pode prever, inclusive porque decisões nesta área estão sujeitas a vários outros fatores, como, por exemplo, negociações comerciais, como traz o artigo "Posição inabalável”. No entanto, é importante lembrar que se hoje o Estado brasileiro tem garantidos direitos mínimos a pessoas LGBT, a prevenção e tratamento do HIV/Aids e ao atendimento do aborto previsto em Lei (lei essa de 1940 e que ficou anos sem aplicabilidade de fato), isto se deve à persistência da sociedade civil organizada. As feministas e o movimento de mulheres durante anos lutaram pela implementação e regulamentação do serviço de atenção ao aborto previsto em lei, e mais recentemente ao aborto incompleto, no SUS. E embora seja algo previsto em lei já há décadas, os grupos conservadores continuam apresentando no Congresso Nacional projetos de lei para retrocesso destes permissivos legais. Há projetos de lei que querem proibir, inclusive, a possibilidade de realização do aborto para salvar a vida da mulher, no caso em que a gravidez colocasse em risco eminente de morte.
O que muda com estas últimas declarações de importantes atores Estatais, como o Ministro da Saúde e o Presidente, é que o governo Brasileiro se posicionou de forma explícita em relação a pelo menos duas questões de extrema relevância para o debate sobre aborto e que já vêm sendo postas há muito pelo movimento feminista. Em primeiro lugar, sobre princípios que devem ser seguidos por um Estado laico como o brasileiro [ver artigo "Laicidade à prova"], que, como o pronunciamento do Presidente Lula na última semana deixou claro, pressupõe a separação entre crenças pessoais e decisões governamentais. Em segundo lugar, que o tema do aborto não deve ser tratado a partir de crenças religiosas, mas por uma perspectiva da garantia dos direitos humanos e da justiça social. Enfim, não se pode garantir o que acontecerá com relação a estas leis, mas, a princípio, as últimas declarações do governo sobre o tema apontam para a continuidade de um processo de aprovação de Leis que ajudem a garantir os direitos humanos das mulheres, contendo o atual processo de injustiça social no qual mulheres estão morrendo ou sendo presas por falta de uma legislação justa sobre o tema do aborto. Ou seja, como o Ministro da Saúde vem ressaltando nos últimos dias, o tema do aborto deve ser tratado como uma questão de Saúde pública.
Rets - Desde muito tempo, até católicos não seguem o que a Igreja estabelece: fazem sexo por prazer, usam camisinha, fazem aborto (clandestino) etc. Você acha que a Igreja/Papa estão em uma batalha perdida? Se sim, por que continua com as regras que ninguém segue? Por que não atualizam o discurso e propõem algo mais factível?
Angela Collet - Não se pode dizer que a batalha está perdida porque esta é apenas mais uma etapa de um processo doutrinário que a Igreja Católica vem praticando há muitos séculos. É preciso deixar claro que se trata de uma instituição religiosa, dum lado, com regras e dogmas e, de outro, uma doutrina complexa com muitas correntes teológicas inclusive divergentes. O que observamos, de fato, é uma lacuna bastante grande entre os dogmas da Igreja e as práticas das pessoas católicas quanto a sua sexualidade. Além disso, é preciso considerar que existem diferentes formas de exercício do catolicismo no País. Sendo assim, o que devemos questionar é se estas pessoas que se identificam como católicas e não praticam o que a doutrina mais conservadora, defendida pelo Papa, prega, estão dispostas a reconhecer e tratar estes temas também como uma questão social e de direitos humanos. Ou seja, é preciso saber se estas pessoas vão fazer como vários atores Estatais e formadores de opinião fizeram nos últimos dias, expressando publicamente suas opiniões e divergências quanto aos dogmas da Igreja Católica, ou se irão continuar defendendo publicamente uma posição doutrinária cuja a qual não orienta o seu o dia a dia. Ou seja, o Brasil quer realizar um debate profundo sobre a dupla moral vigente no país e que tem permeado as discussões sobre políticas públicas principalmente no âmbito da saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos e da autonomia de decisão as mulheres?
O Papa e a Igreja não vão “atualizar” seu discurso porque não se trata de uma questão apenas de discurso, estamos falando de relações de poder. A Igreja desfrutou durante muitos séculos do lugar privilegiado do poder de decisão sobre os corpos e as mentes das pessoas e este poder foi colocado em questão. Mas ele existe, de outra forma e com outra roupagem, até os dias de hoje. É deste poder de que estamos falando quando pensamos no discurso conservador da Igreja. Porque é este poder que tem ao longo do tempo rivalizado com posições mais progressistas também existentes no seio da Igreja desde muitos séculos. O caso mais recente no Brasil foi a oposição aberta feita por Ratzinger, então chefe da Congregação do Santo Ofício (ex-Tribunal da Santa Inquisição). Esta não é a primeira vez que Ratzinger vem ao Brasil. Ele já esteve aqui, anos atrás, para combater a Teologia da Libertação. A Igreja Católica não se resume ao Vaticano, ao contrário, o Vaticano é o centro do poder dentro da Igreja que também tem sua dinâmica de disputa de poder entre seus membros.
Paula Viana, coordenadora do Grupo Curumim
Rets - No Brasil, as políticas públicas de direitos sexuais e reprodutivos têm caminhado bem (estímulo ao uso da camisinha contra a aids, aborto permitido em casos especiais etc.) e a legislação quanto à descriminalização do aborto no mínimo foi apresentada. O ministro Temporão, inclusive, tem mostrado posições progressistas, chegando a abordar a questão do aborto em entrevistas. Porém, a Igreja ainda hoje tem um peso de influência política grande. Você acha que a declarações do papa durante esta visita podem gerar um retrocesso na aprovação de novas leis que garantam a descriminalização do aborto?
Paula Viana - Temos muito a temer, mas a sociedade vem amadurecendo bastante. Foi criada uma Campanha Nacional em Defesa da Vida – Brasil sem Aborto, da Frente Parlamentar Contra o Aborto, que tem atuado nos estados a partir das bases de cada deputado, claro quase todos ligados às Igrejas, especialmente à Igreja Católica. Com a vinda do Papa e para impressionar seus eleitores, esses parlamentares deverão endurecer ainda mais suas ações pressionando o Governo Federal a se pronunciar contra os avanços que são necessários em nossa legislação e em nossos serviços de saúde. Além disso, durante esta semana foi levantada a questão pela Igreja Católica da excomunhão dos parlamentares que se posicionarem a favor da descriminalização, a exemplo do que foi feito na Cidade do México quando o aborto foi legalizado naquela capital federal este ano.
Porém, existem grandes diferenças entre como está o debate público hoje e como estava antes, por ocasião da vinda do Papa João Paulo II. Uma prova disto é o próprio Projeto de Lei que tramita hoje na Câmara Federal que foi encaminhado pela Ministra Nicéia Freire, que propõe a legalização do aborto, após trabalho responsável e exaustivo de pesquisa e de escuta aos setores da sociedade organizada, do movimento de mulheres e feministas e de instituições ligadas à ciência e aos órgãos de classe. Essa Comissão foi fruto das proposições encaminhadas por cerca de 3.000 mulheres durante a I Conferência Nacional de Políticas Para as Mulheres, realizada em 2004 e que teve a participação de mulheres de todos os estados do Brasil. Hoje nos preparamos para a II Conferência Nacional, através das Conferências Estaduais e Municipais em todo o Brasil, e certamente as mulheres deverão avançar e cobrar ainda mais do Governo e do Parlamento uma postura mais responsável diante do problema do aborto clandestino e inseguro que ameaça a vida de milhares de mulheres brasileiras por ano, principalmente jovens, negras e pobres, que estão mais expostas à insegurança e aos perigos do aborto inseguro. Vamos mais além, defenderemos com toda nossa capacidade de luta e de mobilização a laicidade do Estado Brasileiro.
Rets- Desde muito tempo, até católicos não seguem o que a Igreja estabelece: fazem sexo por prazer, usam camisinha, fazem aborto (clandestino) etc. Você acha que a Igreja/Papa estão em uma batalha perdida? Se sim, por que continua com as regras que ninguém segue? Por que não atualizam o discurso e propõem algo mais factível?
Paula Viana -Acho que a Igreja tem todo o direito de radicalizar seus discursos e fazer com que seus fiéis sigam seus dogmas e leis, mas a igreja não pode querer que o Estado Brasileiro siga essas mesmas regras. A política do Vaticano é centralizadora em torno do poder papal, essa estratégia poderá fortalecer ainda mais, grupos e pessoas que se consideram católicos a se apropriarem das mudanças sociais que estamos vivendo na atualidade e aí sim, serem fiéis aos princípios de solidariedade, compaixão e respeito à vida humana, a começar pela vida das mulheres que são as que mais vêm sofrendo perseguições e terrorismo psicológico. Essas atitudes confundem e trazem sofrimento. Falar de castidade para jovens só faz encher de culpa e sofrimento os corações tão cheios de amor e de tesão pela vida. A sexualidade faz parte de nossas vidas desde muito cedo, a escolha pela livre expressão dela é de caráter privado, ninguém pode exercer o poder de constrangimento sobre isso, pois estará ameaçando a própria saúde das pessoas. A igreja deveria ser responsabilizada por esses prejuízos causados nas mentes e corações juvenis.
Carla Batista, secretária executiva da Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB)
Rets - No Brasil, as políticas públicas de direitos sexuais e reprodutivos têm caminhado bem (estímulo ao uso da camisinha contra a aids, aborto permitido em casos especiais etc.) e a legislação quanto à descriminalização do aborto no mínimo foi apresentada. O ministro Temporão, inclusive, tem mostrado posições progressistas, chegando a abordar a questão do aborto em entrevistas. Porém, a Igreja ainda hoje tem um peso de influência política grande. Você acha que a declarações do papa durante esta visita podem gerar um retrocesso na aprovação de novas leis que garantam a descriminalização do aborto?
Carla Batista - Acreditamos que as políticas públicas ainda precisam avançar bastante, inclusive o ministro da saúde reconhece isso, para que a população possa ter acesso a formas concretas de exercer os seus direitos, à saúde, à informação e a acompanhamentos adequados para fazer usos de métodos contraceptivos e preventivos de doenças sexualmente transmissíveis e, claro, à disponibilidade destes métodos. As políticas nesta área têm avançado bastante, mas ainda estão aquém do que seria necessário.
As declarações, tanto do presidente Lula, quanto do ministro Temporão têm demonstrado um compromisso político no sentido de fazer avançar estas políticas no Brasil, tratando inclusive da questão do aborto, considerada uma solução extrema para o problema da gravidez indesejada, e que tem colocado a vida de mulheres, pobres, em risco. Trata-se, então, de um compromisso político de governo com a cidadania das mulheres, que precisa ser bastante valorizado.
Possivelmente, o posicionamento do Papa, e da ala conservadora da igreja católica, reforçará o posicionamento dos fiéis que também se posicionavam de forma conservadora. Não há nada de novo neste poscionamento, mas é claro que com a vinda do Papa - e com a imprensa focando este aspecto -, ele se reforça também. No entanto, acreditamos que, como dizem as pesquisas feitas nos últimos dias, que confirmam outras feitas nos últimos anos, a (grande) maioria de católicos e católicas acredita que estas questões não devem ser orientadas pelo que defende a Igreja.
Alguns exemplos de dados (pesquisa Católicas pelo Direito de Decidir e Ibope, feita em 2005): 86% dos católicos defendem que as decisões do Legislativo e do Judiciário devam ser baseadas na diversidade de opiniões, e não em idéias religiosas; 93% acham que o serviço de saúde deve atender as mulheres que tenham problemas de saúde acarretados por aborto; 86% são favoráveis ao uso de contraceptivos etc. Isso significa que o posicionamento do governo brasileiro está na direção que aponta a população. E que com coragem estão enfrentando a pressão feita para que fosse diferente.
Acredito que a posição tomada pelo presidente e pelo ministro, se contrapondo ao posicionamento do Papa, podem contribuir para avançar. A visita do Papa provocou um posicionamento mais claro das autoridades brasileiras. No mandato anterior, o governo, comprometido com o resultado da Conferência de Políticas para as Mulheres, criou a Comissão Tripatirte, mas abandonou o projeto de lei encaminhado ao Congresso. Esperamos que agora o projeto que tira as mulheres que recorrem à interrupção de uma gravidez indejada da criminalização seja apoiado e encaminhado com pressão para a sua aprovação.
A sociedade brasileira entende que as mulheres não devem ser criminalizada, e sim acolhida pelo serviço de saúde, como demonstratam as pesquisas. As mulheres, quando são criminalizadas, costuma ser pelos profissionais de saúde que as atendem, em função da crença religiosa destes. Estas mulheres são julgadas, pelo profissional que devería cuidar da sua saúde e da suas vidas, e nem é por quem deveria julgá-las de acordo com a lei. Estas mulheres muitas vezes ficam largadas em um canto do hospital, à espera da morte, como forma de punição. Então, o que podemos afirmar é que a insistência em manter esta prática na clandestinidade e na criminalidade tem levado estas mulheres à morte. Reconhecer que as mulheres nesta situação precisam de atendimento adequado vai contribuir para construir outras formas de lidar com o problema - e este é um papel que cabe aos poderes públicos e a toda a sociedade.
Há outras igrejas e há também, dentro da Igreja Católica, pessoas que se posicionam de forma bastante distinta: compreendendo maternidade como voluntária, e não como uma obrigação ou um destino para as mulheres. Compreendem também as mulheres como sujeitos, éticos e responsáveis, das suas vidas e daquelas pelas quais elas sempre foram responsáveis. O grande avanço neste momento é ver que o governo brasileiro afirma que a maternidade é também uma responsabilidade social. E que mortalidade materna precisa sim ser evitada e a morbidade materna, tratada com o devido cuidado que as mulheres merecem como cidadãs.
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