Autor original: Maria Eduarda Mattar
Seção original: Notícias exclusivas para a Rets
 Ilustração: contrag8.revolt.org |
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De 6 a 8 de junho, os olhos do mundo estarão voltados para a pequena Heiligendamm, na antiga Alemanha Oriental, onde acontece a próxima Cúpula do G8. Antes disso, e já desde agora, os olhos e ouvidos da sociedade civil organizada estão atentos aos vários encontros e manifestações organizados para marcar posição e tentar de alguma forma influenciar a agenda - e as decisões - do encontro que envolve os sete países mais ricos e a Rússia.
Desde a
Cúpula Alternativa ao G8 até um acampamento de jovens - passando pelo encontro do Conselho Internacional do Fórum Social Mundial, por uma carreata de bicicletas e por uma grande manifestação no dia 2 que vai abrir a semana de protestos: todas essas atividades, programadas por ONGs e grupos da sociedade civil, pretendem fazer ouvir as demandas por ajuda efetiva à África e por um comprometimento mundial sobre as mudanças climáticas - os dois temas que prometem dominar a agenda do G8 e também a do encontro alternativo. Além disso, até a própria legitimidade do grupo estará em discussão.
Quando a Alemanha assumiu a presidência anual do G8 em janeiro deste ano, a chanceler Angela Merkel deixou claro que a África e a redução dos desequilíbrios mundiais seriam oficialmente a prioridade na pauta dos debates do grupo. Assim como já tinham estado em debate no encontro do G8 ocorrido em Gleneagles, Escócia, em julho de 2005, quando os países integrantes se comprometeram aumentar a ajuda humanitária para a África para atingir U$ 50 bilhões anuais até 2010 [
veja mais aqui]. Na época, o tema teve ainda mais atenção com a realização do grande evento musical
Live Eight, que teve apresentações simultâneas em várias cidades a redor do mundo, pedindo atenção à fome e à pobreza mundiais.
Desde então, militantes e organizações cobram atenção ao compromisso firmado - que, pelo ritmo em que a ajuda tem chegado aos países africanos, não será cumprido. Enquanto isso, o continente sofre com as mais graves taxas de pobreza (dois terços das nações mais pobres estão no continente africano) e de incidência de aids (há 26 milhões de africanos com o vírus HIV, segundo a Organização Mundial de Saúde).
De Gleneagles para cá, o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (
IPCC), instância da ONU responsável por estudos sobre o clima, publicou um relatório alarmante [
veja aqui] que coloca o assunto como urgência mundial, um tema com o qual todos os países têm de se envolver. Desde então - o relatório foi publicado em etapas entre fevereiro e maio deste ano -, a questão climática domina as pautas de encontros internacionais. E o mesmo deve acontecer em Heiligendamm, mesmo sem estar previsto no programa oficial, provocando uma certa concorrência - muitas vezes infundada - de temas.
"A pauta ambiental deve 'bloquear' tudo, pois é um ponto polêmico. O governo alemão quer enfrentar e os EUA, não. Não querem nem muita menção a isso", analisa o sociólogo Cândido Grzybowski, coordenador do Ibase, que estará na Alemanha poucos dias antes do encontro do G8, para participar da reunião do Conselho Internacional (CI) do Fórum Social Mundial. O local e data foram estrategicamente escolhidos: participantes da reunião do CI poderão ficar para acompanhar tanto os eventos alternativos quanto o encontro do G8.
Por causa dessa falta de vontade do governo Bush em falar do assunto e também pela complementariedade dos dois temas, Kerstin Löhr, da equipe de campanhas da
Oxfam Alemanha, tem opinião um pouco diferente. "É esperável que os temas África e pobreza continuem sendo centrais e não sejam deixados de lado. Além disso, as nações mais pobres são as que mais sofrem com o impacto negativo das mudanças climáticas. Por isso achamos que, de qualquer forma, os assuntos não devem ser tratados isoladamente", diz.
Peter Wahl, presidente da ONG Economia, Ecologia e Desenvolvimento Mundiais (
Weed, da sigla em inglês), entidade que junto com muitas outras organiza a Cúpula Alternativa, concorda. "Nossa abordagem não é criar competição entre assuntos importantes. Clima, pobreza, África, desenvolvimento, problemas da guerra - todos são temas importantes. E há elos entre eles. As mudanças no clima vão atingir as regiões mais pobres, como a África e os Estados-ilha. Em todas as partes, os pobres vão sofrer mais as conseqüências do que os ricos, que sempre encontram maneiras de mitigar os impactos negativos das alterações no clima", define.
De fato, o que relembra Wahl foi o que avisaram os cientistas do IPCC. O estudo, realizado por 2.500 cientistas de 130 países, inovou ao afirmar que a ação humana tem, sim, responsabilidade sobre as alterações do clima, especialmente a partir da Revolução Industrial iniciada no século 18. Além disso, a pesquisa garante que é preciso tomar atitudes imediatas para tentar minimizar os estragos - sim, porque uma parcela de danos é certa e será irreversível.
Neste contexto de previsões, o relatório coloca diretamente no colo das autoridades mundiais o dever de agir rápido. E, numa conjuntura mundial em que os tratados internacionais sobre o assunto - Convenção do Clima, Protocolo de Quioto etc - claramente não têm conseguido dar conta de resolvê-lo e muitos sequer são respeitados, a necessidade de rediscutir compromissos é patente.
A União Européia (UE) já tem caminhado nesse sentido. Em março, durante a Cúpula Energética da UE, os países se comprometeram a reduzir as emissões de gases que causam o efeito estufa em 20% até 2030. E, se outros países desenvolvidos também se engajarem no mesmo compromisso, podem estabelecer a meta de redução em 30%. Os EUA, por enquanto, não estabeleceram objetivos concretos.
Por isso mesmo, devem fazer esforço para manter os debates dentro da agenda oficialmente prevista, na qual a África é o tema principal. Algumas entidades gostaram. "A chanceler Merkel colocou a África no topo da agenda do G8, e as ONGs estão fazendo lobby para aproveitar essa oportunidade", comenta Kerstin Löhr, da Oxfam.
Porém, assim como no tema clima, os exemplos dos países não são bons. Os compromissos assumidos em Gleneagles, em 2005, não têm caminhado. Entre as várias promessas que saíram da reunião na cidade escocesa estava o cancelamento da dívida externa de 18 países pobres e o aumento da ajuda humanitária - que envolveria o aumento dos investimentos em desenvolvimento em U$ 25 bilhões por ano, até que, em 2010, este valor fosse o dobro do praticado em 2004. Nenhuma das propostas saiu do papel.
De acordo com a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), os países mais ricos investiram no ano passado 5% a menos no continente do que em 2005. Só os Estados Unidos, por exemplo, diminuíram a ajuda para o continente em 20%. Da mesma forma, o percentual de 0,7 do Produto Interno Bruto (PIB) que deveria ser o mínimo destinado por cada país desenvolvido aos países pobres – determinado pela ONU na década de 1970 – nunca foi respeitado.
Um dos entraves claros ao desenvolvimento africano é o comércio injusto levado a cabo pelos países desenvolvidos através de seus subsídios. De acordo com a Organização Mundial do Comércio (
OMC), a participação africana no mercado mundial encolheu de 6% para 2% nos últimos 20 anos.
O resultado do descaso internacional e da cobiça dos mais ricos é catastrófico: dois terços das nações mais pobres estão no continente africano. Os números da Organização Mundial da Saúde (
OMS) assustam: cerca de 30 mil crianças morrem a cada dia no continente e por ano morrem 4,5 milhões antes de completar cinco anos. Além disso, uma em cada 16 mulheres da área subsaariana corre risco de morrer durante a gravidez. A taxa nos Estados Unidos é de uma para cada 3.600.
Dentre as questões de saúde, o que salta aos olhos é o número de 26 milhões de africanos com o vírus HIV. De acordo com a representante da organização
WWF na Alemanha (uma das apoiadoras da Cúpula Alternativa), Astrid Schwietering, é impossível ignorar as 8 mil mortes diárias no continente por causa da doença. “Quem senão os países ricos pode garantir os recursos adequados a longo prazo que garantam o pacote completo, que inclui prevenção, tratamento e assistência?”, questiona. Para ela, é inaceitável que, mesmo com todas essas mortes, ainda hoje não exista um plano específico ou a previsão de quando o dinheiro necessário será liberado.
Outra questão ressaltada pela representante do WWF é a necessidade de medicamentos com preços razoáveis para o combate à doença. “Seria interessante se o G8 enviasse uma mensagem de apoio ao governo brasileiro em relação à atitude de quebrar as licenças em casos de drogas essenciais para a vida, como fez o Brasil no caso do Efavirenz, há poucos dias”, lembra Astrid. “As patentes vêm depois das pessoas”, acrescenta.
O tema também estará fortemente presente na Cúpula Alternativa. “O nosso objetivo é discutir um grande número de questões, dentro e fora da agenda do G8. É uma oportunidade fantástica de mostrar que existem soluções diferentes para temas como o HIV/aids e as mudanças climáticas, além das que são propostas no encontro do G8", defende.
Para Wahl, o problema é que, ao tratar desses assuntos, o G8 não dá a atenção que cada um merece e trata as questões sob um “denominador comum, que é a preservação do domínio sobre o planeta, seu povo e sua natureza, de acordo com os interesses dos poderosos, ricos e privilegiados”.
Grzybowski completa o raciocínio: "Não tenho exemplos do G8 tendo feito coisas positivas. A única preocupação é a promoção da mesma agenda da globalização neoliberal, de preservação e eventualmente do poder dessas nações do grupo, da sua empreitada de controle da ONU. É como se eles preparassem a posição de como vão agir nos espaços multilaterais, seja em negociações comerciais, seja na questão da dívida etc."
Legítimo? Ao lançar esse olhar mais crítico sobre o
modus operandi do G8, há quem chegue a questionar questões mais estruturais, como a própria existência do grupo.
Peter Wahl alega que, apesar de os países do G8 representarem 13% da população mundial, decidem sobre assuntos que preocupam e atingem o mundo todo. "Isso não é legítimo. Além disso, eles marginalizam as Nações Unidas, que têm uma certa legitimidade, apesar de precisar ser democratizada", diz o alemão.
Grzybowski tem opinião parecida. "A minha posição é da ilegitimidade desse fórum
[o G8]. Ao mesmo tempo que esvaziam a ONU, criam esse espaço onde tomam decisões, para não se submeterem à Assembléia Geral da ONU. Temos que deslegitimar o G8. Há uma espécie de privatização de instâncias que a humanidade levou tempo pra criar em termos de espaços multilaterais", atesta.
"Claro, pode-se questionar a eficácia de alguns deles. Alguns não são nada democráticos, como o Banco Mundial e o FMI; a OMC, como princípio, é mais democrática. Dentro da ONU há o nó, que é o Conselho de Segurança, que permite o veto. Alguns dos países com poder de veto são do G8. Ou seja, fazem a verdadeira política fora do espaço de todos. É uma coisa bem antidemocrática", completa.
Esse desejo de questionar a própria existência do G8 também é visto nos sites - de grupos, organizações, jovens etc. - que convocam mobilizações e atividades nos dias que antecedem a reunião dos chefes-de-Estado. No site
G8 Xtra figura um banner pedindo "Faça o capitalismos virar história. Feche o G8", ao lado das convocações para manifestações.
A
Plataforma de ONGs sobre G8 - tradução livre para o nome original G8 NGO-Plattform - é mais moderada. A iniciativa foi fundada em janeiro de 2006 e reúne 40 organizações que se encontram regularmente para programar atividades. No entanto, o tema da série de debates que vêm promovendo - Política do G8: Análises e Cenários Alternativos - também denota a preferência pela mudança no modo de agir do grupo.
Wahl acredita que é preciso ir mais fundo e questionar não só o G8. "O que está em jogo é o próprio modelo neoliberal. O G8 é parte de um arranjo que, junto com o FMI, a OMC, o Banco Mundial, a Otan e outras, promove o neoliberalismo. Nosso foco é mostrar que há alternativas", diz o organizador da Cúpula Alternativa, que também tem na equipe organizadora entidades como Attac, Greenpeace, Oxfam, Fundação Heinrich Böll (ligada ao Partido Verde alemão), Fundação Rosa Luxembrugo, Via Campesina, Amigos da Terra, ActionAid, Focus on the Global South e outras.
Grzybowski, com a experiência de anos à frente de lutas da sociedade civil e como um dos idealizadores do Fórum Social Mundial, vê os dois lados da questão. "Podemos ser realistas e dizer que são eles as economias mais importantes. Sem dúvida, isso é verdade. Mas é um clube fechado. Não estão conseguindo dar governabilidade ao mundo, mas sim perpetuar a mesma coisa. É esse mundo que queremos? É isso que é ser democrático e solidário?", pondera, para em seguida demonstrar que ideais, ainda assim, devem ser perseguidos: "Sei que é luta de Exército de Brancaleone. Mas, em termos éticos, acho que é a luta a fazer".
Maria Eduarda Mattar e
Luísa Gockel