Autor original: Viviane Gomes
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Luis Varese é peruano. Jornalista e antropólogo, saiu de seu país como asilado político e foi para o México - onde se tornou consultor do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR). Não parou mais. Trabalhou na Nicarágua, no México, no Timor Leste e no Haiti. No Brasil desde 2004, é o representante do ACNUR no país. Nesta entrevista exclusiva à Rets, Varese explica as diferenças entre refugiados, deslocados internos, asilados e migrantes. Fala sobre a necessidade de se reforçar a Convenção da Organização das Nações Unidas para Refugiados, de 1951, que considera atual, embora o mundo tenha mudado tanto. “O mundo está cada vez mais rico e cada vez mais egoísta. Essa é a verdade. Não há outra. Nunca o mundo foi tão rico e nunca houve tanta miséria”, afirma.
Rets - Qual é a diferença entre deslocados, refugiados, asilados e migrantes?
Luis Varese - Primeira diferença: migrar é uma ação voluntária. Sabemos que há fatores que levam à migração - a fome obriga a migrar, por exemplo. Mas a grande diferença é que o migrante pode voltar para sua casa, sua terra, sem nenhum risco de vida. O refugiado não pode voltar. Se o refugiado voltar corre o risco de ser preso, de morrer ou ser torturado, dependendo do país de origem dele. Já um deslocado interno não é um migrante, é uma pessoa que perdeu a possibilidade de morar na sua casa, na sua aldeia ou em sua cidade porque o Estado não garante proteção na área onde a pessoa vivia. Então, ela tem que procurar proteção em outra área.
Rets - É semelhante ao que acontece em alguns locais do Rio de Janeiro, com famílias ameaçadas pela violência?
Luis Varese - Sim é semelhante. É também semelhante ao que acontece na Colômbia, que tem o índice mais alto do mundo de deslocados internos. São aproximadamente 3 milhões de pessoas deslocadas na Colômbia.
Rets - E onde ficam essas pessoas? Em campos de refugiados?
Luis Varese - Não, não, não. Moram em bairros de outras cidades. Se a pessoa não pode morar mais em Medelin, então ela vai morar em Bogotá.
Rets - O que leva à criação de campos de refugiados?
Luis Varese - Há momentos como no genocídio em Ruanda, quando, num período de cinco ou seis dias, um país próximo recebeu 250 mil pessoas. Onde você vai colocar 250 mil pessoas? É preciso gerar condições para garantir água potável, banheiros, serviços de saúde, barracas de acampamento, entre outras coisas que é necessário organizar. Hoje, por exemplo, saem do Iraque 250 mil pessoas por mês. Vão para a Síria, para o Irã. Onde esses países vão colocar essas pessoas? Somente em campos de refugiados, até que se encontre uma solução melhor.
Rets - Quando o país vizinho recebe refugiados ele pode sofrer represálias?
Luis Varese - Isso pode até acontecer, mas não ocorre com freqüência. Uma das condições da Convenção da ONU para Refugiados de 1951 é que aceitar o refugiado não cause conflito com o país que emite o refugiado. O governo do Equador, que recebeu 250 mil colombianos, não pode sofrer represálias do governo da Colômbia por isso.
Rets - No Brasil, o fato de existirem o Comitê Nacional para Refugiados do Brasil (Conare) e o Programa de Reassentamento Solidário de Refugiados facilita o trabalho do ACNUR?
Luis Varese - O Brasil tem a lei 9.474/97, que completa dez anos agora, e é uma das leis mais avançadas do mundo. É uma das melhores leis porque ela compreende todos os elementos da Convenção que cria o instituto do refúgio, acrescenta a questão do refúgio como saída para a generalizada violação aos direitos humanos. A partir de 2004, no Marco do Plano de Ação do México, que é um documento assinado por mais de 20 países da América Latina, o Brasil propôs o Reassentamento Solidário.
O reassentamento se dá quando um refugiado - mesmo abrigado em um país vizinho - continua sendo perseguido por alguns dos atores do conflito. Neste caso ele pode solicitar asilo em um outro país. Foi uma proposta do Brasil e hoje está sendo implementada também no Chile, na Argentina provavelmente no Uruguai, Paraguai, em vários países do Cone Sul e do Mercosul.
Rets - Então, é possível deduzir que os países do sul trabalham com mais flexibilidade a questão dos refugiados?
Luis Varese - É difícil trabalhar com países do norte, hoje em dia (depois dos ataques de 11 de setembro, aos Estados Unidos) porque se misturou o tema da segurança com o tema da proteção. O Alto Comissariado denunciou isso seriamente porque o refugiado é uma vítima e não tem nada a ver com atos terroristas. Muitas portas se fecharam, mas ainda assim, temos que reconhecer que os Estados Unidos é o país que mais refugiados acolhe no mundo. Depois de um grande processo de investigação, medidas de segurança e tudo mais, o refugiado pode passar até um ano, ou um ano e meio, esperando para que seja verificada sua condição, e avaliadas as possibilidades tanto para retornar à sua terra quanto para ficar mais tempo no país.
Rets - O tempo de permanência do refugiado num país é uma das preocupações do ACNUR?
Luis Varese - Claro. A melhor solução é que os conflitos que deram origem ao refúgio acabem e que as pessoas possam retornar à terra natal. Essa é a melhor solução, mas nem sempre isso acontece. Há guerras que duram 30 anos; Angola, Colômbia, por exemplo.
Rets - Quando uma pessoa que preenche todas as condições para entrar num país estrangeiro como refugiado utiliza as mesmas táticas de imigrantes ilegais, o que acontece?
Luis Varese - Olha, a necessidade que o refugiado tem de salvar sua vida é tão grande que ele pode recorrer até a documentos falsos ou a um traficante de pessoas. E isso não o prejudica no campo legal. Para o refugiado, reconhecido como tal, não importa se ele entrou num país com passaporte falso, não importa se ele entrou pelo sistema de tráfico de pessoas ou como imigrante ilegal. Ele precisa salvar a vida dele. Então, no momento que ele entra num país e demonstra que é um refugiado, nenhuma ruptura na legalidade pode ser atribuída a ele.
Rets - Logo no início você falou sobre deslocados. As alterações climáticas podem criar muitos deslocados? Como o ACNUR está trabalhando essa questão? Essas pessoas serão consideradas refugiadas ambientais?
Luis Varese - Esse é o grande tema de debate hoje: os refugiados por causa do meio ambiente. Até agora essas pessoas não são consideradas refugiadas. Não figuram na Convenção de 1951. Mas é um tema de debate. É um tema que preocupa bastante a ONU. O que vai acontecer com essas milhares de pessoas que terão que sair de suas terras porque não há mais água ou porque há inundações - ou qualquer outra razão própria da mudança climática? Vários países estão preocupados com isso.
Rets - Quem será mais afetado com o resultado das mudanças climáticas?
Luis Varese - Os mais pobres. Países da África com áreas semi-desérticas que já estão em processo de desertificação. Por isso, temos que aprender rapidamente a encontrar soluções.
Rets - O Alto Comissariado tem sofrido muitas pressões para alterar a Convenção de 1951?
Luis Varese - Na verdade, a pressão não é tanta porque cada país cria sua própria lei para refugiados. Uma convenção é um acordo que compromete os países, porém, cada país tem sua própria lei de refúgio. Alguns países estão retrocedendo em suas legislações para refugiados como, por exemplo, a Suíça e a Inglaterra, que hoje tem leis mais restritivas do que há dez ou cinco anos atrás. Mas o ACNUR não pensa em revisão da Convenção, pensa, sim, em trabalhar pelo fortalecimento da Convenção. Hoje o grande risco de qualquer é revisão é o retrocesso.
Rets - E por que o retrocesso?
Luis Varese - Porque o mundo está cada vez mais rico e cada vez mais egoísta. Essa é a verdade. Não há outra. Nunca o mundo foi tão rico e nunca houve tanta miséria. E aí o trabalho dos direitos humanos, do direito internacional humanitário, o trabalho da sociedade civil, das Nações Unidas tem que ser para sempre abrir as portas. E não permitir que as portas se fechem.
Rets - Nesse sentido a opinião pública tem uma importância grande.
Luis Varese - Claro. Especialmente a de gerar consciência em governos mais progressistas, mais abertos. É o que está acontecendo em alguns países da América do Sul como Chile, Argentina, Brasil - que são países que tiveram cidadãos refugiados durante muito tempo e hoje muitos deles, que foram refugiados, são deputados, senadores, e até presidente, como no caso do Chile. A presidenta do Chile, Michelle Bachelet, foi refugiada, torturada, o pai foi assassinado pela ditadura militar. No Brasil, temos governadores, ministros, prefeitos. Então há muita gente que foi refugiada e hoje ocupa lugar de destaque no cenário político nacional. Esse fato ajuda a construir legislações mais humanitárias quanto ao refúgio.
Rets - E por que essa questão vem preocupando tanto as organizações de mulheres?
Luis Varese - Porque historicamente a mulher sempre foi um objetivo militar. Na guerra a mulher é um objetivo militar. Antigamente, as mulheres aumentavam as tribos, colocavam-nas para terem mais filhos. Atualmente, nas guerras modernas, elas continuam sendo alvo. Aconteceu na Bósnia, quando sérvios violaram oito mil mulheres mulçumanas como um ato de guerra para humilhar o inimigo. Hoje 75% dos refugiados no mundo são mulheres e crianças. Depois da Segunda Guerra Mundial, 95% das vítimas das guerras é a população civil e nesse marco as mulheres são as mais vitimizadas. Por isso, temos que ter uma preocupação especial com a proteção de mulheres e crianças.
Rets - Qual é a perspectiva da ACNUR para o futuro, com relação aos refugiados?
Luis Varese - Em 2005, tínhamos 20 milhões de pessoas sob a proteção do ACNUR (deslocados, refugiados, apátridas). No final de 2006 e início de 2007, já são 34 milhões. O número aumentou notavelmente. Perspectiva? A nossa esperança é que os conflitos acabem e que essas pessoas possam retornar ao local de origem. Mas essa perspectiva não parece ser tão favorável. São conflitos religiosos, étnicos, sociais. A miséria cria conflitos, portanto a nossa perspectiva não pode ser das melhores.
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