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Não ao Tratado de Radiodifusão - sim à democratização de conteúdos

Autor original: Marcelo Medeiros

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No dia 22 de junho, a Organização Mundial de Propriedade Intelectual (Ompi) rejeitou levar adiante a negociação do Tratado de Radiodifusão, que estava em discussão há nove anos. O documento propunha que radiodifusores (de televisão e rádio) de todo o planeta prolongassem o direito que têm sobre os conteúdos que veiculam em suas transmissões por mais 50 anos, mesmo que as produções estivessem sob licenças alternativas, como Creative Commons. Além disso, o tratado ignorava reivindicações como a flexibilização dos direitos autorais em prol do acesso ao conhecimento e o controle a práticas anticompetitivas.

A decisão foi considerada uma vitória por ONGs e ativistas que trabalham na área de licenciamentos alternativos, que se opunham à extensão do direito. Entre os ativistas está o professor da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas Pedro Paranaguá. O Centro de Tecnologia e Sociedade da FGV foi um dos assinantes de uma carta entregue à direção da Ompi pedindo a suspensão da negociação do Tratado de Radiodifusão.

Em entrevista à Rets, Paranaguá explica o impacto dessa decisão no Brasil e qual o seu significado. Para ele, "a indústria de conteúdo no Brasil deveria aprender com isso, com a rejeição do Tratado". Em meio à discussão sobre o uso de dispositivos de proteção contra cópias na implantação da TV digital no país, Pedro pondera: "No Brasil deveríamos aprender que o caminho não deve ser o da limitação ao acesso a conteúdos, mas sim o da democratização da comunicação", afirma.

Rets - Qual o balanço desta reunião da Ompi? O que ela trouxe de novidade?

Pedro Paranaguá - Na verdade houve duas reuniões em semanas seguidas, lá em Genebra. Participei da primeira, em nome da FGV Direito-Rio. A primeira foi sobre a chamada "Agenda do Desenvolvimento", proposta por um grupo de 15 países e liderada por Brasil e Argentina. Explicando de forma breve e simplista: a Agenda propõe a reformulação total do sistema de propriedade intelectual, trazendo questões de acesso a conhecimento (A2K, ou access to knowledge), o que inclui material educacional, medicamentos, cultura etc.

Já a segunda reunião, que acompanhei à distância, mas de forma muito próxima, foi sobre o Tratado de Radiodifusão (ou "Broadcasting Treaty"): uma pressão dos radiodifusores para terem ainda mais proteção legal à utilização de conteúdos, além da proteção autoral já existente.


Ambas as reuniões foram excelentes. Um grande avanço na Ompi, que é o órgão que trata de questões de propriedade intelectual (PI) no âmbito da ONU. Historicamente, a Ompi é dominada por países ricos e por advogados de PI, mas vemos agora uma mudança, ainda que lenta, no sentido de trazer equilíbrio entre os direitos de PI e os direitos do público que utiliza tais bens do conhecimento.

Rets - Qual foi o papel dos representantes do Brasil?

Pedro Paranaguá - Essencial. O Itamaraty, bem como o Ministério da Cultura, têm desempenhado papel importantíssimo e de liderança dentro da Ompi. Outros ministérios participam, mas sem tanta influência direta. Há participação de ONGs, tal como nós da FGV Direito-Rio: estamos presentes na OMPI desde o início da Agenda, há quase três anos. Todos que não são governo são considerados como ONG perante a ONU/OMPI. Temos o direito de palavra lá. Mas, voltando à pergunta, a delegação brasileira é certamente quem deu o pontapé inicial à toda essa mudança e vem trabalhando em parceria com vários outros países, ONGs nacionais e internacionais de interesse público e com a Academia. Sem o Brasil, muito do que se evoluiu não teria ocorrido.

Rets - Há três anos, a Ompi se recusou a organizar um evento para discutir o
"desenvolvimento colaborativo". Agora, porém, faz recomendações com o intuito de melhorar a troca de informações neste sentido. O que aconteceu para que tal mudança ocorresse?

Pedro Paranaguá - É curioso, porque software livre e de código aberto é feito com desenvolvimento colaborativo. E a Ompi utiliza software livre! Outro dia vi um anúncio oficial para recrutar profissional de informática e algumas exigências eram: grandes conhecimentos de linguagem PHP (que é programação em software livre) e sistema operacional Linux. É hilário e paradoxal.


Nesta reunião de junho sobre a Agenda do Desenvolvimento os países ricos tentaram bloquear a recomendação que incluía o termo "acesso a conhecimento", mas no final eles simplesmente não tinham como justificar de forma racional a exclusão de tal proposta e a mesma voltou à pauta.


Tal mudança foi possível pela forte pressão de grupos de consumidores -- tal como o Idec (Instituto de Defesa do Consumidor), do Brasil -- de acadêmicos, de ONGs de interesse público, tanto de países pobres, quanto de países ricos, como a EFF (Eletronic Frontier Foundation), KEI (Knowledge Ecology International ), IP Justice, FSF (Free Software Foundation) dentre muitas outras, juntamente com delegações de países em desenvolvimento, principalmente do Brasil, Argentina (e os demais 13 países, tais como Egito, Venezuela, Peru, África do Sul etc.), Índia e Chile. E até mesmo parte da indústria tem feito lobby para mudanças na OMPI, como é o caso da Dell, Intel, Cisco, entre outras, que são contra o Tratado de Radiodifusão.

Rets - Qual é o impacto dessa mudança para o Brasil?

Pedro Paranaguá - É cedo para se mensurar ainda, até porque a mudança está em andamento e muito precisa ser agora consolidado e implementado. Mas não tem como negarmos que muito mais se discute hoje em dia, no Brasil e no mundo, sobre tecnologia, propriedade intelectual, acesso a medicamentos, alimentos transgênicos, recursos genéticos, conhecimentos tradicionais e todos esses sub-grupos que fazem parte direta ou indireta com a chamada propriedade intelectual. E com tal discussão, muito tem se esclarecido - e a população aos poucos tem percebido que grande parte da retórica da indústria é completamente incorreta. A população começa a compreender e saber de seus direitos, seus direitos humanos e seus direitos como consumidores.

Rets - Um dos principais pontos desta reunião foi a discussão em torno do
"Tratado de Radiodifusão", que acabou rejeitado. Que forças estavam envolvidas
e quais foram as discussões travadas?

Pedro Paranaguá - Foram nove anos de discussão! De forma simplista, há grandes divergências sobre vários aspectos relativos a um possível Tratado de Radiodifusão.
Pontos de vista que divergem, e muito. E algo que foi essencial: parte da
indústria norte-americana foi contra. Parte da indústria de tecnologia,
como Dell, Intel, Cisco, AT&T, HP, Panasonic, Verizon etc. se manifestou
contra o Tratado.

Elas não querem apenas suspender o tratado temporariamente: querem o fim do Tratado -- ao menos da forma como vinha sendo discutido. E o motivo? É simples: elas ganham dinheiro transmitindo informação,programas, conteúdo, e não querem ter suas atividades limitadas porque o conteúdo pode passar a ser controlado. Elas teriam de ter autorização para transmitir conteúdo, caso o Tratado fosse assinado, o que dificultaria muito e engessaria suas atividades. É a tradicional briga entre a indústria de tecnologia com a indústria de conteúdo. Foi incrível, porque houve aliança entre essas empresas de tecnologia e ONGs de interesse público.

Isso foi essencial, ou ao menos um dos motivos, para que o Tratado fosse rejeitado. Mas lembremos que ele não está morto: pode ser proposto novamente.

Rets - Países em desenvolvimento e ONGs defendem um tratado que se refira apenas
ao roubo de sinal. Por que?

Pedro Paranaguá - Oras, porque era essa a proposta inicial. E porque não faz o menor sentido proteger conteúdo além da proteção autoral já existente. Ou seja, proteger, por exemplo, algum programa sobre o qual a emissora não detém direitos autorais, ou programas que estejam em domínio público. É isso que os radiodifusores estão querendo: que eles tenham direito sobre o sinal em si -- e tudo que for junto com o sinal, ou seja, o programa, mesmo que esteja em domínio público ou que ele, radiodifusor, não seja o titular de eventual direito autoral sobre o programa. O sinal não é criação intelectual, portanto não é propriedade intelectual, não é direito autoral. Portanto, não merece proteção -- ao menos no âmbito da Ompi ou de PI em geral. Proteger "roubo" de sinal é outra coisa.

Agora, proteger o sinal em si, como estavam querendo fazer, não faz o mínimo sentido: iria prejudicar o consumidor, que já paga para ter acesso ao conteúdo de TVs fechadas, por exemplo. Além disso, estavam tentando proteger divulgação inclusive feita via Internet: seria o caos. Um retrocesso escatológico e contra os princípios da rede.

Rets - Um acordo relativo ao Tratado de Radiodifusão não parece próximo. No que
países como o Brasil podem se beneficiar?

Pedro Paranaguá - O Brasil deveria aprender com isso. A indústria de conteúdo no Brasil deveria aprender com isso, com a rejeição do Tratado. De novo vemos um paradoxo: na exata semana que o Tratado é rejeitado, o Ministério das Comunicações volta atrás, depois de um almoço, e diz que há consenso sobre a implementação do sistema de DRM (travas tecnológicas que limitam ou impedem gravações etc.) na nova TV Digital do Brasil.

Historicamente ficou comprovado que DRM não funciona: quem quer infringir as leis, copiar sem autorização e ganhar dinheiro com isso, vai continuar, mas o consumidor que paga pelo produto é prejudicado. Nos EUA não deu certo, o "broadcast flag", que é a trava anti-cópia (ou DRM) não foi implementado -- e a indústria continua ativa e ganhando dinheiro. No Brasil deveríamos aprender que o caminho não é o da limitação ao acesso, mas sim o da democratização.

Rets - Como se dá essa discussão no Brasil (a relativa aos direitos autorais de
"broadcasting")?

Pedro Paranaguá - Mal há discussão no Brasil. Nosso Ministro das Comunicações declarou recentemente que há consenso sobre a utilização de travas anti-cópia (DRM) na TV Digital do Brasil. Mas isso não é verdade, absolutamente. Há vários grupos de consumidores, como Idec, que é o maior grupo de consumidor do Brasil, bem como ONGs de interesse público, como Intervozes, Rits etc., além de acadêmicos, que são totalmente contra as travas anti-cópia. E o motivo é simples: elas não funcionam, mas prejudicam a grande maioria dos consumidores, que são leigos no assunto tecnologia. Tais consumidores pagam mais caro por um serviço que é pior, que limita a liberdade e as garantias dadas por lei. Ao passo que infratores conseguem facilmente burlar tais sistema anti-cópia e ganhar dinheiro com cópias ilegais. Portanto, tapar o sol com peneira certamente não é consenso.

Marcelo Medeiros

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