Autor original: Viviane Gomes
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Sandra Carvalho é diretora-executiva do Centro de Justiça Global. A antropóloga, que participa ativamente da mobilização que está envolvendo uma grande quantidade de movimentos sociais e de entidades da sociedade civil em torno nas mega-operações policiais realizadas no Rio de Janeiro. Em entrevista exclusiva à Rets, Sandra explica o que está acontecendo no Complexo do Alemão, área do subúrbio carioca, que desde o dia 2 de maio, está sendo uma arena de verdadeiras batalhas entre as polícias militar e civil, além da Força Nacional de Segurança, e a criminalidade. Ela conta que os moradores estão reféns dessas duas forças, que a dita ocupação da região pelo Estado na realidade não foi feita porque não há policiamento no interior das comunidades e que o crime organizado pode ser combatido de outra forma, sem custos sociais tão altos.
Rets – De que forma o Centro de Justiça Global está acompanhando as denúncias de violação de direitos humanos na ocupação do Complexo do Alemão pela polícia e pelas Forças Especiais?
Sandra Carvalho – A Justiça Global e outros movimentos sociais, tais como a Rede Global de Movimentos contra a violência e o Observatório de Favelas está acompanhando a situação no Complexo do Alemão desde outubro do ano passado. Naquela época, nós recebemos diversas denúncias de comerciantes e de moradores sobre uma ocupação do BOPE (Batalhão de Operações Especiais) que durou vinte dias, aproximadamente. Os relatos que chegaram naquele momento eram de que o BOPE tinha ocupado uma parte da comunidade [Alvorada] e que muitas arbitrariedades estavam sendo cometidas.
Rets – Que tipo de arbitrariedade ocorre?
Sandra Carvalho – Todos os estabelecimentos comerciais, no entorno de uma praça, foram atingidos por tiros. Além disso, os policiais expulsavam comerciantes e moradores de seus estabelecimentos ou casas para que esses locais servissem como bases de apoio para a operação. Ouvimos também muitas queixas com relação a processos de intimidação de moradores e que nos estabelecimentos comerciais, policiais consumiam os produtos que lá estavam. Houve reclamações sobre a dificuldade de ir e vir dentro da comunidade.
Rets – O que vocês fizeram quando tomaram conhecimento dessas denúncias?
Sandra Carvalho – Nós fomos lá. Colhemos depoimentos e, em conjunto com a comunidade, decidimos fazer uma coletiva de imprensa. O encontro com a imprensa reuniu cerca de 500 pessoas, entre moradores das comunidades, parlamentares e pessoas que atuam em organizações de direitos humanos ou entidades sociais.
Rets – E com repercutiu a reunião?
Sandra Carvalho – Com a realização da coletiva de imprensa e com a divulgação das denúncias, o BOPE se retirou do Complexo do Alemão, naquele momento. Mas durante a saída, uma senhora foi baleada e faleceu.
Rets – Nós sabemos que o tráfico hoje representa realmente um poder paralelo que tem que ser combatido. Então, como pode ser feito este enfrentamento pelo Estado e ao mesmo tempo concretizar uma política de segurança que respeite os direitos humanos?
Sandra Carvalho – Essa é basicamente a nossa reivindicação. O que a gente sempre coloca é que o enfrentamento da criminalidade é necessário. Agora, de que forma isso é feito? De que maneira, estamos fazendo esse enfrentamento? O que nós tentamos mostrar para a sociedade é que se a polícia entrar com esse caráter extremamente violento, com um sentido mais repressivo, ela não vai garantir a segurança dos cidadãos que ali estão e também não terá efetividade no combate ao crime organizado e ao tráfico de drogas. O tráfico de drogas e o crime, que está organizado há muito tempo, é uma rede muito mais complexa. A comunidade é um dos centros de articulação do crime organizado e do tráfico de drogas.
Rets – Então, como enfrentar esse poder dentro das comunidades?
Sandra Carvalho – O que a gente entende dessa política de confronto é que ela só se atinge o tráfico em uma de suas vertentes. Não se fala em nenhuma política mais consistente de enfrentamento da corrupção policial, que deixa a droga entrar na comunidade. Ou até mesmo, de desmantelamento dessa rede e de suas outras vertentes.
Rets – Que vertentes são essas?
Sandra Carvalho – Hoje só se reprime o tráfico de drogas na ponta, ou seja, na comunidade. Não há tantas apreensões de drogas contrabandeadas em jatos particulares quanto o número de incursões que estão sendo feitas em comunidades pobres. O tipo de política de segurança que deve ser feita é aquela que não deixa a droga entrar na comunidade.
Nós caminhamos pela comunidade [pela Grota, pela Alvorada...], no dia 28 de junho, logo em seguida à mega-operação policial [dia 26 de junho] e, assim que chegamos percebemos que não havia nenhuma viatura da polícia - a não ser da Força Nacional -, com alguns policiais, em entradas da comunidade. No interior da comunidade, não havia nenhum tipo de policiamento.
Rets – Isso não ocorre porque o policiamento mais no interior da comunidade deixa os policiais muito vulneráveis, uma vez que eles viram alvos fáceis?
Sandra Carvalho – Claro, claro. Por isso é que nós falamos que esse tipo de ação não é eficaz. Ela não consegue garantir a retomada do espaço pelo poder público. Com essas mega-operações, o poder público entra e sai da comunidade. O poder público não fica na comunidade. Então, para aquela população, as operações policiais não significam nada, do ponto de vista do combate à ilegalidade.
Rets – O que significam, então?
Sandra Carvalho – Somente perda de vidas, somente medo. Significam execução de pessoas, sejam elas criminosas ou não. Isso é importante ressaltar porque, felizmente, a gente não tem pena de morte no Brasil [apenas em caso de guerra declarada e isso envolve tanto a Constituição como o Código Penal Militar]. Do ponto de vista da estratégia do combate à criminalidade, vale muito mais a pena ter o suspeito preso do que morto. Se ele estiver vivo, ele pode contribuir com uma investigação. Essa é a visão que temos levado ao governo estadual e, com esse recente apoio das Forças Nacionais, ao governo Federal, por intermédio do Ministério da Justiça.
Rets – E a criminalização das comunidades à qual as entidades de direitos humanos se referem no manifesto?
Sandra Carvalho – É o quadro que vemos quando analisamos a situação e percebemos que essa política de segurança trabalha com dois pólos. É uma linha dicotômica: a luta entre o bem e o mal; entre o mocinho e bandido. Estão demonizando as comunidades e seus moradores.
Esse tipo de discurso da política de segurança que fala “O combate à criminalidade tem um custo” só acontece para determinado segmento social. Quando o Governador falou que as operações serão expandidas para comunidades da Zona Sul do Rio de Janeiro, começou-se a perceber reações contrárias. O discurso mudou para: “Moradores da Zona Sul podem sofrer um estresse com as ações policiais”. Ai, você começa a ver que a política de segurança atribui valores diferentes para a vida humana. E o que é pior: há uma conivência da sociedade com relação a isso.
Se uma operação policial tivesse feito essa mega-operação em comunidades da Zona Sul, que tivesse ocasionado a morte de um morador do Leblon, esse secretário já teria perdido seu cargo, no mínimo. Só que quando essas operações policiais são feitas em comunidades pobres do subúrbio, a morte de um morador não causa indignação na sociedade. Há uma naturalização de que esses espaços são preferenciais da criminalidade e, portanto, as pessoas que morrem ali estão vinculadas ao crime de alguma forma, e que, por isso, suas vidas valem menos do que as dos moradores de outras áreas da cidade.
Rets – Na semana passada, organizações de direitos humanos e entidades sociais se reuniram e fizeram um manifesto porque vocês não conseguiram ser recebidos pelo Secretário de Segurança do Estado do Rio de Janeiro. Qual é o principal objetivo dessa mobilização e qual é a pauta que vocês querem apresentar ao Secretário de Segurança?
Sandra Carvalho – Fizemos uma reunião logo depois de saber que não seríamos recebidos pelo Secretário de Segurança. Essa reunião serviu para acertarmos uma pauta de reivindicações para esse possível encontro. A agenda com o Secretário de Segurança Pública será mantida.
Temos o Caveirão como símbolo dessa política pública criminalizadora da pobreza e que tem como eficácia a brutalidade. Foi lançada uma campanha contra o Caveirão, que teve grande repercussão na imprensa e na mídia em geral, especialmente, por causa da campanha eleitoral. O então candidato ao Governo do Estado, Sérgio Cabral, afirmou por diversas vezes ser contra a utilização do Caveirão, dizendo, até mesmo, que não é através do Caveirão que se fará uma política pública de segurança eficaz; e sim com inteligência, com investigação.
Depois das eleições, as organizações prepararam um documento para ser entregue ao Governador eleito com alguns pontos importantes na área da segurança pública. Infelizmente, nunca fomos recebidos. Diversas agendas foram marcadas, e desmarcadas em cima da hora.
Com o agravamento da situação no Complexo do Alemão, encaminhamos há cerca de duas semanas, uma carta à Secretaria de Segurança Pública e obtivemos como resposta a abertura de uma agenda com o Secretário de Segurança Pública.
Os episódios de agora só tornam mudanças de atitudes muito mais urgentes.
Rets – Até agora quantas pessoas morreram e quantas foram feridas nas operações no Alemão?
Sandra Carvalho – Desde o dia 2 de maio, quando os confrontos foram intensificados, temos 44 mortes e 80 feridos
Rets – E quantas investigações sobre estas mortes foram feitas?
Sandra Carvalho – Nenhuma. E é justamente essa uma das coisas que vamos cobrar do Secretário. Nós queremos saber das investigações. Queremos o fim dessas mega-operações. A sociedade tem aceitado essas operações com muita facilidade. Mas o que nós questionamos são, além dos custos sociais, os custos financeiros dessas operações. No dia seguinte aos confrontos não termos nada, não temos a continuidade de um trabalho, um policiamento que se baseie na proteção da vida e não na execução de pessoas - sejam elas criminosas ou não.
Rets – Mas o que a sociedade não sabe para ser tão conivente com essas investidas?
Sandra Carvalho – A sociedade não sabe é que não há unidades do Programa Saúde da Família (PSF) funcionando no Complexo do Alemão depois do dia 2 de maio. Que todos os alunos de escolas da região foram remanejados para uma única escola, numa situação muito precária. A sociedade não sabe que muitos moradores perderam seus empregos porque não puderam ir ou voltar para suas casas. Então, nós entendemos que essas operações têm um custo social muito alto.
Eu acho que é responsabilidade da sociedade, em geral, também olhar para isso. E não simplesmente olhar para o espaço das comunidades como se ali só ocorressem violações naturais. Essas violações não são naturais. É para isso que nós queremos chamar a atenção.
Rets – A atenção de quem?
Sandra Carvalho – Da sociedade e das autoridades responsáveis pela Segurança Pública. E temos uma preocupação muito grande com a imprensa porque os meios de comunicação têm legitimado essas operações. E como os meios de comunicação, de forma geral, formam a opinião pública também é necessária uma responsabilidade maior. Eu acredito que o grande desafio das organizações é reverter a fala extremamente pejorativa com relação aos direitos humanos.
Rets – A história de que direitos humanos só protegem bandidos?
Sandra Carvalho – Aqui ninguém está querendo passar a mão na cabeça de criminosos. Ficamos também muito preocupados com tantas baixas e mortes de policiais. Por isso, acreditamos que essa política de enfrentamento da criminalidade não é eficiente. Não serve para ninguém.
Além dos policiais morrerem nessas operações, a política de segurança que está sendo aplicada no Rio de Janeiro alimenta o ódio contra policiais.
Rets – Mas os meios de comunicação sabem de fato como a criminalidade é enfrentada nesses espaços?
Sandra Carvalho – Aos olhos dos meios de comunicação, aos olhos da sociedade e aos olhos das entidades responsáveis pela segurança pública, essa política está correta. Realizamos trabalhos com vítimas da violência policial, por exemplo, e uma das coisas que mais me chama a atenção é que a primeira reação dos familiares é tentar provar que aquela pessoa da família não tinha vínculo com o crime. Não existe somente a indignação pela execução, mas também a indignação pela execução sem a existência de um vínculo com a criminalidade.
Eu acompanhei um caso de um pai que, muito articulado, conseguiu fazer uma grande mobilização para provar que o filho, desaparecido, não tinha vínculo com o tráfico de drogas. Ao longo do tempo, eu soube que esse pai tinha perdido outro filho antes desse. Porém, não questionou a morte do primeiro filho porque este sim tinha vínculo com o tráfico de drogas. Então, o primeiro devia, porém, o outro não. A luta daquele pai era provar que o segundo filho não devia nada a ninguém.
Isso quer dizer que até mesmo dentro da família – dentro do imaginário coletivo – a morte, a execução é muito naturalizada.
Rets – Com base em tudo isso, o que vocês vão apresentar ao Secretário de Segurança?
Sandra Carvalho – Vamos entregar um outro documento a ele e tratar de alguns pontos centrais que a gente entende como medidas importantes para serem tratadas no âmbito da segurança pública.
Rets – Quais seriam?
Sandra Carvalho – O fim da utilização do Caveirão na comunidades. Maior independência dos órgãos de corregedoria e ouvidoria de policia. Maior qualificação da ação policial, tanto no sentido de formação desse policial como em investimento urgente em inteligência policial. Achar que o que está sendo feito é inteligência policial é loucura. Isso não é inteligência policial. A gente tem alguns exemplos de operações realizadas pela Polícia Federal com muitas prisões, com apreensão de muito dinheiro, muitas vezes, de muita droga também. A inteligência passou dois anos fazendo investigação, mas houve uma eficiência muito maior e sem mortes.
Essas operações mostram que é possível combater o crime de outra forma. É possível desarticular o crime sem um custo social tão grande. E a sociedade tem que cobrar isso.
Rets – O que se vê é a lógica do "menos um marginal". É isso?
Sandra Carvalho – Exatamente. A atmosfera é que se a polícia entrar numa comunidade e executar cinco pessoas é pouco, porque haverá mais quinze para substituição. E assim é muito fácil dizer que faz segurança pública.
No segundo turno das eleições, na Favela da Maré, o menino Renan morreu, baleado numa perseguição da polícia a suspeitos de roubo que possivelmente estavam na região. Era feriado, dia de eleição, havia muitas crianças brincando nas ruas da comunidade e a polícia entrou atirando para o alto. O que sobe tem que descer, todos sabemos disso; e uma bala desceu justamente no Renan, que tinha apenas dois anos. Eu pergunto: houve destaque para essa morte no dia da eleição? Nenhum. E por quê? Porque a vida do Renan não vale muito. A morte brutal do menino João Hélio gerou toda uma mobilização.
Rets – Mas o João Hélio também foi morto e morava no subúrbio.
Sandra Carvalho – Mas a família do João Hélio já tinha uma condição social mais favorecida. E é claro que a morte do João Hélio foi brutal, causou – e causa até hoje – pavor, horror em todos nós.
Rets – Você quer dizer é que a morte do Renan também deveria causar a mesma indignação?
Sandra Carvalho – Claro, e uma indignação maior ainda. A morte do Renan não foi ocasionada por criminosos. Ela foi ocasionada por uma ação policial despreparada. A polícia não pode sair dando tiros sem retirar as pessoas da frente, ou melhor, sem se incomodar com as pessoas que estão em sua frente. Tem que haver um cálculo de risco. As pessoas não podem morrer com essa facilidade.
Rets – Mas há também relatos de pessoas que são obrigadas por bandidos a servirem como escudos. Isso é verdade?
Sandra Carvalho – É claro que é verdade. E a comunidade se sente acuada dos dois lados. Mas o Estado tem o dever de proteger a vida. É isso que a gente pede: o fim da banalização da violência, o fim da banalização da morte nas comunidades.
Rets – O que você espera da reunião com a Secretaria de Segurança?
Sandra Carvalho – Primeiro eu espero que nós sejamos recebidos para colocarmos para o Secretário de Segurança todas essas nossas preocupações, as denúncias que recebemos. Esperamos conseguir deles um compromisso de que as denúncias e mortes serão investigadas, assim como, esperamos ver uma alteração nos rumos dessa política de segurança pública. Isso é o que esperamos da reunião.
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