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Bombas cluster: depois da guerra, o perigo fica no solo

Autor original: Viviane Gomes

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foto: landmineaction.org
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De 3 e 5 de setembro, a Costa Rica vai sediar um encontro para debater se a América Latina será ou não a primeira área livre de bombas de fragmentação [cluster munitions, do inglês] do mundo. E para decepção de organizações humanitárias nacionais e estrangeiras, o Brasil mantém-se à espreita das negociações. O governo brasileiro não participou da reunião realizada em fevereiro de 2007, em Oslo, na Noruega, quando 46 países assinaram um acordo de intenção para um tratado de banimento das bombas cluster até 2008. Em maio, outro encontro, no Peru, deu andamento às negociações iniciadas em Oslo, porém, o país, na última hora, retirou-se do evento. O processo culminará em dezembro, na Áustria, numa conferência que tem como objetivo principal produzir a redação oficial do Tratado Internacional sobre a Proibição do Uso, da Produção e do Armazenamento de Bombas Cluster. O Ministério das Relações Exteriores do Brasil não confirma nem descarta sua participação nos eventos futuros.

O armamento, também chamado de bombas de submunições, é considerado até mais perigoso do que as minas terrestres. O artefato tem causado em todo o mundo sérios danos a civis, principalmente em crianças e adolescentes de países em desenvolvimento. O Brasil é um dos 34 fabricantes e exportadores do armamento no mundo. Nas Américas, os outros produtores são Estados Unidos, Chile e Argentina.

A Associação Vida Brasil é uma organização não-governamental, fundada em 1996, com sedes em Salvador (BA) e em Fortaleza (CE). Atua na área de direitos humanos e educação para a cidadania de pessoas com deficiência. O tema de trabalho da instituição a levou a participar do encontro no Peru e a continuar acompanhando as negociações. Vanessa Pugliese, assessora jurídica da organização, diz que a bomba é como um contêiner lançado à terra, normalmente por aviões, porém há determinados modelos dessas bombas que são lançados do solo. Quando esse contêiner é lançado são dispersas inúmeras submunições. De acordo com o Human Rights Social Watch “as bombas cluster são grandes armas que contem dúzias e, freqüentemente, centenas [ou até milhares] de pequenas submunições. Elas existem em, pelo menos, 208 modelos e podem ser lançadas do ar ou da terra, liberando mini-bombas ou granadas”, define a organização no relatório “Fatally Flawed: Cluster Bombs and Their use by the United States in Afeghanistan”, de 2002. O raio de ação de cada um desses artefatos equivale a dois ou três campos de futebol.

"O objetivo é que essas mini-munições explodam. Só que 20 a 40% delas falham. Sem explodir, as bombas se transformam em minas terrestres e as áreas atingidas tornam-se campos minados, porque as mini-munições ficam no solo, esperando para serem detonadas", diz. Vanessa explica que não é necessário tocar nas bombas para que elas sejam detonadas. "Elas podem ser acionadas pela ocorrência de ventos, chuvas ou terremotos." Ásia, Oriente Médio, África e Leste Europeu são as regiões mais atingidas - locais vitimados por guerras internas e externas e também por desastres ambientais. Nestas regiões, as áreas rurais estão sendo contaminadas pelas bombas, ficando inutilizadas pelo perigo que passam a representar à vida da população.

foto: landmineaction.org
foto: landmineaction.org

Vanessa conta que a entidade resolveu participar dos debates pelo fato de as bombas cluster e as minas terrestres serem responsáveis por parte do aumento de pessoas mutiladas ou com algum tipo de deficiência no mundo. Noventa e oito por cento das vítimas são civis, segundo a organização Handicap International, que contabilizou 13.306 mortos por essas bombas desde que começaram a ser usadas, nos anos 60. Se forem contabilizados também feridos, o número total de vítimas pode ficar entre 50 mil e 100 mil pessoas. "Há uma garantia de que as bombas cluster atingirão civis e que boa parte dessa população é composta por crianças. Dependendo do país fabricante, as cluster são produzidas em formato esférico e são bem coloridas. Só isso atrairia a curiosidade de qualquer criança, tornando-as mais vulneráveis". Outro fator importante revelado pela assessora é que essas bombas contêm cobre em sua composição. O metal é cobiçado e, em países muito pobres, as pessoas, mesmo sabendo do perigo, se arriscam, tentando retirar o metal das bombas para vendê-lo. Quando não morrem, essas pessoas ficam mutiladas. De acordo com a entidade, os principais comprometimentos são da visão, audição, da capacidade de locomoção e principalmente dos membros superiores - mãos e braços. "Aí começa a geração de uma população com deficiência em países, como nos Árabes, onde o debate sobre a inclusão de pessoas com deficiência na vida social e profissional ainda é muito incipiente. Nesses países, as pessoas com deficiência são bastante discriminadas e vistas, até mesmo pela família, como um estorvo ou uma maldição", desabafa.

Sobre a ausência do Brasil nos debates, Vanessa considera uma contradição. "Quando começamos a debater a Convenção Internacional sobre Direitos das Pessoas com Deficiência, houve, desde o início, uma grande participação do governo brasileiro em conjunto com a sociedade civil. A convenção é um marco por ser a primeira da Organização das Nações Unidas [ONU] deste século sobre direitos humanos. Mas, embora tenha participado ativamente, o Brasil ainda não assinou a convenção e não está participando dos debates sobre as bombas cluster. É uma contradição e uma decepção para nós", declara.

A posição do Ministério das Relações Exteriores em relação às munições de fragmentação é a de privilegiar instrumentos internacionais já existentes que contenham regras para a utilização desse tipo de armamento, ao invés de favorecer a criação de novos acordos a respeito do tema. “Nesse sentido, o Brasil apoiou a aprovação do Protocolo V da Convenção sobre Proibições ou Restrições ao Uso de Certas Armas Convencionais que Podem ser Consideradas Excessivamente Danosas ou ter Efeitos Indiscriminados [CCAC], que estabelece regras para o tratamento de resíduos explosivos de guerra (REG), inclusive aqueles gerados pelas munições de fragmentação. Esse Protocolo, do qual o Brasil é signatário, determina a responsabilização do Estado pelos explosivos remanescentes em territórios sob seu controle após um conflito e os obriga a tornar disponíveis informações e meios para desativar esses explosivos”, explicou o Ministério por e-mail.

Para o representante da Coalizão Anti-Cluster no Brasil [Cluster Bombs Coalition - CMC, em inglês], Cristian Wittmann, o uso das bombas cluster está em desacordo com o direito internacional porque fere os princípios da proporcionalidade militar, da distinção entre civis e combatentes e por causar, por tempo indeterminado, um desastroso efeito pós-guerra. Outras entidades humanitárias internacionais confirmam os efeitos das munições. Em evento realizado no Líbano, no início de 2007, representantes da Cruz Vermelha Libanesa e o Crescente Vermelho puderam observar o custo humano causado pelas munições cluster no sul do país, onde resíduos explosivos deixaram mais de 200 mortos e feridos desde o fim das hostilidades com Israel, em agosto de 2006. Com o aumento da divulgação sobre as conseqüências da utilização dessas armas, alguns países já estão revisando suas políticas a respeito de seu uso, mas ainda não houve uma resposta internacional eficiente.

Cristian rebate o Ministério das Relações Exteriores ao afirmar que o movimento que está sendo denominado de Processo de Oslo é espelhado no sucesso das negociações do Tratado de Erradicação das Minas Terrestres, também conhecido como Tratado de Otawa. “Em 2006, houve a Conferência de Revisão da Convenção sobre Certas Armas Convencionais e a Coalizão Anti-Cluster atuou fortemente, pressionando os Estados signatários da convenção a adotarem um protocolo adicional para proibir completamente as bombas cluster. Só que as negociações da CCAC são baseadas no consenso, que não aconteceu, e isso tornou as discussões insatisfatórias frente às pretensões humanitárias”, explica. Esse resultado mal-sucedido fez com que 49 países, a convite da Noruega, se reunissem em Oslo para iniciarem as negociações para a criação de um instrumento legal internacional sobre as bombas cluster. O resultado do encontro foi uma declaração em que 46 países afirmaram ter vontade política em negociar um tratado internacional com os seguintes objetivos: proibir o uso, a produção, a transferência e o estoque de munições cluster que causem danos inaceitáveis a civis; e estabelecer um marco de cooperação e ajuda que assegurem a provisão adequada de cuidado e reabilitação para sobreviventes e suas comunidades, limpeza de áreas contaminadas, educação sobre o risco e destruição de estoques de munição cluster proibidas. Porém, o Ministério das Relações Exteriores defende que “eventuais aprimoramentos do tratamento das munições de fragmentação deverão ser conduzidos no âmbito da CCAC. A discussão de temas por outras vias que não sejam dos mecanismos multilaterais das Nações Unidas não obtêm a universalização necessária.”

Atualmente, o processo já envolve 75 países, teve a segunda rodada de negociações realizada no Peru e a terceira será na Costa Rica. Embora a tendência seja o aumento de países participantes, alguns Estados estão trabalhando na idéia da criação de ressalvas ao armamento com o propósito de permitir o seu uso. “Argentina, Alemanha e França são países que se pronunciaram a favor da criação de ressalvas, especialmente no aprimoramento de mecanismos de auto-destruição, que seriam acionados em caso de falha do artefato. A Alemanha, por exemplo, aceita ressalvas para ‘fogo direto’ e propõe a utilização de sensores laser para aumentar a precisão sobre os alvos militares.” Cristian argumenta que se essas questões técnicas são necessárias e estão sendo discutidas, então, há realmente riscos para a população civil, assim como são comprovados os índices de falhas das cluster.

Veja um vídeo sobre o índice de falhas das cluster no sul do Líbano:



Campanha

Durante o Fórum Social Nordestino, realizado em Salvador (BA), integrantes da Coalizão Anti-Cluster no Brasil recolheram assinaturas para um abaixo-assinado que será enviado ao Ministério das Relações Exteriores com o propósito de fazer com que o país esteja, pelo menos, representado no encontro da Costa Rica, em setembro. “Nosso objetivo é proteger os civis dos efeitos das bombas cluster. Estamos aumentando a visibilidade do tema, articulando uma coalizão brasileira que já conta com instituições parceiras e simpatizantes tais como a Vida Brasil, o Instituto Sou da Paz, a Rede em Busca da Paz, Educadores para a Paz, Instituto Eco-Existir, entre outras. Neste sentido, todos os movimentos, entidades e indivíduos são bem-vindos. Há diversas formas de participação. As pessoas podem ratificar o abaixo-assinado [baixe aqui o modelo], publicando o documento com explicações sobre as bombas cluster [clique para acessar o texto] ou enviar cartas ao Ministério das Relações Exteriores, da Defesa e à Presidência da República, questionando aspectos do governo sobre a questão e cobrando uma postura humanitária de banimento das bombas cluster”, finaliza.

Viviane Gomes

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