Autor original: Viviane Gomes
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Por Viviane Gomes
A Revista Realejo é uma publicação online de variedades que considera singularidades textuais não para adaptar, mas sim, para fazer uma publicação que pode ser ouvida e bem entendia por pessoas com deficiência visual ou com baixa visão. A revista é uma iniciativa das estudantes Eliziane Lara, Luisa Naves, Flávia Reis e Fernanda Santos, graduandas de Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais [UFMG]. Em nove meses, as jovens desenvolveram seu trabalho de conclusão de curso, que se transformou no projeto "Realejo: a experiência de produzir uma revista para pessoas com deficiência visual" - premiado como melhor trabalho jornalístico na modalidade Revista Digital na 14ª Exposição da Pesquisa Experimental em Comunicação [Expocom Nacional].
“Tínhamos que fazer um Projeto Experimental e experimentamos mesmo. Flávia lembrou de uma experiência da infância; de quando ela fazia aulas de informática e teve como colega um menino com deficiência visual. Então, decidimos abordar esse tema. Desse ponto para a revista foi um pulo”, diz bem-humorada, Fernanda Santos, por telefone. Durante a fase de pesquisa, o grupo conheceu a Coordenadoria de Apoio e Assistência à Pessoa Deficiente [CAAD], do Instituto São Rafael e do Centro de Apoio Pedagógico às Pessoas com Deficiência Visual [CAP-BH]. “Fornecemos subsídios teóricos; disponibilizamos espaço físico para a realização dos grupos focais; articulamos pessoas para participar das entrevistas. Embora estudantes, o trabalho foi realizado com tanta seriedade e competência que foi até premiado”, orgulha-se Elizabet Sá, coordenadora do CAP-BH, órgão ligado à Secretaria Municipal de Educação de Belo Horizonte.
Fernanda Santos comenta que o apoio das instituições foi fundamental para a realização do trabalho, que ainda não tem um site [o áudio da revista está disponível para download no final desta reportagem], mas possui uma comunidade no Orkut chamada “Revista Realejo”. Para ela, além da propor uma nova maneira de pensar na transmissão de informações jornalísticas, a maior lição é desse trabalho é que “a cegueira passou a não ser a característica e sim uma das características”.
Rets - Atualmente, como a informação jornalística é recebida pelas pessoas com deficiência visual?
Fernanda Santos - O que pudemos perceber com a nossa pesquisa é que grande parte do que chega para pessoas com deficiência visual ou com baixa visão chega de forma adaptada. A televisão ou o cinema não são voltados a esse público – já que têm como característica fundamental a imagem – mas procuram adaptar (mesmo que os casos sejam raríssimos) suas transmissões para atender às pessoas com deficiência visual. A revista impressa, também voltada para quem enxerga, é lida, gravada e assim chega aos cegos. Para utilizar a internet, elas precisam não só de programas leitores de tela, mas que os sites sejam construídos para garantir a acessibilidade e permitam essa leitura. Enfim, há uma carência muito grande de veículos produzidos prioritariamente para esse público. Não que os cegos devam deixar de assistir TV (eles dizem assistir), ouvir rádio ou acessar a internet. Mas é preciso também que possam ter acesso a um produto voltado especificamente para eles, que não precise ser adaptado. É importante que as pessoas com deficiência tenham opção para escolher, e foi isso o que nós procuramos proporcionar.
Rets - Qual meio de comunicação é considerado o melhor pelas pessoas com deficiência visual?
Fernanda Santos - Sem dúvida, o rádio. Uma das pessoas com quem conversamos durante a pesquisa chegou a afirmar que o rádio era o veículo que o deixava “em pé de igualdade com os videntes”.
Rets - Qual seria o meio de comunicação ideal para pessoas com deficiência visual?
Fernanda Santos - Também o rádio. Uma publicação citada por muitas das pessoas com deficiência visual com as quais conversamos foi a revista Veja que é disponibilizada em CD pela Fundação Dorina Nowill. Trata-se da gravação em CD da leitura da revista impressa. O problema desse trabalho é que o CD não é acessível a todos porque é em MP3, só quem tem computador ou um som mais moderno que lê esse formato é que pode ouvir a revista. Outro problema é que há uma transferência pura e simples do impresso para o sonoro, assim, várias características se perdem, como imagens, fotos e, até mesmo, a marcação da fala do entrevistado. Ainda assim, ela é bem elogiada pelos cegos. Mas o rádio é o veículo mais citado por eles e o que chega mais perto do ideal de comunicação para esse público.
Rets - Há preocupação em produzir conteúdos específicos para esse público?
Fernanda Santos - Mesmo sendo o rádio o meio mais utilizado por eles e o que mais se aproxima das necessidades das pessoas com deficiência visual, ele também não é feito para quem é cego. Eu trabalhei em rádio por quase um ano e nunca vi, na produção de qualquer programa ou de qualquer matéria, alguém considerar os cegos como público. A preocupação é atender as necessidades de quem não está vendo o que é narrado – e isso é uma situação temporária – mas não de quem não pode ver a cena.
Rets - Vocês descobriram que os efeitos sonoros são muito importantes para pessoas com deficiência visual ou baixa visão. O que eles revelam?
Fernanda Santos - Na verdade, tudo o que ultrapassa o texto propriamente dito contribui na transmissão da informação em qualquer veículo e para qualquer público. No impresso ou na web, por exemplo, não concebemos hoje em dia um texto sem fotos, infográficos, ilustrações etc. O rádio se utiliza de vinhetas, músicas e uma série de efeitos sonoros. Esses recursos são importantes para qualquer público, não só para as pessoas com deficiência visual. Acontece que no caso dos cegos, perdemos todos os recursos e efeitos visuais, por isso a grande importância dos efeitos sonoros.
Rets - Você pode citar um exemplo disso?
Fernanda Santos - Desenvolvemos um Manual de Redação para nortear nosso trabalho. Nele, destacamos todos os tipos de efeitos sonoros, inclusive o silêncio. Isso depende muito da matéria e do texto que é escrito. Nossa preocupação era sempre a de utilizar os efeitos sonoros com algo a mais na transmissão da informação, como um recurso que contribuísse na divulgação da notícia e não apenas para “florear” o texto. Dessa forma, cada texto vai pedir um tipo de efeito diferente. Isso depende também da sensibilidade da repórter para selecionar o melhor efeito no melhor momento.
Rets - Você pode especificar mais um pouco?
Fernanda Santos - Na reportagem “Narradores em campo”, por exemplo, procuramos passar todo o clima das transmissões de futebol pelo rádio para que o ouvinte percebesse toda a emoção desse trabalho. Para isso, inserimos trechos de narrações, manifestações de torcidas, gritos de guerra etc. Já na matéria “Tesouros da serra”, que é um guia de viagem, a preocupação foi mostrar as características marcantes da cidade de Petrópolis. Nesse caso, um dos efeitos sonoros foi o canto de um passarinho comum na região. Outro exemplo é a reportagem principal da revista: “Você se sente seguro?”. Para falarmos sobre violência utilizamos uma trilha sonora mais forte, que passou todo esse clima de tensão que envolve o assunto.
Rets - Vocês também descobriram que a descrição das imagens é igualmente importante. Como ela funciona? Como deve ser feita?
Fernanda Santos - Mais do que a descrição das imagens, mas a descrição por si só é um dos elementos mais importantes ao se escrever para esse público. Esse foi o nosso maior desafio como repórteres e o nosso grande aprendizado nesse trabalho. Ao contrário do rádio, que transmite para pessoas que não estão enxergando no momento, o nosso objetivo é transmitir uma informação para pessoas que não enxergam. Há muita diferença nisso. E como nenhuma das repórteres é cega tivemos que fazer todo um trabalho para perceber as coisas de um modo diferente do que estamos habituadas, tentando chegar o mais próximo possível da percepção do nosso público.
Volto a citar a reportagem sobre Petrópolis. Nessa matéria, a repórter descreve não só o que é visto por ela, mas se preocupa também em transmitir as sensações: o cheiro do lugar, o clima, a geografia da estrada que dá acesso à cidade. E isso é fundamental nesse caso. Uma pessoa que vê uma foto de um lugar com muitas árvores já imagina, e até sente, um clima mais frio. Se vê uma foto de uma estrada sinuosa, com muitas subidas e descidas imediatamente imagina as sensações de se viajar por essa estrada, o “frio na barriga”, etc. E isso é bem mais intenso do que se a pessoa apenar ler um texto que diz que o clima local é frio e a estrada de acesso é sinuosa. A imagem aflora os sentidos. No caso da nossa revista – não temos o recurso da imagem imediata e o nosso público muitas vezes não possui sequer uma memória dessa imagem – a descrição de todas essas sensações torna-se fundamental para que o ouvinte perceba, da forma mais real possível, as características do lugar.
Rets - Isso não torna a matéria um tanto redundante?
Fernanda Santos - Se não for feita com cuidado, sim. Por isso, precisamos tomar o cuidado de não descrever coisas óbvias, o que acaba criando o efeito contrário e faz com que o ouvinte perca o interesse pelo que é dito.
Rets - Isso pode significar um novo paradigma para se fazer jornalismo?
Fernanda Santos - Na verdade, desenvolvemos apenas uma revista. Ainda não conseguimos chegar a essa conclusão. Porém, é certo, que descobrimos uma experiência diferente de fazer jornalismo; uma nova maneira de pensar o desenvolvimento da reportagem; uma nova maneira de passar informações.
Rets - Quais foram as suas descobertas mais interessantes e as de maior relevância?
Fernanda Santos - Acho que a grande descoberta desse trabalho foram os cegos. Descobrimos os cegos como público e como pessoas. E não para os outros – ou não apenas para os outros – mas para nós mesmas. Percebemos que apesar de a deficiência visual ser o tipo mais comum de deficiência, os cegos são ignorados pela grande mídia. Não que ninguém queira considerar esse público, o que acontece é que ninguém considerou considerá-lo. Talvez por achar que é impossível desenvolver algo voltado prioritariamente para eles, ou que os meios existentes já suprem essa demanda e, portanto, não seria preciso desenvolver algo para eles. Esse é um pensamento comum a todos para quem apresentamos nossa revista e era comum a nós que desenvolvemos a revista também. As pessoas dizem: “como ninguém pensou nisso antes?”. E cheguei à conclusão que eu também nunca havia pensado nisso antes.
Nenhuma de nós havia estabelecido um contato profundo e longo com pessoas com deficiência visual antes de começar esse projeto. Portanto, o conhecimento desse público se deu ao longo do trabalho.
Rets - Esse foi o principal aprendizado de vocês?
Fernanda Santos - Para mim, pessoalmente, conhecer essas pessoas para além do senso comum foi um grande aprendizado. Principalmente porque não descobri nada de extraordinário, muito pelo contrário. Com esse trabalho, vi que as pessoas com deficiência visual não são tão diferentes das outras como muita gente pensa. Na verdade elas são diferentes como as outras. É claro que elas possuem limitações, mas há meios de suprir essas limitações que permitem que os cegos vivam bem. É claro que eles não vão ter acesso a tudo, mas quem tem? Cada pessoa possui uma limitação que a impede de fazer certas coisas e, no caso dos cegos essa limitação é a visão. A primeira vez que ouvi de uma entrevistada cega que ela morava sozinha, achei aquilo fenomenal. Hoje, quando um cego me diz que faz faculdade, que é músico, que mora sozinho ou que trabalha, vejo isso com grande naturalidade. A cegueira passou a não ser a característica e sim uma das características.
Ouça a revista eletrônica voltada para o público deficiente visual ou com baixa visão:
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