Pesquisa feita em parceria do IMS com o INSERM (França) analisa a oficialização, pela OMS e pela Unaids, da circuncisão como método de prevenção à transmissão do HIV voltado especificamente para países africanos. Para o sociólogo Alain Giami, perspectiva sanitária pode ser um complicador diante de sistemas de saúde frágeis e de contextos culturais variados.As três décadas de epidemia da Aids foram acompanhadas de variadas e bem-sucedidas formas de prevenção e tratamento do vírus HIV. Atualmente, contrair a doença não equivale a esperar pela morte, como se deu no início da epidemia. No entanto, os avanços produzidos no âmbito da medicina nem sempre se esgotam enquanto medidas puramente técnico-científicas. As mobilizações no Dia Internacional de Luta contra a Aids (1º de dezembro) dimensionam a gravidade que a doença representa para a saúde da população mundial. As respostas à epidemia podem esbarrar em contornos específicos, variando conforme a cultura e o país. A África, continente com os maiores índices de prevalência do vírus, é um exemplo dos desafios que se colocam para a comunidade internacional no combate à doença: as estatísticas têm gerado estratégias, como a recomendação da circuncisão masculina como método de prevenção.Em palestra no Instituto de Medicina Social (IMS/UERJ), o sociólogo Alain Giami abordou os embates que têm sido travados no campo do HIV/Aids em relação à eficácia da circuncisão masculina no enfrentamento da transmissão do vírus de mulheres para homens.Desde o surgimento da epidemia, diversas pesquisas têm sido realizadas para a formulação de dados que possam servir de base para a construção de estratégias de prevenção. A circuncisão (retirada do prepúcio, pele que cobre a glande do pênis) é uma técnica cujo debate data de algumas décadas. Em 2007, após anos de ensaios clínicos randômicos, a Organização Mundial de Saúde (OMS) e o Programa das Nações Unidas sobre HIV/Aids (UNAIDS) passaram a recomendar oficialmente, em países do sul da África, a circuncisão como método de prevenção da transmissão do vírus das mulheres para os homens. Antes da decisão, o médico francês Bertran Auvert destacou-se mundialmente como advogado da circuncisão para prevenir o HIV. Suas pesquisas, desenvolvidas no continente, demonstraram que a retirada do prepúcio – que proporciona menos lesões no pênis durante o ato sexual - impediu que de 6 a 7 entre 10 pessoas contraíssem o vírus.Mas em que medida pesquisas científicas clínicas são suficientemente aptas para embasar políticas de saúde? A problematização dessa questão compõe o objetivo de estudo feito em parceria do IMS com o INSERM (Instituto Nacional de Saúde e da Pesquisa Médica - França), com financiamento da Agência francesa de Pesquisa sobre Aids.Alain Giami, um dos coordenadores da pesquisa, lembrou que a circuncisão tem ampliado seus sentidos para além de uma prática ritual que reflete valores religiosos. “O combate à Aids tem sido uma constante. Entre sucessos e fracassos, a abordagem da saúde pública tem se notabilizado como uma forma de esperança. No entanto, é preciso refletir sobre a circuncisão nesses termos, como uma medida salvadora. Não nos opomos à recomendação da OMS e da UNAIDS. É claro que também estamos interessados na luta contra doença. No entanto, consideramos fundamental abordar o tema de uma maneira crítica”, afirmou Alain Giami.Considerando que a prática pode ser útil, mas sem dar conta da complexidade das formas de prevenção, Giami questionou as condições de implementação de programas de circuncisão em massa em países marcados pela fragilidade de seus Estados e precariedade dos serviços de saúde. “Desde que a recomendação foi oficializada, apenas 5% dos homens efetivamente passaram pelo procedimento”, observou Alain Giami.Além desta questão, Giami criticou o viés universalista das políticas de saúde. “A circuncisão em massa reatualiza uma perspectiva sanitária das práticas sexuais. Estamos falando de pesquisas e organizações internacionais que vão interferir em realidades com suas particularidades. O papel das Ciências Sociais e de outros campos é importante para refletir sobre as implicações que a ciência baseada em modelos estatísticos pode acarretar”, argumentou Alain Giami.Nos anos que antecederam a recomendação, o número de infecções pelo HIV estava em alta. Em 2006, 4.300 milhões de pessoas tornaram-se soropositivas. Testes com gel e vacinas fracassaram naquele período. A possibilidade de tratamento, de alcance global, com antirretrovirais estava longe da realidade por falta de recursos. Modelos de prevenção baseados na mudança dos comportamentos sexuais também foram se mostrando ineficazes, conforme artigos e pesquisas. Por outro lado, pesquisas indicando eficácia da circuncisão foram ganhando projeção e legitimidade, desde meados dos anos 1980. Estudos de natureza biomédica assumiram um papel decisivo na orientação de políticas e intervenções de prevenção, embora resultados nem sempre convergissem quanto à eficácia da circuncisão.“Há países na região africana com 15% da população infectada. É uma situação muito grave, que mostra que métodos como camisinha não são suficientes para combater a disseminação do vírus. A recomendação da OMS e da UNAIDS veio nesse contexto. E, no entanto, parece que de uma perspectiva universalista do corpo”, afirmou Giami.A África é um continente com etnias, grupos sociais e países culturalmente variados. A reapropriação ocidental, pelo viés biomédico, de uma prática cultural pode criar resistência e conflito diante dos variados significados ritualísticos da circuncisão. Além disso, ressalta Alain Giami, é preciso pensar nos efeitos simbólicos que uma medida voltada exclusivamente para países africanos pode criar. “Por que só a África? Ainda que a região sofra com índices muito elevados de infectados e de transmissões, a estratégia pode trazer à tona estigmas e representações que estão ligados ao racismo e à herança colonialista”, argumenta, salientando que é necessário refletir sobre as dimensões culturais das ações no campo da saúde.Uma das críticas também apontadas pelo coordenador da pesquisa refere-se às implicações de gênero. A concepção salvadora da circuncisão pode criar a falsa ideia de que a camisinha é desnecessária. “Qual o impacto disso na exposição de mulheres ao HIV? Uma das hipóteses é cogitar uma perda de capacidade delas de negociar o uso da camisinha com os parceiros”, argumenta Giami. “A situação da Aids expõe uma realidade complexa, matizada, e talvez seja melhor buscar na combinação adequada de estratégias de intervenção o caminho para tentar dar conta da epidemia. Os contextos sociais e culturais devem estar no foco de atenção daqueles que pesquisam e implementam políticas de prevenção ao HIV. As evidências médicas e estatísticas não necessariamente contemplam as dinâmicas envolvidas. A aplicabilidade das políticas deve também ser uma preocupação. Por enquanto, o projeto de circuncidar os homens na região sul da África não está funcionando”, concluiu Alain Giami.Fonte: Clam
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