Autor original: Graciela Baroni Selaimen
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Por Izabela Moi, especial para a Rits
Em 25 de outubro passado, um incidente diplomático internacional teve como ator principal a ação de uma ONG francesa, a Arche de Zoé. Numa operação anunciada como « evacuação sanitária » de vítimas do conflito na região do Darfour (Sudão), 17 pessoas foram presas quando tentavam sair do Tchad com 103 crianças de até 5 anos.
O « incidente », ainda não completamente resolvido (6 franceses continuam presos no Tchad), mexeu com o país e fez de novo voltar à cena o debate sobre o setor humanitário, soberania, direito e dever de ingerência, ONGs e a política internacional. Para os franceses fundadores da Arche de Zoé, a missão era clara : levar as crianças a « famílias de acolhida » para salvá-las da morte certa em Darfour. Para o presidente do Tchad, sua polícia interpelou uma rede européia de « tráfico de crianças africanas para servir de vítimas de pedofilia e transplante de órgãos ».
Com zonas sombrias nas informações e versões de todos os lados, desde o governo francês até os governos locais, o certo é que nem o Tchad nem o Sudão praticam a adoção (não há regulamentação oficial), muito menos leis para a adoção internacional. Se há boa intenção dos participantes da ONG, deve-se também considerar a ilegalidade da « evacuação », que tinha também o apoio da rede internacional Save Darfour.
Há quase 10 anos, o antropólogo francês Bernard Hours publicou uma reunião de vários artigos onde já denunciava o « direito » (ou « dever », como a expressão depois foi cunhada por Bernard Kouchner, ex-Médicos Sem Fronteiras, atual ministro do exterior da França) de ingerência como parte de uma estratégia maior e fruto da globalização.
Em « L'idéologie humanitaire ou Le spectacle de l'altérité perdue » (L’Harmattan, 1998), Bernard Hours é diretor de pesquisa no prestigioso Institut de Recherche pour le Développement (IRD) de Paris, e professor na École des Hautes Études de Sciences Sociales (EHESS), fala do surgimento desse “mercado de ajuda internacional” como a parte visível de um iceberg submerso de intenções e estratégias não tão transparentes, onde os países ricos à frente do processo de globalização conseguem gerenciar crises e instaurar uma moral controladora (ou colonizadora) nos países em desenvolvimento. Para Hours, o “affaire Arche de Zoé” é só mais uma das inúmeras confirmações de sua visão.
Atualmente na China, onde desenvolve um projeto de estudos sobre ação das ONGs (locais ou não) no país, Bernard Hours deu esta entrevista à Rits por email.
Rits – Às vésperas de completar 10 anos, sua crítica à ideologia humanitária parece mais que atual quando um evento como o da Arche de Zoé ocupa as primeiras páginas dos jornais no mundo.
Bernard Hours – A atualidade da Arche de Zoé confirma minhas análises sobre a ingerência occidental. Kouchner e B.H.Lévy são demagogos que confundem seus desejos com a realidade. E temos de ouvir a reação de soberanias ameaças por países como o Tchad, a Rússia… Mesmo a crítica vinda dos muçulmanos radicais parece dirigir-se contra esta imposição de uma formula-ocidental-de-democracia-globalizada. Como salvaguardar as diferenças, as “alteridades” dignamente, num mundo que se quer cada vez mais homogêneo?
Rits – No livro, você afirma que o mercado humanitário, principalmente quando a relação estabelece-se entre ONGs sediadas em países ricos e o trabalho de campo é feito nos países pobres, não é nada mais do que uma nova e disfarçada estratégia colonial, com objetivos novos e também adaptados ao século 21. Pode comentar?
BH – A aventura da Arche de Zoé comprova que o setor humanitário é potencialmente colonial e paternalista, mas vejo que a diferença hoje é que a vitima invade a cena montada pela mídia.
Rits – E o que mudou nessa década?
BH – Minhas idéias mudaram um pouco, mas o setor humanitário também evoluiu, apesar de ainda continuar investindo no mesmo caminho. Eles tornaram-se menos radicais e aprenderam a auto-crítica, inexistente no final dos anos 80. Mas o business continua sendo a instalação (mise en scène) de uma moralidade global a partir de direitos humanos afirmados como universais.
Rits – E que diferença se pode fazer entre os “humanitários” e os “altermundistas” ?
BH – Ambos têm como objetivo moralizar a globalização, mas usando meios diferentes. Os “altermundistas” têm uma visão mais politizada, os humanitários são mais impulsionados pela moral e pela emoção, dizendo-se “post-políticos”.
Rits – Qual o papel das ONGs locais nesse « mercado » ?
BH – A questão mais importante é saber se as ONGs locais são relativamente autônomas, principalmente em recursos financeiros, ou se elas são apenas braços operacionais de agências estrangeiras.
Rits – E o que você vislumbra como o futuro do setor humanitário?
BH – O mercado humanitário vai continuar se desenvolvendo, se profissionalizar cada vez mais, se auto-regular, mas também será cada vez mais dependente de financiamentos internacionais. As causas locais não aparecerão se não estiverem inscritas numa moral-global.
Rits – O senhor conhece a realidade da América Latina ou do Brasil?
BH – Não pessoalmente, apenas por meio de minhas leituras. Mas em minha opinião, a América Latina é o último continente politizado do planeta – o resto do mundo preferiu, infelizmente, abolir a política e passar ao consenso que eu chamo de “post-politique”. [E esse é assunto de seu ultimo livro, lançado também pela L’Harmattan, em 2003,
“Domination, dépendances, globalisation : Tracés d'anthropologie politique »]
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