Carlos A. AfonsoEm artigo recente (*), Lia Ribeiro tenta defender a posição da delegação brasileira que assinou o tratado dos ITRs (as regulações internacionais de telecomunicação aprovadas neste mês pela UIT).Nessa defesa comete erros devido à falta de informação. Os artigos dos ITRs determinam que quem aderir a eles terá que seguir os padrões da ITU-T (divisão de padrões da UIT) -- muitas delas aprovadas nesses 24 anos de vigência dos antigos ITRs. É importante notar que os ITRs supõem que qualquer padrão definido pela ITU-T mesmo depois de assinado o tratado passa automaticamente a valer como parte do mesmo -- basta ler os ITRs. Só isso, especialmente no novo contexto da Internet, já deveria ser razão para qualquer país estudar muito antes de decidir pela assinatura. Não há sequer cláusula que estabeleça condições de adoção para padrões que venham a ser definidos depois da assinatura do tratado. Um deles, definido na norma Y.2770, aprovada em 2012 em segredo pela ITU-T em processo paralelo da WTSA à CMTI-12, detalha os métodos a serem utilizados para que as operadoras pratiquem a bisbilhotagem na camada de enlace da Internet (conhecida como "deep packet inspection", DPI) -- um crime já praticado pelas operadoras de violação da privacidade dos usuários e de manipulação do conteúdo sem o conhecimento destes, e agora (para os países que assinaram o tratado) sacramentado pela UIT. A Europa não aderiu aos ITRs, mas o fez não por ser "aliada dos EUA". Curioso, até onde sei o Brasil também é aliado deles, e até ameaça comprar caças americanos e constrói seu primeiro avião de transporte militar em parceria com a Boeing (vamos usar armas da raposa para defender nossas uvas do pre-sal??). A Europa votou contra porque debate seriamente o tratamento dos direitos cidadãos na Internet e não poderia aceitar uma norma que risca do mapa a neutralidade da rede (e com ela direitos básicos da cidadania) dessa forma. De resto, a Europa votou contra os EUA a favor da entrada da Palestina na ONU. No mundo de hoje, é infantil trabalhar com a lógica binária digna de Bush Junior de "se os EUA for a favor, somos contra". Especialmente num momento que vários países já sacramentaram a neutralidade ou estão em processo de faze-lo na Europa, seria impossível para eles firmar esse tratado. Aliás, por coerência o Chile também não firmou -- foi o primeiro país do planeta a sacramentar em lei a neutralidade da rede. Quando assinou, o chefe da delegação brasileira sabia da norma Y.2770? Um representante graduado do Ministério das Comunicações declarou desconhecer a existência da norma. A Anatel deveria saber, mas a pergunta é: qual foi a participação da agência na elaboração da norma de bisbilhotagem? E, assim, que me desculpe nossa querida Lia, mas é uma bobagem dizer que a neutralidade da rede não foi tratada (ou, de fato, destruida) nos ITRs. Quanto ao spam, ouvimos delegados afirmarem que spam não é conteúdo. O professor Wolfgang Kleinwächter, presente a todas plenárias em Dubai, lembrou que alguns delegados responderam o óbvio: seria como dizer que "água não é líquido" ou uma besteira similar. Portanto, os ITRs tratam diretamente da camada de conteúdo da Internet, abrindo para governos menos democráticos um universo de práticas legalizadas por tratado internacional de interferência no conteúdo que circula na rede. Spam não tem definição detalhada nos ITRs (nem deveria, porque conteúdo não deveria estar lá!!) e dá margem a uso indevido das regulações para censurar conteúdo arbitrariamente. Spam ou qualquer outro elemento dos serviços Internet não poderia estar nos ITRs, ponto -- e são contradições como essa que ajudaram a Europa (e muitos outros países) a formar posição contra o tratado. Como lembra Kleinwächter: "Colocar esses conceitos obscuros em um tratado internacional juridicamente vinculativo significa ter que lidar pelos próximos 20 anos com toda sorte de ações legais". Espero que tanto representantes do governo brasileiro (que sempre participou do grupo assessor de governos da ICANN) como jornalistas com eles comprometidos deixem de confundir a estrutura de coordenação mundial de nomes de domínio e endereços IP com a governança da Internet como um todo. Até editoriais do "Estadão" (ver a edição de 23 de dezembro de 2012) têm isso mais claro que esses setores do governo. Recomendo como um dos remédios para essa mania de seguir cegamente Rússia e China neste assunto (em que Rússia e China o fazem sistematicamente desde pelo menos 2005 em um contexto político muito mais amplo) que leiam o texto do Dr Jeremy Malcolm na revista poliTICs (http://www.politics.org.br/?q=node/132), em que propõe uma estrutura de governança pluralista (e não apenas "multilateral") para preencher o espaço até agora inexistente de uma coordenação mundial envolvendo os muitos temas cruciais da governança que obviamente vão muito além de nomes e números. Lembro ainda que a governança dos números IP hoje é na prática tratada integralmente no âmbito da NRO (Number Resource Organization), organismo que congrega os registradores regionais de endereços IP (como o LACNIC em nossa região), e onde as empresas de telecomunicação participam ativamente -- razão pela qual não estão nem um pouco preocupadas com a ICANN. Isso restringe ainda mais o poder "diabólico" atribuido pelos "like-minded countries" à ICANN. Mesmo os protocolos de comunicação da rede formalmente a ela atribuidos são de fato estabelecidos por consenso pela IETF (Internet Engineering Task Force), um fórum aberto de especialistas patrocinado pela Internet Society. Foi um erro o Brasil assinar o tratado, especialmente no momento delicado e muito difícil em que tentamos aprovar o Marco Civil com a forte oposição das transnacionais das telecomunicações e das grandes empresas de midia que parasitam no comércio dos chamados "direitos de propriedade intelectual". Foi como se o Brasil dissesse ao mundo: ainda não aprovamos o Marco Civil, mas por coerência (ou por imposição do tratado) agora pelo menos a neutralidade da rede desaparecerá dele. Um retrocesso inimaginável para a nação até agora vista pelo resto do mundo como referência de governança pluralista da Internet, pioneira na elaboração de uma carta de direitos da Internet (os "10 princípios" elaborados por consenso pelo CGI.br em 2009) que foi ponto de partida para iniciativas similares em outros países e para nosso cambaleante Marco Civil. Volto a repetir, como disse em minha fala na cerimônia de abertura do IGF em Baku: deixem a Internet florescer livremente em benefício de quem vive em suas extremidades, que são todas e todos nós.(*) http://telesintese.com.br/index.php/indice-geral-lia-ribeiro/21615-wcit-12-os-bonzinhos-da-internet-sao-mesmo-do-bem
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