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Um tapinha não dói em quem se acostumou com a dor

Autor original: Graciela Baroni Selaimen

Seção original: Artigos de opinião

Por Maria Helena Masquetti*
Le Monde diplomatique Brasil**

Carinho é gostoso, tapa é ruim. De quantas pesquisas necessitamos para ter certeza disso? Lembrando Belchior em uma outra música, não precisamos que nos digam de que lado nasce o sol porque bate lá nosso coração — e a esperança de um futuro melhor para nossas crianças.

Amor próprio e consumismo dificilmente combinam. Quem sabe o que é melhor para si não espera que lhe digam o que desejar. Já, quem consome por impulso, aceita que outros lhe imponham um desejo não genuinamente seu. Essa imposição acontece quando a pessoa é induzida, desde cedo, a abrir mão do próprio desejo a fim de atender o de outro. Porém, por mais que os pais se limitem a desejar que os filhos expressem suas próprias capacidades, dividem hoje a educação dos pequenos com uma outra autoridade: a comunicação mercadológica, cujo objetivo é impor o desejo consumista principalmente nas mentes mais jovens. Sob pena de se sentirem excluídos de seu meio social, crianças e adolescentes são induzidos a consumir produtos, serviços e idéias prontas. “Só falta você”, “Não fique fora dessa”, ”Todo mundo está usando”. Convocações como essas têm como endereço certo a necessidade natural das crianças em pertencer a um grupo. Tentando acalmar esta aflição infantil, muitos pais também se confundem frente ao bombardeio midiático.

Como nos clichês dos filmes sobre vampiros, em que a vítima constata que todos os familiares foram igualmente mordidos, os pais se deparam em todos os canais da mídia com a mesma legitimação do absurdo. Temendo se sentirem ultrapassados, passam a duvidar da importância de sua firmeza na educação dos filhos. Para a comunicação mercadológica, meta alcançada. Filmes, novelas, programas de auditório e até os noticiários, nada escapa ao contágio da febre consumista. Nada, incluindo a música. “Um tapinha não dói”, “Dança do créu”, “Tapa na cara” e outras produções do chamado gênero funk encabeçam a lista de músicas vazias de respeito e carregadas de desprezo e violência, principalmente contra as mulheres.

Há poucos dias, uma decisão judicial reconheceu a ofensa explícita em “Um tapinha não dói”. Ao todo, foram sete anos de espera pelo veredicto. Apesar da demora, tanto o acatamento da denúncia como a respectiva multa de quinhentos mil reais aplicada aos autores, significam que ainda temos chances de reverter esta penetração nefasta da comunicação mercadológica em nossas vidas. E significam também que não basta uma mensagem repercutir na mídia para ser boa. Os pais precisam acreditar no que sabem e proteger os filhos. Quando uma menina se põe a dançar e a repetir um refrão desse tipo, mostra o quanto a humilhação e a violência estão sendo banalizadas dentro dela, enquanto os autores da afronta embolsam fortunas por milhões de CDs vendidos. É difícil conter a pergunta: “Quem está orientando essa garota?” Embora não vejamos seu rosto, sabemos que esta doutrina desequilibrada provém de uma indústria de entretenimento que há muito vem atropelando a ética, deturpando a educação e aviltando a infância.

Sob a orientação perversa da ganância comercial, crianças e adolescentes entram na dança frenética do “E daí, o que é quem tem?”. E ao som de refrões repulsivos, aprendem sobre sua sexualidade literalmente no tapa. Fossem tais palavras de ordem dirigidas apenas a adultos – com juízo crítico formado – os danos talvez seriam menores. Mas não é de hoje que as crianças estão sendo abordadas como adultos para benefício das vendas. Há mais de duas décadas, Neil Postman já alertava: “O novo ambiente midiático que está surgindo fornece a todos, simultaneamente, a mesma informação. Dadas as condições que acabo de descrever, a mídia eletrônica acha impossível reter quaisquer segredos. Sem segredos, evidentemente, não pode haver uma coisa como infância”.

Na busca da felicidade inalcançável, sempre tão perto dos olhos e distante da realidade de cada um, as pessoas tendem a consumir mais e mais. Sendo assim, que importa aos loucos por lucro que as crianças e os adolescentes se encaminhem para relacionamentos perversos; para a gravidez precoce ou para a degradação de seus sonhos? Se não importa a eles, deve importar à sociedade. A natureza nada entende de subterfúgios para a obtenção do prazer, muito menos de ataques explícitos à feminilidade. Sua especialidade é o equilíbrio e a temperança. Para tanto, ela determinou que, no período entre a segunda infância e a adolescência, ocultaria das crianças os impulsos de ordem sexual que elas ainda não podem compreender nem administrar, devido à sua imaturidade física e mental.

Esse período, ao qual a psicanálise chamou de Latência, é um tempo providencial por permitir às crianças o alcance da maturidade genital e a construção das barreiras psíquicas necessárias ao controle dos impulsos. Enquanto isso, elas brincam, criam e canalizam a produção da energia ligada ao interesse sexual para sua socialização e aprendizagem. Freud explicou isso também: “As influências externas da sedução são capazes de provocar interrupções do período de Latência ou mesmo sua cessação e, neste sentido, o instinto sexual das crianças se revela, na verdade, perverso e polimorfo; parece, além do mais, que qualquer atividade sexual prematura desta ordem diminui a educabilidade da criança”. Se adultos conscientes incluem em sua relação sexual a violência e a humilhação, provém da história de cada um. Deixemos, portanto, às crianças o direito de desenvolverem em paz sua sexualidade com a perspectiva de não machucarem nem a si nem a ninguém.

"A idéia surgiu num dia em que dei um `tapinha corretivo’ em minha filha e ela retrucou: `Pai, um tapinha não dói’”, eis a explicação do autor aos jornais. “Sua boca vou beijar, tô visando tua bundinha, maluquinho prá apertar”, eis um trecho da música. Difícil saber o que dói mais ouvir. É preciso distinguir liberdade de expressão de liberdade para ofender ou para abusar da imaturidade de crianças e adolescentes, roubando-lhes a infância e a dignidade. Primitivos todos fomos um dia, mas para que, afinal, lutamos para evoluir? A viabilidade da vida em comunidade depende do acordo mútuo que estabelecemos, em algum lugar do nosso passado, para controlar nossos impulsos. Quem já participou de uma reunião de condomínio sabe por que elas geralmente não são tão confortáveis. Uma coisa é um morador achar prazeroso pular de tênis na piscina, outra é os demais concordarem. Estabelecer regras de convivência não é fácil, no entanto é imprescindível.

De todas as formas de comunicação, a música é a expressão cultural que mais conservou sua dignidade. Pelo menos até levar esses tapas na cara. Era o código para denunciar arbitrariedades, expor paixões e, menos do que machucar, ela tentava lamber nossas feridas. O deboche e a inversão dos valores ficavam por conta das marchinhas de carnaval que, mesmo assim, por se enquadrarem em tal contexto de folia passageira, confessavam sua obediência aos limites éticos e morais. Carinho é gostoso, tapa é ruim. De quantas pesquisas necessitamos para ter certeza disso? Lembrando Belchior em uma outra música, dessas que não doem nada, mas ajudam a pensar melhor, não precisamos que nos digam de que lado nasce o sol porque bate lá nosso coração e a esperança de um futuro melhor para nossas crianças.

*Maria Helena Masquetti é psicóloga clínica e atua no Projeto Criança e Consumo, do Instituto Alana. Formada anteriormente em Comunicação Social foi, durante 12 anos, redatora publicitária.

Este artigo foi publicado originalmente no Le Monde diplomatique Brasil, em 28 de maio de 2008.

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