Autor original: Graciela Baroni Selaimen
Seção original: Artigos de opinião
Por Izabela Moi, de Paris
A cada nova tragédia usada e abusada pela imprensa, como o caso da morte da jovem Eloá, em 20 de outubro passado, a pauta de “segurança pública” vira vedete. Principalmente em época de eleições municipais, quando os candidatos disputam cada voto em troca da garantia de segurança individual. Por isso o livro que reúne nove artigos do sociólogo francês Loïc Wacquant, 48, lançado em julho, é tão primordial.
Não há novidades ali - o professor de sociologia da Universidade de Berkeley e seguidor do téorico Pierre Bordieu (1930-2002), desenvolve suas idéias há mais de 15 anos em torno de um eixo central: a percepção de que a globalização do neoliberalismo não apenas empurrou o Estado do bem-estar social para sua auto-degradação, mas fez com o que esse mesmo Estado procurasse sua legitimação de poder e existência nas políticas de segurança pública. Para ele, o controle social da pobreza, no sistema neoliberal vigente, se faz pelo seu encarceramento ou pela guetização espacial das classes mais baixas, não mais por via de políticas públicas que procuram sua erradicação.
Esse é o fio condutor dos artigos publicados em “As duas faces do gueto” (160 págs.). Mas talvez o leitor deva começar o livro pelo último artigo, que na apresentação o próprio autor chama de “conclusão”. “O pensamento crítico como solvente da doxa” é a justificativa de Wacquant para continuar publicando e escrevendo, não apenas como resultado de seu trabalho de pesquisador, mas como um intelectual que acredita que o debate ainda pode transformar a realidade social.
Nesse artigo, ele explicita sua posição de militante:
"O conhecimento dos determinantes sociais do pensamento é indispensável para libertá-lo, ainda que modestamente, dos determinismos que pesam sobre ele (bem como sobre todas as práticas sociais) e assim nos colocar em posição de nos projetarmos mentalmente fora do mundo, tal como nos é dado para inventar, concretamente, outros futuros que não o que está inscrito na ordem das coisas."
Por isso, além da preocupação em revisar conceitos sociólogicos à luz do contexto do século 21, como o do gueto (artigo 5, que dá título ao livro), e tentar olhar com distância e crítica o que pode ser considerado como a ordem natural das sociedades, ele usa e abusa das comparações geográficas e/ou históricas para desconstruir as “verdades” do presente. E sem linguagem rebuscada.
Wacquant já esteve sete vezes no Brasil, e tentou chegar o mais perto que pôde da realidade do país. Em entrevista à Folha, em maio de 2006, o professor – e também pesquisador do Centro de Sociologia Européia, de Paris -, reafirmava, quando perguntado sobre as rebeliões coordenadas de presos que sacudiram o país na época, que “expandir esse estado [penal – polícia, tribunais e sistema judiciário] não fará nada para acabar com as causas do crime, especialmente quando o próprio governo não respeita as leis pelas quais deve zelar: a polícia de São Paulo mata mais que as polícias de todos os países da Europa juntos, e com uma quase impunidade. Os tribunais agem sabidamente com preconceito de classe e raça. E o sistema prisional é um campo de concentração dos muito pobres”.
A penalizacao da pobreza é sua causa máxima. Segundo Wacquant, “o sistema penal se tornou uma forma de conter as mazelas sociais que decorrem da ausência de políticas públicas eficientes. As prisões se transformaram em aterro sanitário para dejetos humanos de uma sociedade cada vez mais diretamente subjugada pelos ditames materiais do mercado e da compulsão moral da responsabilidade pessoal (no lugar da social)".
Falta um pouco de jogo de cintura à tradução dos textos (“America” é muitas vezes traduzida como “América”, quando sabemos que o autor está falando dos Estados Unidos), e Wacquant tende a generalizar o contexto francês, que ele conhece tão bem, a uma possível comoslogia européia. Mas isso tudo parece detalhe perto da importância de cada um de seus artigos – que são, pelo tamanho, mais digestos e acessíveis para o público interessado.
Trechos:
"Criação de um novo regime que pode ser caracterizado como 'liberal-paternalismo'. Ele é liberal no topo, para com o capital e as classes privilegiadas, produzindo o aumento da desigualdade social e da marginalidade; e paternalista e punitivo na base, para com aqueles já desestabilizados seja pela conjunção da reestruturação do emprego com o enfraquecimento da proteção do Estado de bem-estar social, seja pela reconversão de ambos em instrumentos para vigiar os pobres."
"Toda a questão reside em saber se esse caminho europeu é uma alternativa genuína ao estilo norte-americano de encarceramento ou se é simplesmente um estágio na trilha do encarceramento em massa. Saturar bairros marcados pela exclusão social com agentes policiais, sem melhorar as condições e opções de vida e de emprego de seus residentes, certamente levará a um aumento de prisões e condenações, e, ao fim, ao crescimento da população encarcerada. (...) Nas sociedades que vivenciaram experiências autoritárias recentemente, como as do Brasil e da Argentina, a aplicação das penalidades neoliberais significa, na verdade, o restabelecimento da ditadura sobre os pobres."
*Izabela Moi é jornalista colaboradora da Rets.
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