Autor original: Graciela Baroni Selaimen
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Preocupadas com a maneira pela qual as autoridades de Mato Grosso do Sul continuam a violar os direitos humanos previstos nos tratados internacionais sobre a matéria ratificados pelo Brasil [1] e as garantias asseguradas pela Constituição Brasileira, um grupo de entidades e redes de promoção e defesa dos direitos humanos reprodutivos das mulheres [2] entregou ao Secretário Especial de Direitos Humanos da Presidência da República, Paulo Vanucchi, o relatório "Processos judiciais envolvendo abortamento no Brasil: negação dos direitos reprodutivos das mulheres em Mato Grosso do Sul". O documento, apresentado durante a XI Conferência Nacional de Direitos Humanos, solicita às autoridades competentes que tomem medidas imediatas para suspender as investigações e o processamento das mulheres pela prática de aborto no estado do Mato Grosso do Sul, protegendo os seus direitos humanos e prevenindo futuras ações semelhantes em outros estados do Brasil.
Principais pontos do relatório
1. O estouro da clínica
Em 13 de abril de 2007, a polícia de Mato Grosso do Sul, um estado na região centro-oeste do Brasil, invadiu uma clínica de planejamento familiar e confiscou os registros médicos de quase dez mil mulheres. A invasão se seguiu a uma notícia amplamente divulgada na mídia, que acusava a clínica de fornecer serviços ilegais de abortamento. O mandado não autorizava a polícia a pegar as fichas médicas das pacientes. Apesar disso, a polícia confiscou as fichas de aproximadamente 9.896 pacientes que estiveram na clínica de planejamento familiar dentro de um período de vinte anos. A polícia também levou medicamentos e instrumentos médicos que estavam na clínica.
2. As irregularidades na investigação policial e no processamento das mulheres
A investigação da polícia de Mato Grosso do Sul após a invasão da clínica está marcada por irregularidades que violam tanto a legislação brasileira quanto os padrões internacionais de direitos humanos. Isto porque, durante a investigação, os agentes policiais não respeitaram a privacidade das mulheres, não impediram a exposição indevida do conteúdo das fichas médicas e o seu manuseio por pessoal não qualificado, violando direitos humanos.
A legislação brasileira prevê procedimento específico para a investigação de prontuários médicos de pacientes, exigindo que as autoridades judiciais nomeiem um especialista para manuseio dos mesmos, com o objetivo de preservar o sigilo médico. Ignorando este procedimento, de forma ilegal, a polícia utilizou os registros médicos apreendidos de forma ilegal, para investigar criminalmente milhares de mulheres suspeitas de terem se submetido a abortamentos ilegais. As fichas não deveriam ser aceitas como provas válidas em nenhum processo. No entanto, estes arquivos médicos constituíram a base principal da investigação da polícia. As mulheres foram identificadas através de seus registros médicos e intimadas a comparecer à delegacia de polícia para interrogatório. As confissões foram obtidas em decorrência da apreensão ilegal das fichas médicas.
O juiz não nomeou um perito médico para o manuseio dessas fichas. Ao invés disso, os prontuários foram manipulados pela polícia, pelo promotor e por outras autoridades judiciais. As fichas foram, então, utilizadas como base para investigar e interrogar pacientes da clínica e foram anexadas ao relatório investigativo da polícia e ao processo judicial, e algumas expostas publicamente no website do Tribunal de Justiça daquele estado.
Estes acontecimentos afetaram as vidas de milhares de mulheres que, hoje, estão sob investigação. Como alternativa ao julgamento diante de um júri, a maioria das mulheres aceitou a suspensão do processo, sob determinadas condições. No entanto, além das condições previstas legalmente, outras condições foram impostas pela autoridade judicial como um “corretivo pedagógico” às mulheres. Algumas mulheres foram sentenciadas a trabalhos comunitários com crianças pequenas, em creches e escolas.
3. As violações aos direitos humanos neste caso incluem:
Direito à privacidade: o direito à privacidade diz respeito à decisão autônoma de se submeter a um abortamento e organizar a vida de sua própria família. O direito à privacidade se estende aos registros médicos pessoais. Em Mato Grosso do Sul, os registros médicos de quase 10.000 mulheres foram apreendidos sem autorização específica.
Direito ao devido processo legal/falta de proteção e garantias judiciais: o governo não seguiu os procedimentos legais apropriados para obter e proteger os registros médicos. As provas usadas para investigar as mulheres e obter confissões foram obtidas ilegalmente. Mulheres foram chamadas à delegacia de polícia e instruídas a fazer declarações incriminatórias sem serem informadas sobre seus direitos de serem representadas por advogados ou de permanecer em silêncio.
Direito à saúde/direito à vida: os altos índices de mortalidade materna e problemas de saúde em Mato Grosso do Sul estão associados a abortamentos ilegais, inseguros e clandestinos. O fechamento da clínica e os processos judiciais contra as mulheres que se submeteram a abortamentos no passado colocam em risco a saúde da população feminina de Mato Grosso do Sul.
Direito à igualdade/direito à não-discriminação: a legislação brasileira, criminalizando as mulheres que se submetem a abortamentos, as sobrecarrega injustamente, violando seu direito de ter igual tratamento perante a lei. As mulheres precisam ter pleno controle sobre suas decisões reprodutivas para poder participar igualmente da sociedade.
Direito a não ser submetida a tratamento desumano e degradante/direito à dignidade e à integridade física e psicológica: o Estado violou estes direitos ao forçar as mulheres a viver gestações não desejadas e ter filhos contra a sua vontade, ou procurar abortamentos clandestinos e correr o risco de sofrer processos judiciais [3]. O processo judicial contra as mulheres atendidas na clínica, a exposição de seus registros médicos particulares, o interrogatório sem a presença de advogado e o serviço obrigatório em creches violam profundamente a dignidade e os direitos e garantias constitucionais das mulheres em Mato Grosso do Sul.
Direito à liberdade: negar às mulheres o acesso a serviços de saúde restringe seu direito à liberdade.
4. Recomendações:
As entidades requerem às autoridades as seguintes medidas para proteção e a garantia dos direitos humanos das mulheres em Mato Grosso do Sul:
1) A paralisação das investigações e a extinção dos processos judiciais para a garantia dos direitos humanos das mulheres no estado de Mato Grosso do Sul;
2) A implementação, em um prazo razoável de serviços de saúde que garantam o acesso ao abortamento nos casos previstos em lei para a proteção dos direitos humanos das mulheres no estado de Mato Grosso do Sul;
3) A criação de campanha de informação à população do estado de Mato Grosso do Sul sobre direitos reprodutivos, com a devida informação sobre os métodos de planejamento familiar de forma a prevenir gravidez indesejada bem como informações sobre o direito ao aborto nos casos previstos em lei;
4) Medidas para garantir a privacidade das mulheres que buscam os serviços de saúde para tratamento das complicações derivadas do aborto inseguro e para prevenir a quebra do sigilo médico e uso indevido dos prontuários médicos para fins de investigação policial para futuro processamento das mulheres;
5) Medidas para garantir o Estado Laico Democrático de Direito pondo fim à criminalização em massa e de forma sistemática contra as mulheres no território nacional em cumprimento aos tratados internacionais de direitos humanos e à Constituição Federal, impedindo a instalação de Comissão Parlamentar de Inquérito sobre Aborto, que visa legitimar e promover a perseguição e a ocorrência de casos similares em outros estados do Brasil.
6) Tomar medidas para revisar a legislação penal atual que penaliza as mulheres que interrompem a gravidez deve ser revista, conforme compromissos internacionais assumidos pelo governo brasileiro nas Conferências Internacionais das Nações Unidas, do Cairo em 1995 e de Beijing de 1995.
Notas:
[1]O governo brasileiro ratificou, sem restrições, os principais tratados internacionais de direitos humanos que garantem o respeito aos direitos sexuais e reprodutivos, tais como a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra as Mulheres (CEDAW), a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra as Mulheres (Convenção de Belém do Pará), a Convenção dos direitos da Criança, o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional de direitos Econômicos, Sociais e Culturais.
[2] A informação reunida neste documento foi obtida em visitas de campo a Campo Grande, baseia-se em entrevistas com pessoas-chave envolvidas no caso, em documentos oficiais e na imprensa, pesquisados e sistematizados por um grupo de entidades e redes que atuam pela promoção e defesa dos direitos reprodutivos, a saber: Antígona/CLADEM – Comitê Latino Americano e do Caribe pela Defesa dos Direitos da Mulher, CCR - Comissão Cidadania e Reprodução, CFEMEA, Ipas Brasil, Themis, Rede Feminista de Saúde Direitos Sexuais e Reprodutivos e Jornadas pelo Direito ao Aborto Legal e Seguro.
[3]No caso KL v. Peru, o HRC deliberou que o sofrimento emocional e a depressão de KL eram resultados previstos da negação de seu direito de se submeter a um abortamento e da violação de seu direito de estar protegida contra tratamento desumano e degradante. Observe também que o HRC, Comentário Geral No. 28 sobre igualdade de direitos entre homens e mulheres, considera que negar às mulheres o acesso ao abortamento em casos de estupro ou incesto representa uma violação do direito de estar protegida contra tratamento desumano e degradante.
Versão completa do relatório para download [pdf, 253 KB].
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