No contexto do Fórum de Governança da Internet 2019, as entidades reunidas na Coalizão Direitos na Rede, vêm a público denunciar as ameaças colocadas à Internet democrática, livre e aberta no Brasil e aos direitos dos cidadãos e cidadãs brasileiras. A situação brasileira se soma às preocupações globais sobre os rumos de desenvolvimento da internet, baseado em um modelo de negócios de crescente exploração de dados pessoais e de formação de monopólios digitais, e sobre as crescentes tentativas de regulação da internet a partir de perspectivas criminalizantes e pouco democráticas.
É preocupante o crescimento de iniciativas legislativas e governamentais de vigilantismo no Brasil neste ano. Desde a posse do novo presidente da República e do novo Congresso Nacional foram apresentados diversos projetos de lei e propostas de políticas públicas que visam à ampliação da vigilância estatal sobre a população por meio de tecnologias sob a justificativa do combate ao terrorismo e a melhoria dos serviços de segurança pública. Muitas dessas iniciativas visam expandir os poderes policiais do Estado na rede, prevendo modificar o Marco Civil da Internet que exige autorização judicial prévia para a cessão dos registros de acesso dos usuários às autoridades. Em outros casos, os projetos e políticas anunciadas propõem que plataformas de serviço de mensagens armazenem cópias das chaves criptográficas privadas de seus usuários, a fim de viabilizar o acesso excepcional das autoridades ao conteúdo das comunicações. Na mesma linha, há propostas para obrigar provedores a monitorar extensivamente as atividades dos usuários a fim de pretensamente detectar condutas consideradas suspeitas e ilícitas, numa clara invasão de privacidade sobre os usuários. Ainda mais preocupante, o governo emitiu diversos decretos que preveem facilitar o compartilhamento e tratamento centralizado e maciço de dados sensíveis dos cidadãos pelo Estado sem as devidas salvaguardas, incluindo dados biométricos, medidas condenadas pelo Regulamento Europeu de Proteção de Dados Pessoais e que violam a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), aprovada em 2018.
Vale destacar que o atual ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, apresentou uma proposta chamada “Pacote Anticrime” que, entre outras medidas, determina a submissão de presos à identificação do perfil genético mediante coleta de DNA e, quando possível, de íris, face e voz, para subsidiar investigações criminais federais, estaduais ou distrital”.
Cresce no país também o uso de sistemas de reconhecimento facial automatizados por parte das polícias de diversos estados. Esses projetos de lei e políticas de vigilância colocam em xeque o Estado Democrático de Direito ao ameaçar direitos e liberdades fundamentais da cidadania, como privacidade, autodeterminação, liberdade de expressão, igualdade e liberdade de associação. Além disso, diversas pesquisas têm mostrado que os sistemas automatizados e o uso de algoritmos refletem e reforçam abordagens e preconceitos sobre gênero, raça/etnia e classe existentes na sociedade. No Brasil, segundo dados da Rede de Observatórios da Segurança, de março a outubro de 2019 foram presas 151 pessoas a partir do uso de tecnologias de reconhecimento facial em cinco estados,sendo que 90% delas são negras. É notório que essas tecnologias também são falhas e que não deveriam guiar as políticas de segurança pública. Pesquisa feita pela Universidade de Essex, no Reino Unido, analisou 42 casos de reconhecimento facial e concluiu que houve acerto em apenas 8 deles, menos de 20%.
A lógica vigilantista tem se espalhado pelo país já que o governo federal incentiva outros Estados da federação e municípios a implantar políticas similares pois aprovou o uso dos recursos do Fundo Nacional de Segurança Pública para a implantação de sistemas de reconhecimento facial, de reconhecimento óptico de caracteres, entre outros. O Brasil, assim, caminha na contramão de outras regiões. O reconhecimento de que essas tecnologias ameaçam as liberdades de todos, a começar pelo direito à privacidade, levou a cidade de São Francisco (EUA), por exemplo, a banir o uso de reconhecimento facial em locais públicos por agências governamentais.
A liberdade de expressão, direito fundamental e princípio de uma Internet livre e aberta, também corre riscos diante de uma série de projetos de lei sob a justificativa de frear o discurso de ódio e a desinformação. Alguns desses projetos visam modificar o Marco Civil da Internet no Brasil e considerado uma referência em todo o mundo. No seu Artigo 19, a lei determina que os provedores de hospedagem de sites, blogs e aplicações ou as plataformas digitais, só devem remover conteúdos publicados por terceiros depois de receber ordem judicial, com exceção de conteúdos que violem a intimidade. O objetivo deste artigo é proteger a liberdade de expressão dos usuários diante do crescimento dos casos de remoção de conteúdo por parte das plataformas privadas, que passaram a definir que conteúdo pode permanecer na rede. A sua alteração pode instituir as metodologias já existentes em outros países de retirada de conteúdo por notificação (notice and takedown), transferindo assim o poder de fiscalização para a esfera privada, entre provedores, plataformas e detentores de direitos autorais, ameaçando a liberdade de expressão.
Tramitam no Congresso Nacional diversos projetos de lei que pretendem responsabilizar as plataformas digitais pelo conteúdo gerado por terceiros. Percebe-se um aumento no último ano das remoções de conteúdo de maneira automatizada. Houve aumento dos casos em que veículos de mídia têm sido punidos com remoção de seus conteúdos e a suspensão de suas contas e páginas. O argumento utilizado pelos parlamentares para a mudança na legislação é o crescimento do discurso de ódio, do assédio e da desinformação na rede, além da proteção de direitos autorais. No entanto, a mudança da lei pode levar o Brasil a adotar procedimentos arbitrários de notificação e retirada de conteúdo.
A responsabilização dos intermediários é uma ameaça à liberdade de expressão e foi considerada pelos relatores de liberdade de expressão dos organismos multilaterais como forma de censura prévia. Essa visão está de acordo com um modelo de Internet descentralizada e livre como a forma mais eficiente de se proteger a liberdade de expressão e estimular a pluralidade e a diversidade. Nesta visão, a responsabilização por conteúdos ilegais cabe a quem publicou o conteúdo e as leis que determinam conteúdo ilegal devem ser aplicadas pela justiça e não por empresas privadas, sempre observando permitindo a ampla defesa dos acusados.
Nos preocupa também o anúncio de privatização de duas empresas estatais na área de TIC do governo, o SERPRO e a DATAPREV. São duas das maiores empresas brasileiras que controlam um imenso conjunto de dados pessoais dos cidadãos. A Dataprev armazena dados relacionados a 35 milhões de pessoas em relação à previdência. O SERPRO detém os dados sobre Imposto de Renda, sobre CPF, Carteira de Motorista, importação e exportação, controle portuário, passaportes, entre outros. O processo de privatização acelerado não passou por nenhuma discussão pública sobre como os dados sensíveis dos cidadãos serão tratados e nem sobre qualquer adequação sobre a nova legislação de dados (LGPD). A simples privatização e repasse dessas informações para uma empresa privada pode significar a terceirização dos maiores bancos de dados sobre os cidadãos brasileiros para terceiros, sem garantia e salvaguarda sobre como serão utilizados.
Por último, queremos destacar a ameaça à principal entidade multissetorial de governança da Internet no país: o Comitê Gestor da Internet (CGI.br). A entidade conta com participação do governo, do setor privado, da comunidade científica e tecnológica e do terceiro setor, e está sob sério risco de ingerência do novo governo. As eleições para os membros não-governamentais, escolhidos através de colégios eleitorais, está sendo protelada desde o primeiro semestre deste ano, sem previsão para o início do cronograma eleitoral. Ao mesmo tempo, a comissão eleitoral foi formada com maioria governamental para acompanhar a eleição dos membros não governamentais. As próximas eleições correm o risco de serem tuteladas pelo governo.
Nesse sentido, nós, uma rede de mais de 37 entidades da sociedade civil, gostaríamos de defender:
Tendo isso posto, as entidades membro da Coalizão Direitos na Rede vem a público reforçar a defesa dos pilares democráticos e a liberdade de expressão e manifestar uma grande preocupação com a atual situação brasileira.
Berlim, 27 de novembro de 2019
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