Izabel Santos e Elaíze Farias, da Amazônia Real
Manaus (AM) – Em meio à restrição do confinamento nos territórios indígenas por causa da pandemia do novo coronavírus, a violência contra as lideranças não cessa e faz sua segunda vítima na véspera de uma data de tanta resistência, como é o 19 de abril. Em Rondônia, na manhã de sábado (18) foi encontrado morto com marcas de pancadas o professor e agente ambiental Ari Uru-Eu-Wau-Wau, de 33 anos, na estrada do distrito de Tarilândia, no município de Jaru, a 292 quilômetros de distância de Porto Velho. O corpo estava ao lado da motoneta da liderança; daí surgirem dúvidas sobre o crime por parte da investigação. A família diz que há marcas de pancadas em Ari. O Boletim de Ocorrência (BO) da Polícia Civil trata a morte como homicídio. O laudo do Instituto Médico Legal (IML), ao qual a agência Amazônia Real teve acesso, consta como “indefinido” [sic] a consequência do óbito do indígena.
No dia 31 de março, o líder Zezico Rodrigues Guajarara, da aldeia Zutiwa, da Terra Indígena Arariboia, foi assassinado em um trecho da estrada Matinha, município maranhense de Arame, a 477 quilômetros da capital São Luís. Até o momento, a Polícia Federal não esclareceu o crime.
Ari Uru-Wau-Wau morava na Aldeia 621 Jaikara da Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau. Por telefone, enquanto estava no município de Jaru, onde foi buscar o corpo no IML, um dos irmãos dele, Tangãe Uru-Eu-Wau-Wau, disse à reportagem que a notícia da morte da liderança chegou por volta das 8h e ele correu rumo à estrada Linha 625. “Quando cheguei lá [perto do corpo], ainda consegui vê-lo ao lado da motoneta, mas os policiais tinham chegado antes e não deixaram a gente ficar por perto muito tempo. Ele [Ari] estava na margem esquerda da estrada e consegui visualizar marcas de pancada no pescoço, de sangue no chão de terra e de um outro veículo nas proximidades. Os policiais ficaram falando que era acidente”, afirmou.
Tangãe disse que também ficou intrigado com a falta de informação por parte da perícia e com o fato do delegado que registrou o ocorrido, identificado com o nome de Salomão de Matos Chaves, ter recolhido o celular e o canivete de Ari. “Espero que ele [nos] entregue”, disse. “Queremos que haja uma investigação bem profunda e peguem o responsável pela morte. Há cinco anos morreu outro Uru-Eu-Wau-Wau. O corpo foi encontrado no rio e nunca tivemos respostas sobre o que aconteceu”.
Ivaneide Bandeira, coordenadora da Associação de Defesa Etnoambiental Kanindé, organização que atua junto aos Uru-Eu-Wau-Wau, disse à reportagem que a Polícia Federal precisa investigar a causa da morte para não se ter dúvida e que os autores sejam punidos. “Se foi acidente, quem provocou? Estou cansada de ver indígena morrer e ouvir que foi acidente”, afirmou.
Ivaneide foi responsável, junto com Tangãe Uru-Eu-Wau-Wau, de buscar o corpo de Ari no IML e levá-lo para a aldeia. A Amazônia Real não conseguiu falar com a Coordenação da Fundação Nacional do Índio (Funai), em Rondônia.
Segundo Ivaneide, o coordenador do órgão indigenista, Reginilson Jacob Oliveira, havia dito que já teria comunicado à Polícia Federal e solicitado investigação.
Ainda no sábado (8), a Anistia Internacional emitiu nota exigindo esclarecimentos e que as investigações sobre morte de Ari Uru-Eu-Wau-Wau sejam conduzidas pelo Polícia Federal. “Exigimos que as autoridades brasileiras tomem todas as medidas necessárias para investigar a morte de Ari Uru-Eu-Wau-Wau e para garantir o direito de sua família e de seu povo à verdade e à justiça. É preciso que se esclareça urgentemente se sua morte está relacionada à série de invasões que sua terra vem sofrendo”, afirma Jurema Werneck, diretora executiva da Anistia Internacional.
Segundo Tangãe Uru-Eu-Wau-Wau, o professor e agente ambiental Ari saiu da aldeia 621 Jaikara na sexta-feira (17) por volta de 18h, mas não comunicou para onde iria. “Ele costumava sair e voltar logo. Hoje (18) de manhã, meu sobrinho viu o corpo no canto da estrada e foi nos avisar. Fiquei sem acreditar, muito abalado”, disse.
Ari Uru-Eu-Wau-Wau era casado e tinha dois filhos – de 10 e de 14 anos de idade. Na noite deste sábado o corpo foi transportado para aldeia, onde passará pelos rituais funerários da etnia e será enterrado conforme a tradição dos Uru-Eu-Wau-Wau: debaixo da rede onde ele dormia em sua moradia.
Sob constante pressão
A Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau foi demarcada em 1991 com 1.857 mil hectares de área, mas tem um longo histórico de invasão e grilagem que remonta a década de 70, resultando em uma vasta perda florestal, impacto ambiental e ameaças à sobrevivência das etnias que vivem no território. A área também já foi alvo de títulos expedidos irregularmente pelo Incra para trabalhadores rurais, cujas consequências se arrastam até hoje.
A terra é sobreposta ao Parque Nacional de Pacaás Novos, a maior unidade de conversação do estado. Esta região é uma das mais impactadas pelo agronegócio e a exploração ilegal de madeira.
O território tradicional abriga também os povos Amondawa e os Oro Win. Ainda há referências sobre a presença de índios não-contactados. Os Japaú, como os Uru-Eu-Wau-Wau se autodenominam, falam a língua Tupi-Kawahiva. Segundo o Instituto Socioambiental (ISA), três grupos isolados já foram identificados no território Uru-Eu, entre eles os Yvyraparakwara e os Jururcy.
No final de 2016, a invasão à Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau se intensificou, período em que aumentaram os desmatamentos. Uma nova onda de invasões e grilagem evoluiu, com a participação declarada de autoridades governamentais e de políticos.
Desde então, a Amazônia Real produziu uma série de reportagens sobre a situação do território. Em março de 2017, a reportagem mostrou que grileiros e autoridades chegaram a fazer reuniões dentro de um posto da Funai localizado na terra indígena. A partir daquele mesmo ano, a Polícia Federal vem realizando operações de combate a crimes ambientais e de invasores e grileiros. As invasões, contudo, nunca cessaram.
Em outubro de 2019, a PF, em conjunto com o Instituto Chico Mendes de Biodiversidade (ICMBio) e Exército Brasileiro, deflagrou a Operação Terra Protegida, para combater o desmatamento, queimadas, ameaças aos servidores públicos e invasão de áreas da União no Parque Nacional do Pacaás Novos e Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau, região de Nova Mamoré e Campo Novo de Rondônia.
Em nota divulgada na ocasião, a PF diz que “cumpre a 20 mandados judiciais, sendo quatro de prisão preventiva, oito de busca e apreensão e oito de sequestro e indisponibilidade de bens, expedidos pela Justiça Federal em Guajará-Mirim, e cumpridos em Porto Velho, Buritis, Campo Novo de Rondônia e Nova Mamoré”.
“Em Rondônia, a Polícia Federal também cumpre mandado de busca no interior da Terra Indígena e Parque Nacional, especificamente com o objetivo de verificar a existência de edificações e loteamentos no interior das áreas protegidas, além de efetuar as prisões dos principais investigados nos municípios citados acima”, diz a PF (Leia aqui).
Insegurança e omissão das autoridades
Incêndios na Amazônia em 2011 (Foto: Ronaldo Nina -Amigos da Terra)
A morte do professor e agente ambiental Ari Uru-Eu-Wau-Wau aumenta a insegurança no território. Esse povo é constantemente ameaçado e não têm apoio efetivo dos órgãos ambientais. O coordenador na Associação Indígena Jupaú, Bitate Uru-Eu-Wau-Wau, sobrinho de Ari, destaca que o assassinato traz ainda mais tensão ao território. “Estamos totalmente abalados com o que aconteceu! E quando recebemos essa notícia junto com a minha comunidade ficamos muito tristes”, diz a liderança destacando que o clima nas aldeias está bastante tenso.
“O Ari fazia parte da minha equipe de vigilância da terra indígena, era professor na comunidade dele e sempre esteve à frente das ações de vigilância. Não estamos seguros, e mesmo protegendo o território vamos viver nesse medo”, disse Bitate.
Um levantamento realizado em 2019 pela entidade reuniu relatos de lideranças indígenas que afirmaram estar sofrendo ameaças por esses invasores e também apontaram a ausência dos órgãos responsáveis pelo monitoramento ambiental e da situação dos povos indígenas, especialmente o Ibama e a Funai.
“É obrigação do Estado Brasileiro e de seus representantes proteger os povos indígenas do Brasil. Mas o que temos visto é uma série de desmontes e violências. Entre os direitos intensamente violados desde 2019 estão o direito à vida, à segurança, à terra e ao território. Cobramos imediatamente das autoridades que medidas concretas sejam adotadas. Além disso, em tempos de pandemia, é preciso fortalecer os órgãos federais responsáveis pela proteção e a saúde dos povos indígenas, assim como proteger suas terras, evitando que invasores levem o vírus para essas populações. Bolsonaro e Sergio Moro devem garantir todas as condições necessárias para que a Funai e a Polícia Federal atuem pela proteção desses brasileiros e brasileiras”, conclui a nota da Anistia Internacional.
A Associação das Guerreiras Indígenas de Rondônia (Agir) também pediu que as investigações sobre a morte de Ari sejam conduzidas pela Polícia Federal, e não pela Polícia Civil de Rondônia. “Devido à forte possibilidade deste assassinato estar ligado às invasões e loteamentos de não indígenas dentro da Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau, requer-se que a Polícia Federal assuma a investigação e que o Ministério Público Federal acompanhe as investigações sobre a morte do professor Ari Uru-Eu-Wau-Wau desde o seu início”, diz parte da nota.
A Agir contesta a hipótese de acidente e destaca que o contexto de invasões e de ameaças que o povo sofre. “Há tempos que os Uru-Eu-Wau-Wau e seus apoiadores vêm denunciando a invasão e os loteamentos de não indígenas dentro desta área e, ao mesmo tempo, vêm também denunciando as ameaças de morte que membros do Povo Uru-Eu-Wau-Wau vem sofrendo. Exigimos que, uma vez identificados o/os assassino/s, que estes sejam imediatamente presos. Assim como exigimos que a Funai e todos os demais órgãos responsáveis pela fiscalização desta área indígena façam uma fiscalização contínua e não apenas pontual nesta área a fim de evitar novas mortes de indígenas Uru Eu-Wau-Wau e de outros povos indígenas”.
A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) também pediu providências. “Este é o segundo assassinato de lideranças indígenas em menos de 20 dias. Zezico Guajajara, professor e liderança que lutava pela proteção do território do seu povo foi brutalmente assassinado, no Maranhão, no dia 31 de março. A violência contra os povos indígenas só aumenta e este crescimento tem relação direta com a política genocida do Governo Bolsonaro”, diz a nota que também acrescenta que os indígenas não estão expostos apenas ao coronavírus, mas a crimes cometidos por madeireiros, garimpeiros e grileiros devido a fiscalização ambiental precária.
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