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O acordo comercial UE-Mercosul é à prova de desmatamento?

Fonte: Imazon

Em junho de 2019, a Comissão Europeia e os países do Mercosul concordaram com um acordo comercial (ACMUE) que, uma vez ratificado pelos países participantes, deverá aumentar o comércio de produtos agrícolas entre as duas regiões. O acordo comercial eliminará 93% das tarifas dos produtos do Mercosul para a União Europeia (UE), beneficiando notadamente produtos agrícolas, incluindo carne bovina e soja.
Preocupações têm sido levantadas com frequência sobre o risco de aumento do desmatamento na região do Mercosul – especialmente na Amazônia brasileira. Tais preocupações são pertinentes, uma vez que uma análise em 189 países, de 2001 a 2012, mostra que o desmatamento aumentou significativamente ao longo dos três anos após a promulgação de acordos de livre comércio (Abman & Lundberg 2020). No entanto, os proponentes do ACMUE têm argumentado que o risco de desmatamento poderia ser mitigado devido às disposições de seu Capítulo de Comércio e Desenvolvimento Sustentável e às recomendações fornecidas pela Avaliação de Impacto da Sustentabilidade.
No entanto, este relatório mostra que o desmatamento pode aumentar nos países do Mercosul em virtude do aumento da demanda por produtos agrícolas (Capítulo 1) e pode afetar regiões sensíveis no Brasil, incluindo áreas vizinhas de Terras Indígenas e Unidades de Conservação (Capítulo 2). Além disso, o Capítulo 3 evidencia que as disposições de Comércio e Desenvolvimento Sustentável do ACMUE são insuficientes para mitigar o aumento do risco de desmatamento com foco no caso brasileiro. Portanto, o acordo atual pode não promover o desenvolvimento sustentável conforme exigido pelo regulamento comercial da UE. No capítulo 3 apresentam-se sete recomendações para reduzir o risco de que a ratificação do atual ACMUE resulte em desmatamento suplementar e conflitos com populações indígenas. A seguir estão os principais resultados.
 
CAPÍTULO 1.
O ACMUE AUMENTARÁ O RISCO DE DESMATAMENTO ADICIONAL NOS PAÍSES DO MERCOSUL
Este capítulo mostra que o desmatamento pode aumentar entre 122 mil e 260 mil hectares nos países do Mercosul, de acordo com os seis cenários alternativos examinados. Cinquenta e cinco por cento do desmatamento seriam no Brasil, considerando-se a média dos seis cenários avaliados (variando de 45% a 66%).
Os cenários combinaram premissas relativas às elasticidades comerciais, ao nível de governança da terra e à adoção ou não do duplo cultivo. O desmatamento seria maior em um cenário de maior elasticidade comercial, menor governança da terra e não uso de duplo cultivo. Em resposta à liberalização comercial, os setores de pecuária processada, bebidas e açúcar do Mercosul aumentam a produção que é então exportada para a UE. Por outro lado, a UE diminuiria a produção desses produtos devido ao aumento da concorrência. As emissões terrestres variam de 75 milhões de toneladas de CO2e do primeiro cenário (S11) a 173 milhões de toneladas no último cenário (S23).
O ACMUE geraria ganhos de bem-estar (em termos de ganhos monetários dos produtores e consumidores) de quase 2,2 bilhões de euros para ambas as regiões da UE-Mercosul. A UE capturaria 68% dos ganhos, o Brasil 23% e os 9% restantes iriam para outros países do Mercosul.
Os impactos comerciais, as mudanças no uso da terra e as implicações do bem-estar foram estimados usando-se uma versão avançada de um modelo de Equilíbrio Geral Computável (CGE) (GTAP-BIO). Esse modelo representa a estrutura da economia global e traça a produção, o consumo e o comércio de todos os tipos de bens e serviços (incluindo, mas não se limitando a culturas, produtos pecuários, óleos vegetais e farelos, açúcar, arroz processado e alimentos processados) em escala global. Para implementar o ACMUE, as mudanças tarifárias propostas foram exogenamente introduzidas neste modelo.
 
CAPÍTULO 2.
O ACMUE ARRISCARIA O DESMATAMENTO EM ÁREAS SENSÍVEIS NA AMAZÔNIA E NO CERRADO BRASILEIRO
Este capítulo projeta onde o desmatamento adicional provavelmente ocorreria nos biomas Cerrado e Amazônia no Brasil. Esses biomas representaram 96,7% do desmatamento total no Brasil em 2019. Embora nem todo o desmatamento projetado seja no Brasil e/ou dentro de um único bioma, a análise é útil para destacar as áreas prioritárias para mitigação.
Na Amazônia brasileira, o desmatamento é mais provável em três estados: Pará (39,9%), Rondônia (32,6%) e Mato Grosso (25,2%). O ACMUE aumentaria o risco de desmatamento nas proximidades de Terras Indígenas e Unidades de Conservação. O desmatamento vem aumentando rapidamente nessas áreas, uma consequência provável da redução das operações policiais e das perspectivas de exploração dessas áreas para fins comerciais.
No Cerrado, o desmatamento estaria concentrado em sua região nordeste ou MATOPIBA. A previsão é que o Maranhão abrigue 31,6% do desmatamento total, seguido pelo Piauí (21,3%) e Bahia (20,4%). O ACMUE aumentaria o risco de desmatamento próximo a áreas protegidas no Cerrado. Identificamos duas regiões críticas: i) Maranhão, onde várias Terras Indígenas e um parque nacional ficam ao lado de focos de desmatamento; e ii) Mato Grosso, na ecótono entre o Cerrado e a Amazônia, onde três Terras Indígenas estão próximas da fronteira do desmatamento.
Duas etapas foram usadas para projetar a localização do desmatamento futuro. Primeiro, os autores estimaram a probabilidade de uma determinada área ser desmatada com base em fatores associados ao desmatamento de 2001 a 2018. O segundo passo foi alocar o desmatamento projetado do Capítulo 1 ao longo da paisagem florestal existente (pós-2018). Esta fase consistiu em: i) ordenar os pixels florestais restantes (pós-2018) da maior à menor probabilidade de desmatamento, e ii) selecionar os pixels superiores até que a soma da área desses pixels atingisse a área potencial desmatada total prevista pelo modelo GTAP-BIO.
 
CAPÍTULO 3.
AS DISPOSIÇÕES AMBIENTAIS ATUAIS DO ACMUE SÃO INSUFICIENTES PARA MITIGAR O RISCO DE DESMATAMENTO
Esses capítulos mostram que as disposições ambientais atuais do ACMUE são insuficientes para mitigar o risco de desmatamento.
O capítulo sobre Comércio e Desenvolvimento Sustentável (CDS) pede a efetiva implementação do Acordo de Paris. No entanto, as metas de mitigação climática da UE e do Mercosul estão abaixo do necessário para manter o aumento da temperatura bem abaixo de 2°C, de acordo com os cientistas. No caso do Brasil, a promessa de zerar o desmatamento ilegal foi colocada em um futuro distante: 2030.
Além disso, o capítulo sobre CDS carece de sanções, e o espaço para a participação da sociedade civil é limitado. O processo de resolução de controvérsias é demorado (mais de 460 dias), que favorecem atores não conformes.
Para defender os princípios de sustentabilidade, desenvolvimento e direitos humanos, o ACMUE deve condicionar sua ratificação à melhoria do desempenho das políticas e à criação de novas disposições. O foco da prevenção é essencial dada a natureza irreversível e de longo prazo dos impactos do uso da terra associados ao ACMUE (desmatamento e conflitos violentos).
As seguintes recomendações são consistentes com a resolução do Parlamento Europeu de 16 de setembro de 2020 sobre o papel da UE na proteção e restauração das florestas mundiais (Parlamento Europeu, 2020). A resolução i) reitera que a política de comércio e investimento da UE deve incluir capítulos de desenvolvimento sustentável vinculativos e exequíveis; e ii) salienta que devem ser incluídos compromissos claros com o combate ao desmatamento em todos os novos acordos comerciais, incluindo o Mercosul.

  1. Condicionar a ratificação do acordo à redução real do desmatamento. A ratificação ou o início das reduções tarifárias do ACMUE devem ser contingenciados no Brasil para reduzir seu desmatamento de acordo com a meta da Política Nacional de Mudanças Climáticas do país: 3.900 km2 (390.000 hectares). Como o Brasil não cumprirá sua meta para 2020, o ACMUE deve esperar até que essa linha de base seja finalmente alcançada no futuro. Para atingir esse objetivo, o Brasil precisaria retomar o exitoso Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na. Amazônia Legal (PPCDAM) e implantar outras abordagens de mercado e regulamentação, como a rastreabilidade de commodities de alto risco.
  2. Criar um fundo para apoiar a redução das políticas de desmatamento e degradação florestal. A ratificação ou o início das reduções tarifárias devem ser condicionados à implantação de assistência técnica e financeira, como a criação de um fundo de apoio sustentável. Esses fundos devem se concentrar em regiões com maiores riscos de desmatamento direto e indireto levando em conta o provável deslocamento da mudança de uso da terra – por exemplo, o aumento da intensificação do uso da terra em uma região que leva à expansão do desmatamento em outras áreas.
  3. Consultar e garantir os direitos dos povos indígenas. A UE deve condicionar a ratificação do acordo à consulta adequada aos povos indígenas e ao estabelecimento de direitos de terra seguros e proteção adequada dos territórios das Terras Indígenas, de acordo com a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas. Na prática, isso implicaria que os territórios indígenas deveriam ser demarcados, e os invasores deveriam ser realocados antes da redução tarifária.
  4. Estabelecer sanções legalmente vinculativas para resolver a não conformidade. O capítulo sobre CDS deve estabelecer sanções vinculantes legais semelhantes às previstas para outras questões no ACMUE. Vale ressaltar que acordos comerciais que usam sanções para resolver disputas, como acordos dos EUA, estimularam a adoção de melhores práticas antes que os acordos comerciais fossem ratificados. No entanto, mesmo que as disposições do capítulo sobre CDS fossem vinculantes, o longo processo para enfrentar as violações seria insuficiente para conter a onda de desmatamento.
  5. Estabelecer limite de tempo para julgamento de violações do ACMUE. As partes devem reduzir a duração da resolução de disputas ambientais. O ACMUE poderia considerar o modelo do Acordo Estados Unidos – México – Canadá (USMCA) que criou um Mecanismo de Trabalho de Resposta Rápida encarregado do monitoramento rápido e aplicação das disposições.
  6. Estabelecer práticas recomendadas obrigatórias. Dadas as atuais falhas sistêmicas da política ambiental no Brasil, o ACMUE deve exigir a adoção das melhores práticas, como certificação independente, rastreabilidade de produtos, devida diligência e consulta às comunidades indígenas antes de investir.
  7. Ampliar e melhorar o escopo de participação da sociedade civil. Echavarría et al. (2020) recomendam ao ACMUE expandir e melhorar o escopo de participação da sociedade civil, incluindo envolvimento em subcomitês de CDS, criação de mecanismos de diálogo com governos, provisão de financiamento para que a sociedade civil possa acompanhar a implementação e participar de reuniões.
     

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