[atualizada em 27-02-2022]
22-12-2021
Comitê Ad Hoc para Elaboração de Convenção Internacional sobre o Uso de Tecnologias de Informação e Comunicação para Fins Criminais
United Nations Office on Drugs and Crime (UNODC)
UNODC New York Office - United Nations Headquarters - DC1 Building - Room 613
One United Nations Plaza - New York, NY 10017
Excelência,
Nós, organizações subscritas abaixo, trabalhamos para proteger e ampliar direitos humanos, online e offline. Esforços para tratar de crimes cibernéticos são uma preocupação nossa, tanto por crimes cibernéticos representarem uma ameaça a direitos e à dignidade humana, quanto por leis, políticas e iniciativas sobre tais crimes serem constantemente utilizadas para enfraquecer direitos fundamentais. Portanto, pedimos que o Comitê Ad Hoc inclua, de forma robusta, a participação da sociedade civil em todo o processo de seus trabalhos para o desenvolvimento e elaboração da convenção e que qualquer proposta de texto inclua salvaguardas aos direitos humanos aplicáveis a disposições materiais e procedimentais.
A proposta de elaboração de uma “Convenção Internacional sobre o Uso de Tecnologias de Informação e Comunicação para Fins Criminais” está sendo apresentada ao mesmo tempo em que mecanismos de direitos humanos da ONU chamam a atenção para o abuso presente em leis de crimes cibernéticos ao redor do mundo.
Em seu relatório de 2019, o relator especial dos direitos de liberdade de reunião e associação das Nações Unidas, Clément Nyaletsossi Voule, observou que “um aumento de legislações e políticas de combate a crimes cibernéticos também abriu portas para a punição e vigilância de ativistas e manifestantes em vários países ao redor do mundo”. Em 2019 e novamente neste ano, a Assembleia Geral da ONU expressou grande preocupação em relação às legislações sobre crimes cibernéticos estarem sendo utilizadas de forma inadequada para atingir defensores de direitos humanos ou impedir seu trabalho e colocar em risco a segurança contrariando as normas internacionais. Isso é resultado de anos de denúncias feitas por organizações não governamentais sobre os abusos contra direitos fundamentais decorrentes de leis sobre crimes cibernéticos.
Quando a convenção foi proposta pela primeira vez, mais de 40 das principais organizações e especialistas de direitos digitais e direitos humanos, incluindo vários dos signatários desta carta, instaram as delegações a votar contra a resolução, alertando que a convenção proposta é uma ameaça aos direitos humanos.
Antes da primeira sessão do Comitê Ad Hoc, nós reiteramos estas preocupações. Se a convenção da ONU sobre crimes cibernéticos proceder, o objetivo deve ser o combate ao uso de tecnologias de informação e comunicação para fins criminais sem prejudicar os direitos fundamentais daqueles que se pretende proteger, para que as pessoas possam livremente gozar e exercer seus direitos, online e offline. Qualquer proposta de convenção deve incorporar salvaguardas de direitos humanos claras e robustas. Uma convenção sem tais salvaguardas, ou que dilua as obrigações estatais em relação aos direitos humanos, colocaria os indivíduos em risco e tornaria nossa presença digital ainda mais insegura, ameaçando direitos fundamentais em ambos os casos.
À medida que o Comitê Ad Hoc inicia o seu trabalho para a elaboração da convenção nos próximos meses, é vital que seja seguida uma abordagem baseada em direitos humanos para garantir que a proposta de texto não seja utilizada como ferramenta para reprimir a liberdade de expressão, violar a privacidade e a proteção de dados ou ameaçar indivíduos e comunidades em risco.
O importante trabalho de combater os crimes cibernéticos deve ser consistente com as obrigações estatais em matéria de direitos humanos definidas na Declaração Universal de Direitos Humanos, no Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e outros instrumentos e normas internacionais de direitos humanos. Em outras palavras, esforços para combater crimes cibernéticos devem também proteger, e não debilitar, os direitos humanos. Reforça-se aos Estados que os mesmos direitos que um indivíduo tem offline devem ser protegidos online.
Não há consenso quanto a como enfrentar os crimes cibernéticos a nível global, nem há um entendimento comum ou definição sobre o que se constitui como crime cibernético. Da perspectiva dos direitos humanos, é essencial manter restrito o escopo de qualquer convenção sobre crimes cibernéticos. Isto é, não é porque um crime envolve tecnologia que ele necessariamente deve ser incluído na convenção. Por exemplo, normas mais amplas sobre crimes cibernéticos muitas vezes estabelecem novas penalidades simplesmente em razão da utilização de um computador ou dispositivo na prática de um delito já existente. As normas são especialmente problemáticas quando incluem conteúdo relacionado a crimes. Leis sobre crimes cibernéticos com texto vago, que pretendem combater a desinformação e o apoio ou apologia online ao terrorismo e extremismo, podem ser usadas para prender blogueiros ou bloquear plataformas inteiras em certos países. Deste modo, elas falham em atender aos padrões internacionais de liberdade de expressão. Tais leis colocam jornalistas, ativistas, pesquisadores, membros da comunidade LGBTQIA+ e dissidentes em risco e podem ter um efeito assustador na sociedade como um todo.
Mesmo leis que focam de maneira mais estreita no núcleo tradicional de crimes cibernéticos são utilizadas para reduzir direitos. Leis que criminalizam o acesso não autorizado a computadores e sistemas têm sido usadas para atacar pesquisadores de segurança, denunciantes, ativistas e jornalistas. Frequentemente, pesquisadores de segurança, que ajudam a manter todos seguros, são enquadrados por leis de crimes cibernéticos vagas e enfrentam acusações criminais por terem identificado falhas na segurança de sistemas. Alguns Estados também interpretam leis sobre o acesso não autorizado de forma tão ampla que, na prática, criminalizam todo e qualquer denunciante; sob esta interpretação, qualquer divulgação de informações que violem políticas corporativas ou estatais pode ser tratada como “crime cibernético”. Uma futura convenção deve explicitamente incluir um requisito de intenção maliciosa, não deve transformar políticas de uso de computadores corporativos e estatais em responsabilidade criminal, deve ser articulada de forma clara e promover a ampla defesa do interesse público, assim como incluir disposições claras que permitam que pesquisadores de segurança executem seu trabalho sem medo de serem processados.
Nossas informações pessoais e privadas, antes trancadas em uma gaveta, agora encontram-se em dispositivos digitais e na nuvem. A polícia ao redor do mundo utiliza um conjunto de ferramentas investigativas cada vez mais intrusivas para acessar provas digitais. Frequentemente, suas investigações atravessam fronteiras sem salvaguardas adequadas e não observam proteções de tratados de assistência jurídica mútua. Em muitos contextos, não há nenhum controle judicial e o papel de reguladores independentes de proteção de dados é enfraquecido. Normas nacionais, incluindo as de crimes cibernéticos, são frequentemente inadequadas para proteger contra vigilância desnecessária e desproporcional.
Uma futura convenção deve detalhar robustas salvaguardas processuais e de direitos humanos que orientem investigações criminais conduzidas sob o escopo da convenção. Ela deve assegurar que qualquer interferência ao direito à privacidade atenda aos princípios da legalidade, necessidade e proporcionalidade, inclusive por meio da exigência de autorização judicial independente para medidas de vigilância. Ela também não deve impedir os Estados de adotarem salvaguardas adicionais que limitem o uso de dados pessoais pelas autoridades policiais, uma vez que esta proibição comprometeria a privacidade e a proteção de dados. Uma futura convenção deve reafirmar a necessidade de Estados adotarem e imporem “legislações de privacidade fortes, robustas e abrangentes, inclusive sobre proteção de dados, que atendam às normas internacionais de direitos humanos quanto a salvaguardas, fiscalização e remédios para proteger o direito à privacidade de forma eficaz”.
Existe um risco real de que, ao tentar convencer todos os Estados a assinarem a proposta de convenção sobre crimes cibernéticos da ONU, práticas ruins quanto aos direitos humanos sejam normalizadas, nivelando por baixo as garantias exigidas e deteriorando a proteção do indivíduo. Portanto, é essencial que uma futura convenção reforce explicitamente as salvaguardas processuais voltadas à proteção dos direitos humanos e resista a tentativas de contornar acordos de assistência mútua.
Ante o exposto, pedimos ao Comitê Ad Hoc que inclua ativamente as organizações da sociedade civil em processos de consulta – incluindo aquelas que tratam de segurança digital e grupos de assistência a comunidades e indivíduos vulnerabilizados –, o que não ocorreu quando o processo começou em 2019 ou em qualquer outro momento desde então.
Assim, requeremos que o Comitê:
O combate aos crimes cibernéticos não deveria prejudicar os direitos fundamentais e a dignidade das pessoas que serão impactadas pela convenção. Os Estados devem garantir que uma futura convenção sobre crimes cibernéticos esteja alinhada com suas obrigações de direitos humanos e devem se opor a qualquer proposta que seja inconsistente com tais obrigações.
Apreciamos fortemente se puder circular a presente carta aos membros do Comitê Ad Hoc e publicá-la no site do Comitê.
*List of signatories as of March 10, 2022
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