Por Cristiana Gonzalez, José Vitor Pereira Neto, Oona Castro, Polinho Mota*
Publicado originalmente na TeleSíntese. Reprodução autorizada pelas/os autoras/es.
11-03-2024
No dia 23 de Janeiro de 2024, Carlos Baigorri, o atual presidente da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), declarou em uma entrevista que “o conceito de neutralidade (da rede) é ambíguo, ora técnico, ora político, concebido na era romântica da Internet (…) e o Brasil possui um mercado de telecomunicações diversificado”. Para a maioria da população essa foi uma declaração que passou despercebida, afinal estávamos envoltos nas investigações e consequências da tentativa do golpe de Estado, realizado no 08 de Janeiro.
Talvez, justamente por termos visto o quão complexa foi toda a operação para montar um dos maiores atentados a nossa democracia é que precisamos problematizar a fala de Baigorri e dizer abertamente que a neutralidade da rede NÃO É fruto de uma era romântica, mas sim um dos principais pilares para termos uma Internet livre e democrática.
Para quem não sabe direito o que é neutralidade da rede, ela é a garantia de que o tráfego de todos os pacotes de dados recebam o mesmo tratamento na rede. Falamos em pacotes porque os conteúdos online trafegam dessa forma, e atualmente, nenhum pacote pode merecer mais ou menos atenção, ou ser bloqueado em último nível. Imagine que você contratou um pacote de Internet de uma empresa que tem participação econômica com um canal de vídeos online, e essa empresa decide facilitar o envio e navegação apenas desse canal e todos os outros demorem muito pra carregar, ou até mesmo fiquem bloqueados pra você. Isso no Brasil é ilegal, pois de acordo com o nosso Marco Civil da Internet (Art.9) o “responsável pela transmissão, comutação ou roteamento tem o dever de tratar de forma isonômica quaisquer pacotes de dados, sem distinção por conteúdo, origem e destino, serviço, terminal ou aplicação”.
Por isso que a neutralidade da rede é mais que um conceito e princípio que orienta o Marco Civil da Internet, ele também é base para a regulação da governança da Internet em diversos países. Além disso, é o resultado de uma luta histórica da sociedade civil pela construção da Internet como um espaço livre, diverso e aberto, resguardando os direitos de liberdade de expressão, acesso ao conhecimento e inovação. Não é possível, portanto, separar o funcionamento técnico da rede de Internet da política de todos os agentes envolvidos no seu desenvolvimento e uso.
A construção da neutralidade da rede como um elemento central para a governança da Internet mobilizou não só os movimentos diretamente ligados à pauta da tecnologia, mas também o movimento negro e movimento de mulheres que ao compreenderem a Internet como espaço disseminador de discursos, demonstraram preocupação com a promoção de uma internet livre como garantia do exercício pleno de direitos e combate a discriminação. Foi o que estabeleceu a Declaração e Plano de Ação de Durban, elaborada no bojo da Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata (2001).
Outro fato importante nesse debate também aconteceu em janeiro, quando a Anatel abriu uma segunda tomada de subsídios para a elaboração do Regulamento de Deveres dos Usuários, que tem por objetivo corrigir um pretenso desequilíbrio entre prestadores de serviços de telecomunicações e os provedores de serviço de valor adicionado. O tema central do debate é o chamado “fair share”, taxa de uso da rede, ou, como algumas organizações de direitos digitais denominam, pedágio na Internet. Trata-se de uma proposta de compartilhamento de custos que possibilitará que as grandes operadoras de telecomunicações lucrem não só por meio da cobrança dos usuários, mas também de todos os agentes que estão na origem, que oferecem serviços na rede, como plataformas e aplicativos, e distribuem conteúdos, cobrando deles um valor a mais pelo uso da infraestrutura. O que parece ser uma simples medida de regulação de mercado é, no fundo, uma profunda alteração no ecossistema digital que até hoje tem funcionado com base no princípio da neutralidade, da isonomia de tratamento independentemente de quem envia ou recebe os dados.
Toda essa disputa e o próprio posicionamento da Anatel, que é contrário ao que organizações da sociedade civil defendem, não são um mero esforço histórico. No contexto atual de uma sociedade hiperconectada, onde parece ter se tornado comum a relativização de pactos mínimos civilizatórios e a naturalização de alguns absurdos, torna-se fundamental defender a necessidade e atualidade da neutralidade da rede para todos os usuários. Ora, se uma casa apresenta rachaduras, não é implodindo a coluna de sustentação que se soluciona o problema estrutural, de modo análogo, se a neutralidade da rede é pedra de toque da garantia de uma Internet livre, sem discriminação e de proteção da livre-concorrência, não é a sua relativização que irá solucionar o crescimento do monopólios das chamadas Big Techs.
Ao contrário, se quisermos de fato pensar numa solução, devemos olhar para o fortalecimento do princípio neutralidade em conjunto com a outras estruturas legais e de governança defendidas pela sociedade civil de hoje. Entre os aspectos defendidos estão a regulação das plataformas e dos meios de comunicação e a revisão do modelo de negócios baseado em franquia e na interrupção do serviço de Internet. Nesse modelo, as ofertas de zero-rating acabam determinando quais são as aplicações que terão continuidade do serviço ao fim da franquia, nitidamente violando o princípio da neutralidade, ao discriminar origem e tipo de pacotes de informações e usuários, trazendo graves impactos sociais como a disseminação de desinformação, ampliação dos discursos de ódio na Internet e fragilização democrática do país. Assim, reforçar a estrutura da neutralidade da rede torna-se mais que um compromisso econômico de garantia da livre concorrência, mas também instrumento de salvaguarda de um país justo, menos desigual e democrático.
Essas demandas já foram encaminhadas em forma de um pedido administrativo ao Ministério da Justiça e Secretaria Nacional do Consumidor por organizações que compõem a Coalizão de Direitos na Rede para que o Governo se posicione e assuma uma postura ativa no cumprimento das regulações nacionais sobre Internet e garanta uma Internet universal e de qualidade. Todos esses esforços estão somados em uma campanha lançada pela própria coalizão chamada #LiberaMinhaNet, que busca informar a população sobre esses direitos bem como cobrar o Governo sobre ilegalidades que tem restringido o acesso à Internet, principalmente de grupos populacionais da classe C, D e E e pessoas negras e indígenas em nosso país.
A disputa em torno da quebra da neutralidade da rede já ocorreu nos Estados Unidos, quando a FCC extinguiu o princípio da neutralidade em 2017 (FCC é a sigla para Federal Communications Commission, equivalente à Anatel nos EUA). Não é à toa que, em uma tentativa de golpe, o Capitólio acabou sendo invadido anos depois, em 6 de janeiro de 2021, um evento inédito na história da democracia norte-americana. Essa decisão permitiu que provedores de acesso pudessem privilegiar certos conteúdos, fazendo com que algumas aplicações tivessem mais velocidade que outras. Esse modelo, assim como acontece com as práticas das operadoras no Brasil, trouxe altos riscos para a Internet democrática e livre, pois os usuários que não podem pagar altos valores ficam com acesso restrito a uma parte da Internet, comprometendo não só sua capacidade de usufruir dos direitos, mas também de ter pleno entendimento dos seus deveres como cidadãos. Por isso, organizações da sociedade civil chamam a prática de pedágio, pois para caminhar em algumas vias o usuário precisa necessariamente pagar mais, criando cidadãos de segunda categoria.
Ao fim, a ideia de que a neutralidade da rede não tem impacto na inovação ou que seja responsável pela existência dos monopólios na economia digital, veiculada na tomada de subsídios da Anatel e amplamente defendida pelas operadoras, não é mais que uma falácia. Tal proposta esconde, por trás de um discurso falsificador da realidade, o desejo dos grandes conglomerados da telecomunicação por um “direito ao monopólio” e, talvez aí, esteja de fato o verdadeiro significado do “fair” defendido por seus porta-vozes. O “justo direito” a um pedaço desse monopólio.
(*) Cristiana Gonzalez, consultora da Coalizão Direitos na Rede
José Vitor Pereira Neto, coordenador do Núcleo de Acesso à Internet e Racismo no Aqualtune Lab
Oona Castro, diretora de desenvolvimento institucional do Instituto Nupef
Polinho Mota, coordenador de dados do data_labe
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