Flávia Lefèvre* -- 23-04-2024
Fonte: Boletim Outras Palavras
Passados 10 anos de aprovação do Marco Civil da Internet (MCI) – a Lei 12.965, de 23 de abril de 2014, podemos afirmar que sua construção democrática, com ampla participação de todos os setores da sociedade civil andou pelo caminho certo. Temos uma lei principiológica e voltada para garantir direitos fundamentais, assegurando o caráter público das redes, a liberdade de expressão e protegendo a privacidade e o consentimento informado para a exploração de dados pessoais, sancionada numa época em que ainda não tínhamos a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD).
O MCI introduziu garantias que ampliaram o piso regulatório do serviço de conexão a Internet, que já se submetia ao Código de Defesa do Consumidor (CDC), tratando de questões técnicas específicas ao seu uso, com o reconhecimento de sua importância para o desenvolvimento econômico, social e cultural do país.
Nessa linha, a lei atribuiu ao serviço de conexão a Internet o caráter essencial, tornando-o um serviço universal, o que faz toda a diferença. É esta dimensão que torna os poderes públicos federal, estadual e municipal obrigados a promover medidas para a inclusão digital, otimizar a infraestrutura das redes, estimular a implantação de centros de armazenamento, gerenciamento e disseminação de dados no país e promover a qualidade técnica, a inovação e a difusão das aplicações de Internet. Tudo isso sem prejuízo à abertura, à neutralidade e à natureza participativa da rede; desenvolvendo ações e programas de educação e capacitação para uso da internet, promoção da cultura e da cidadania e prestação de serviços públicos de atendimento ao cidadão de forma integrada, eficiente, simplificada e por múltiplos canais de acesso, inclusive remotos.
O Marco Civil também garantiu que a governança da Internet se dê de forma democrática, colaborativa e multissetorial, envolvendo participação do governo, do setor empresarial, da sociedade civil e da comunidade acadêmica, de modo a se promover a racionalização da gestão, expansão e uso da internet, com participação do Comitê Gestor da internet no Brasil (CGI.br).
Com estas perspectivas, a lei conferiu segurança tanto para os consumidores quanto para os agentes econômicos desenvolverem suas atividades no país, estabelecendo padrões para o tratamento de dados por meio do Decreto 8.771/2016, que veio regulamentá-la, e por meio da atuação do Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR, que é o braço técnico do CGI.br.
O MCI também definiu regimes específicos para a guarda de dados pelas empresas de conexão a Internet e para os provedores de aplicações. Estabeleceu prazos e procedimentos para a entrega de dados a autoridades públicas, sob o exame do Poder Judiciário, reduzindo o potencial de vigilantismo estatal, bem como regras de responsabilidade e sujeição das empresas à legislação brasileira.
Por tudo isto, discordo dos que defendem uma revisão para o Marco Civil, uma vez que ele tem cumprido de forma exemplar o papel de ser o definidor de um piso principiológico sobre o qual possam ser estabelecidas decisões judiciais, normas e outras leis para o uso e desenvolvimento da Internet no país. Tanto é assim que, até hoje, permanece sendo reconhecido internacionalmente como um modelo de governança, tendo sido seguido por diversos países.
Na verdade, o que ainda falta é aplicar a lei de forma efetiva, pois alguns direitos fundamentais vem sendo reiteradamente desrespeitados. Entre eles está a neutralidade da rede – que obriga os provedores de conexão a tratarem de forma isonômica quaisquer pacotes de dados, sem distinção por conteúdo, origem e destino, serviço, terminal ou aplicação. Os planos de conexão que beneficiam serviços como o Whatsapp e outras plataformas são um claro exemplo desta violação.
Também não está sendo garantida a prestação continuada do serviço de conexão a Internet, como têm denunciado as entidades que integram a Coalizão Direitos da Rede (CDR), em processo administrativo que corre no ministério da Justiça desde janeiro de 2023, sem que as autoridades competentes deem consequência e efetividade a estes direitos. Esta omissão contribui em grande medida para que a desigualdade no acesso a Internet no país alcance patamares vergonhosos, como mostrou pesquisa divulgada há uma semana pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br). Segundo ela, apenas 22% dos usuários no país possuem acesso significativo e não precário.1
Na parte da responsabilização das plataformas, também a lei tem sido negligenciada. Ignora-se reiteradamente o que está disposto no inciso VI, do artigo 3º, do Marco Civil, que trata da disciplina do uso da Internet, estabelecendo princípios, estando entre eles a “responsabilização dos agentes de acordo com suas atividades, nos termos da lei”. Apesar da clareza solar deste dispositivo, insiste-se na tese de que as plataformas só responderiam na hipótese do artigo 19, que trata de responsabilidade quanto a conteúdos postados pelos usuários e cuja constitucionalidade está sob o exame do Supremo Tribunal Federal, que deverá julgá-la ainda neste ano.
Ou seja, tem-se ignorado a necessidade de se interpretar sistematicamente as leis, deixando-se de aplicar a responsabilidade das plataformas quanto às suas atividades de moderação de conteúdos, como impulsionamento, recomendação, redução de alcance e suspensão de conteúdos e contas. É algo muito confortável para estas empresas e muito danoso em larga escala para a sociedade brasileira, que tem tido instituições políticas e eleições impactadas negativamente por estas práticas comerciais visando exclusivamente o lucro e desvinculadas do interesse público.
Reconhecer a importância e a atualidade do MCI não significa negar a necessidade de avançarmos na regulação das atividades exploradas pelos agentes econômicos que atuam na Internet como oligopólios transnacionais. É o que propunha o Projeto de Lei (PL) 2630/2020, relatado na Câmara pelo deputado Orlando Silva, especialmente quando dispunha sobre obrigações de transparência, conferindo dose necessária de governança sobre as práticas algorítmicas aplicadas pelas plataformas. Ou quando garantia direitos de crianças e adolescentes, o emprego das plataformas por agentes públicos e o código de condutas a orientar os termos de uso das empresas.
É lamentável que, numa disputa de poderes políticos em tempos tão conturbados (as plataformas contaram com a atuação contundente e irresponsável de Elon Musk atacando as instituições brasileiras), o PL 2630/2020 – tenha sido enterrado por Arthur Lira, como presidente da Câmara alinhado com interesses reacionários, bolsonaristas.
Diante do quadro político que tomou o país nos últimos anos, ainda será o Marco Civil a nossa tábua de salvação. Apesar de todos os ataques que sofre desde sua aprovação – tanto no Legislativo quanto no Judiciário, junto com o Código de Defesa do Consumidor e a Lei Geral de Proteção de Dados – é ele que vai continuar a garantir ao país as ferramentas legais que asseguram direitos fundamentais e o caráter aberto e democrático das redes. Por mais que seja necessário disputar estes valores nos embates constantes que temos enfrentado com forças políticas e agentes econômicos que atuam para o retrocesso nos avanços civilizatórios.
(*) Advogada especializada em direito do consumidor, telecomunicações e direitos digitais. Mestre em processo civil pela PUC-SP. Foi representante 3° Setor no Comitê Gestor da Internet no Brasil no período 2014-2020. É consultora do Instituto NUPEF..
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