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Desvirtuamento dos espaços de participação democrática e controle social na Anatel – ignorância ou truculência?

Flávia Lefèvre*

Publicado originalmente em Capital Digital

Assisti dia 29 de outubro uma sessão do Conselho Consultivo da Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL), organismo do qual já fiz parte representando os usuários de 2006 a 2009 e de 2026 a 2017, quando exerci a vice-presidência tendo na presidência o companheiro de lutas pela democratização das telecomunicações Marcio Patusco. Hoje, o Conselho Consultivo conta com duas outras valiosas companheiras ocupando as vagas dos usuários e da sociedade civil – Paloma Rocillo e Cristiane Gonzales respectivamente.

De acordo com a Lei Geral de Telecomunicações (LGT) e com o Regimento Interno do Conselho Consultivo, trata-se do “órgão de participação institucionalizada da sociedade na Agência”, que tem entre suas atribuições opinar sobre políticas governamentais de telecomunicações, aconselhar quanto à instituição ou eliminação da prestação de serviços no regime público e requerer informações e fazer proposições a respeito de ações relativas à instituição ou eliminação de serviço no regime público, entre outras.

A despeito da clareza quanto à finalidade do legislador ao estabelecer esta instância de participação, que é evidentemente viabilizar preceitos expressos na nossa Constituição Federal, quando trata de participação e controle social, bem como quanto aos contornos das atribuições do Conselho Consultivo, na reunião ocorrida no último dia 29 de outubro, agentes públicos representantes da ANATEL e do Ministério das Comunicações sentiram-se à vontade para reafirmar a resistência em cumprir o princípio constitucional da transparência quanto ao processo de alteração do contrato da concessão da OI para autorização, que implicará na entrega de mais de R$ 100 bilhões de reais de patrimônio público para empresas do grupo econômico da concessionária, entre ela a V.Tal, cujo controle acionário é de mais de 87% do BTG Pactual.

Importante destacar que, de acordo com a LGT, o valor da operação de entrega dos bens públicos, que consistem em todas as redes de telecomunicações – as de cobre, as de fibra, as de transporte e as de acesso e última milha – e seus dutos subterrâneos, torres e mais de 13 mil prédios, entre outros equipamentos, deve ser revertido em compromissos de investimento pela concessionária, “priorizando a implantação de infraestrutura de rede de alta capacidade de comunicação de dados em áreas sem competição adequada e a redução das desigualdades”. Ou seja, o interesse e o direito da sociedade civil em ter elementos que confiram segurança jurídica ao processo de avaliação dos bens para orientar o processo de transição tanto do contrato com a OI, quanto com as outras concessionárias que também estão em curso e igualmente de forma ilegal correm em sigilo, são inequívocos.

Inclusive porque, no caso da OI, os bens envolvidos conforme consultoria contratada pela própria ANATEL identificou, o patrimônio vale em torno de R$ 101 bilhões; mas a ANATEL, aplicando critérios questionados pelo TCU, concluiu que vale R$ 19,9 bilhões e, por conta do sigilo que paira sobre o processo, concluíram em conceder um descontinho, permitindo que o acordo seja fechado em R$ 5,8 bilhões. Sem nenhuma explicação plausível; até porque o processo corre em sigilo e o relator do tema, Conselheiro Alexandre Freitas tendo afirmado: “a solução consensual pode apresentar desfecho diverso do que no estado de normalidade institucional ocorreria, uma vez que HAVERÁ SUSPENSÃO EPISÓDICA DA LEGISLAÇÃO de regência e dos precedentes da Agência, formando uma necessária jurisprudência de crise”.

Foi com base nesse cenário de absoluta insegurança jurídica e no direito de participar e, especialmente por força da falta de transparência que marca todo esse processo, que no dia 11 de outubro a Conselheira Cristiane Gonzales, representando a Coalizão Direitos na Rede, enviou ao Conselho Consultivo ofício propondo que o tema fosse incluído na pauta do colegiado, de modo que fossem cumpridas as determinações contidas nos arts. 35 e 18, inc. I, da LGT, e do art. 7º, do Regimento Interno.

O pedido foi de pronto negado pelo Presidente da ANATEL – Carlos Baigorri. Surpreendentemente, o Presidente do Conselho Consultivo – Leonardo Bortoletto aderiu rapidamente à negativa do pedido de mais informações e surpevisão do acordo pelo colegiado, como é possível constatar do vídeo da reunião no YouTube. A surpresa se justifica, uma vez que, ocupando o importante cargo, o mínimo que se poderia esperar é que zelasse para que as competências e o caráter de participação institucionalizada da agência atribuídas pelo legislador fossem estritamente cumpridas.

As companheiras Cristiane e Paloma vêm há meses, de forma expressa e oficial, requerendo mais informações sobre uma série de processos relativos às negociações envolvendo a OI, sem nenhum sucesso. Mesmo os acordos consensados em reuniões anteriores, no sentido de se trazer ao conselho o tema depois que o Tribunal de Contas da União (TCU) se pronunciasse, conforme a 215ª Reunião, ocorrida em 5 de fevereiro deste ano, foi negada, sob a frágil e reprovável afirmação do Presidente do Conselho, no sentido de que o acordado teria sido que o tema viria depois de o termo de migração ter sido assinado. Ora, depois de tudo assinado a relevância e eficácia de se trazer o tema ao Conselho Consultivo tornam-se reduzidas e retiram do direito ao controle social o peso que tanto a CF quanto a LGT dispensaram.

Para piorar a situação, na mesma reunião do último dia 29 de outubro, o servidor público do Ministério das Comunicações Gil Loja, que tem assento no Conselho Consultivo, diante da insistência das conselheiras em obter mais informações sobre o assunto, afirmou que o consenso sobre o processo da OI se iniciou em outubro de 2023 e que o MCOM teve uma série de reuniões com representantes da OI, ANATEL, TCU e AGU, que ele não saberia dizer quantas teriam sido, e que todas as questões suscitadas pelas conselheiras foram tratadas, inclusive o estudo sobre os bens reversíveis relativos ao ano de 2019, que não foram conclusivos e que eles dão uma “ideia completamente errada” do que se tem como bem reversível.

O servidor público insistiu no discurso que revela má fé intelectual, pois tenta desconsiderar o valor econômico de um volume imenso de imóveis – mais de 10 mil, por exemplo, entre outros bens associados à concessão, alegando que tais bens não são mais essenciais para a prestação da telefonia fixa e que, por isso, poderiam ter os valores desconsiderados no processo de migração. Ignora que, a despeito de bens deixarem de ser essenciais para a prestação do serviço, seus valores devem ser considerados, ficando registrados em contas vinculadas, para se apurar o valor econômico da concessão para orientar o processo de migração,

Além disso, o representante do MCOM, hoje dirigido pelo indiciado pela Polícia Federal Ministro Juscelino Filho, ao se referir ao julgamento ocorrido no último dia 3 de julho da proposta de acordo apresentada pela ANATEL ao TCU, fez tabula rasa de alguns aspectos extremamente relevantes e que não poderiam estar sendo ignorados, seja pela agência, seja pelo Ministério ou pela AGU, quais sejam:

1 – O órgão de auditoria do TCU apontou uma série de graves irregularidades nos procedimentos adotados pela ANATEL para a avaliação dos bens e desaprovou o acordo nos termos como ele está hoje;

2 – As inconsistências na avaliação dos bens reversíveis apontadas pelo TCU estão expressas no Acórdão 516 de março de 2023 da Corte de Contas, com determinações que não foram atendidas até hoje pela agência. Tanto assim, que o Conselheiro Diretor Vicente Aquino, no dia seguinte ao julgamento do acordo no TCU – dia 4 de julho, instaurou processo pedindo 120 dias de prazo para cumpri-las, especialmente as que dizem respeito ao fato de a ANATEL ter atribuído valor ZERO a 49,18% dos bens reversíveis sem o devido processo legal e ao de não ter auferido o valor de mercado dos mais de 13 mil imóveis envolvidos no processo;

[imagem anexa]

3 – A Procuradora Geral da República que atua no TCU, no último dia 3 de julho – data de julgamento do acordo pela Corte de Contas emitiu parecer por meio do qual ela desaprovou o termo de acordo, com base nas seguintes afirmações:

x) a parcela de R$ 12 bilhões de bens reversíveis não amortizados que seriam devidos à Oi ao final da concessão, conforme consta na RBR 2019, não faz frente ao valor que a União abriria mão com a concretização da adaptação por esta solução consensual, no total de R$ 101 bilhões, segundo informado pela Anatel no mesmo documento (peça 53, p. 78), a reforçar a pertinência da manutenção da discussão sobre bens reversíveis nas instâncias competentes, inclusive no Tribunal; xi) eventual decisão desfavorável à Oi na arbitragem que inviabilize a sua recuperação judicial deve materializar os riscos levados em consideração nesta solução consensual, inclusive quanto à continuidade da prestação do STFC nas áreas que precisam do serviço, pelas frágeis garantias ofertadas no acordo; por outro lado, não afetarão a transmissão dos bens reversíveis à V.tal, que não poderão mais ser reclamados pelo Poder Concedente, dada a concretização da adaptação, ficando sob o encargo dessa empresa a realização dos R$ 5 bilhões em investimentos fixos, que, em sua maioria, já fazem parte do seu plano de negócios; e xii) a flexibilização de instrumentos como bens reversíveis e valor econômico podem se refletir de modo desfavorável nos demais contratos de concessão que devem ser adaptados, além de estender efeitos negativos aos demais setores de infraestrutura que contemplam discussões em torno desses mecanismos.

1. Diante do exposto, não obstante compreendermos o louvável esforço da SecexConsenso em tentar construir uma solução de equilíbrio no caso concreto, esta representante do Ministério Público, com fulcro no art. 8.º da IN/TCU n.º 91/2022, manifesta-se no sentido de desaprovar o termo de autocomposição sugerido e de arquivar o presente processo. Importante registrar que o encaminhamento ora defendido não impede, no futuro, a reabertura de nova negociação pelas partes em momento mais oportuno, especialmente após a superveniência de sentença arbitral, uma vez que o desfecho da arbitragem já iniciada pode impactar decisivamente as condições de transação aqui referenciadas.

4 – A despeito do que determina a LGT quando estabelece sobre as contrapartidas para novos investimentos em redes de alta capacidade para atender políticas públicas de inclusão digital, o certo é que, em virtude do sigilo que paira sobre os processos, a sociedade desconhece a existência de um plano que estabeleça com detalhes as metas e cronogramas de forma clara e transparente.

Para piorar, como todos podem constatar do vídeo da 222ª. Reunião do Conselho Consultivo, que está disponível no canal da agência no Youtube, o servidor Gil Loja, a partir das 2:23 min, solta as seguintes pérolas sobre a pretensão das conselheiras de obterem informações e opinarem sobre este importante acordo, que implicará na transferência de bilhões de reais de infraestrutura estratégica para a soberania digital do país e para a democratização do acesso a Internet:

Como é o termo mesmo? Aconselhamento? Isto posto meu entendimento é que isto é uma questão do Conselho Diretor, TCU, AGU …. o Conselho Consultivo ele dá a sua opinião … como é a expressão? Aconselhamento? Aconselhamento eu peço. Consultivo é isto. Consulto e pergunto. Qual a sua opinião? Eu não vejo o Conselho Diretor interessado na nossa opinião . Sendo bem franco. Ele tem a opinião de todas as partes envolvidas. É uma prerrogativa do Conselho Diretor tomar a decisão SEM o aconselhamento do Conselho Consultivo. Eu acho que eu concordo com o Presidente Leonardo que neste momento nosso trabalho é reativo e não deliberativo. Vamos fazer o que, questionar bens reversíveis?”

Sendo graves as advertências apresentadas pela Procuradora Geral e pelo órgão de auditoria do TCU sobre as irregularidades na avaliação dos bens, e diante da fala do servidor Gil Loja, ficam-me algumas perguntas, para além das que ele fez:

  • O servidor realmente acredita que o Conselho Consultivo deve opinar sobre temas exclusivamente quando o Conselho Diretor veja necessidade e o provoque? Se sim, seria melhor reler a LGT.

  • Quando diz que todas as partes envolvidas no contrato foram consultadas e se manifestaram, entende que a sociedade civil, inclusive e especialmente os cidadãos consumidores dos serviços de telecomunicações e Internet não são parte interessada? Se sim, seria bom consultar os manuais de direito administrativos e verificar que os cidadãos são considerados parte enquanto coletividade nos contratos de concessão e que informações não poderiam ser negadas por conta de processos que correm em sigilo, além de se silenciar a sociedade.

  • Quando diz que estava sendo franco sobre a não necessidade de se envolver o Conselho Consultivo no processo, ignorava estes importantes aspectos que revelam mecanismos estruturantes da nossa democracia, ou estava apenas sendo truculento?

(*) FLávia Lefèvre, advogada e mestre em Processo Civil pela PUC/SP, é do conselho consultivo do Instituto Nupef.

 

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