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Em defesa do modelo de governança da Internet no Brasil e contra a extinção da Norma 4

Fonte: Coalizão Direitos na Rede

25-abril-2025

A Coalizão Direitos na Rede, grupo de mais de 50 entidades brasileiras defensoras dos direitos digitais, vem por meio desta nota manifestar seu repúdio em relação aos recentes ataques realizados contra o atual modelo de governança da Internet no País, reconhecido internacionalmente e pilar de uma governança democrática e tecnicamente qualificada.

Em 2024, o deputado Silas Câmara (Republicanos-AM) apresentou o Projeto de Lei (PL) 4557/2024 propondo a transferência da supervisão do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) para a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel). Com participação dos setores empresarial, científico e técnico, do terceiro setor e governamental (com maioria de membros do Governo), o CGI.br exerce há 30 anos um papel fundamental e dedicado às regras e normas fundamentais ao bom funcionamento da Internet. Além de transferir suas atribuições para a Agência, o projeto de lei também altera a composição do CGI.br, incluindo representantes do Poder Legislativo e retirando o representante do “notório saber” – um ataque ao caráter técnico do comitê. O PL 4557 recebeu, no último mês, o apoio público da Anatel e de seus diretores.

Em paralelo, no dia 03 de abril, o conselho diretor da Agência Nacional de Telecomunicações anunciou para 2027 a extinção da Norma 4/1995, criada antes mesmo da fundação da Agência pelo Ministério das Comunicações. Esta norma estabelecia a separação entre serviços de telecomunicações e os serviços de conexão à internet, classificados como Serviço de Valor Adicionado (SVA) pela Lei Geral de Telecomunicações (LGT), e vem se mostrando fundamental para a promoção do desenvolvimento da Internet e o acesso a ela. A caracterização particular do SVA foi essencial para a criação de um ambiente favorável à inovação tecnológica e a redução da concentração dos agentes econômicos deste mercado.

Além da extinção da norma ter sido decidida sem qualquer participação social – sem que o Conselho Consultivo da Anatel e o próprio CGI.br fossem ouvidos – , a Agência não tem prerrogativa legal para suspender uma norma criada pelo Ministério das Comunicações que não trata de telecomunicações.

A Anatel já tinha apontado para a extinção da Norma nº 4 em 2022, na consulta pública nº41. Na ocasião, a Coalizão Direitos na Rede já tinha argumentado em contrário, mostrando como a extrapolação de suas atribuições legais criaria insegurança jurídica e problemas normativos ao contrariar o arcabouço legal consolidado na Lei Geral de Telecomunicações, no Marco Civil da Internet e em decisões do Supremo Tribunal Federal.

A justificativa defendida pela Anatel para extinguir a Norma nº 4/1995 está ancorada em dois pilares: 1) a ausência de necessidade técnica para a separação entre serviços de telecomunicações e Serviços de Valor Adicionado (como o Serviço de Conexão à Internet – SCI), e 2) a Reforma Tributária, prevista para 2027, que eliminará as diferenças em tributos como ISS e ICMS, unificando-os no novo Imposto sobre Bens e Serviços (IBS).

É evidente que, desde sua criação, a experiência e o conteúdo difundido por meio da Internet mudou, mas suas características essenciais e aplicações nos mais diversos suportes, seu crescente e contínuo desenvolvimento foram possíveis por suas normas e protocolos técnicos e abertos. Embora as tecnologias de rede tenham evoluído e, em muitos aspectos, se integrado, ainda há diferenças importantes que justificam a manutenção de distinções.

A internet é uma rede mundial de computadores que se comunicam usando protocolos comuns. O modelo OSI (Open Systems Interconnection), criado pela ISO (International Organization for Standardization), é uma estrutura de modelo teórico que organiza os diferentes protocolos em camadas e possibilita que cada agente do ecossistema seja responsabilizado e regulado no limite da sua atuação técnica. A diferenciação estabelecida na Norma 4 reflete essa separação técnica e possibilita que diferentes regulações incidam sobre diferentes serviços.

Além disso, trata-se de tecnologias diferentes. Apesar de, por exemplo, o VoLTE1 permitir que a voz seja transmitida como dados, a infraestrutura subjacente para redes móveis e fixas ainda pode diferir significativamente. Do ponto de vista do uso do espectro, o espectro de radiofrequência também é gerido de forma diferente para redes móveis e fixas, e isso pode impactar como os serviços são prestados e regulamentados. Ademais, as aplicações e o uso dos serviços podem variar entre redes fixas e móveis, o que justifica a manutenção de distinções regulatórias.

Se existe um problema de tributação e arrecadação que a Anatel pretende endereçar, não é colocando a Internet sob sua fiscalização que o Brasil vai resolver essa questão, menos ainda se tal medida for adotada de maneira unilateral e ilegal.

A Anatel tem dado repetidas demonstrações de intenção de trazer para si a prerrogativa de regular diversos aspectos da Internet e tem criado sucessivas medidas – a despeito de estar dentro de suas atribuições ou não – para atingir esse objetivo. No entanto, a Agência já tem a hercúlea tarefa de implementar a política nacional de telecomunicações, administrar o espectro de radiofrequências e o uso de órbitas, fiscalizar a prestação de serviços em regime privado e aplicar sanções em casos de infrações de ordem econômica. E há muito o que se fazer nesse sentido.

Para darmos conta, como sociedade, do enfrentamento aos problemas hoje constatados na Internet precisamos, mais do que nunca, de instituições preparadas para lidar com as suas especificidades E de um conjunto de instituições capazes de cooperar em prol de um ambiente regulatório tecnicamente eficiente, multissetorial e democrático.

A extinção da Norma nº 4 e o Projeto de Lei 4557/2024 demonstram uma visão apequenada do que é a Internet e da diversidade de aspectos que precisam ser cuidados para bem zelá-la e governá-la. Mais do que isso, são ataques graves ao Comitê Gestor da Internet, à própria governança da Internet no Brasil e à democracia.
 

  1. VoLTE: “VoLTE é a nomenclatura que representa a tecnologia de chamadas de vídeo e voz através da rede LTE, conhecida também como 4G. No Brasil, as chamadas de voz utilizam as redes GSM e WCDMA, enquanto as redes 3G e 4G são responsáveis pelas transmissões de dados para navegação de internet. O VoLTE permite a transmissão de chamadas de voz ou vídeos através da rede 4G, por meio do protocolo IP entre dois dispositivos compatíveis. Com o VoLTE as chamadas são tratadas como dados, e operam dentro da frequência e do padrão LTE.” por Bruno Salutes em https://canaltech.com.br/internet/volte-o-que-e/

     

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