Evanildo Barbosa da Silva, diretor da FASE - Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional fala sobre o posicionamento da organização no contexto atual de mobilizações e protesto e analisa possíveis mudanças políticas.Qual a importância dos atuais eventos – tanto as manifestações populares quanto a discussão sobre Reforma Política - para a FASE?A importância é enorme e por isso mesmo assume um caráter histórico. A FASE tem 52 anos de existência e participou e viu acontecer muitas mudanças na conjuntura do país, nas organizações da sociedade civil e nas diversas instâncias e instituições que compõem o Estado brasileiro. Alguns fundamentos lá do inicio da FASE – ainda que mudem de nomes na atualidade para acompanhar as mudanças e as conquistas sociais - organizam até hoje a estratégia e o campo de valores da FASE nos seis estados em que ela atua no país, sendo alguns que se sobressaem na nossa luta: a democracia, os direitos humanos, o direito à cidade, o direito a segurança alimentar e nutricional, a agroecologia, a justiça socioambiental, a igualdade e os direitos de mulheres, jovens, entre outros. Esses fundamentos se configuram como objetivos permanentes da luta cidadã e isso é muito mais visível e sentido quando organizações como a FASE não permitem que se deixe reduzir sua capacidade de relação direta seja com os sujeitos vivos dos conflitos por direitos, seja com os territórios da resistência e da inovação da política. Neste sentido os atuais eventos e manifestações trazem consigo muito dessas referências que, antes de tudo, resultam de construções históricas e principalmente coletivas, dado que emergem com força e peso de insatisfação com o estado da arte na política e, esperamos, contra as atuais escolhas do modelo econômico prevalecente.O que se espera de tais manifestações?As manifestações atuais – não a sua profusão de demandas nem no que elas irão dar, pois ambas necessitam de um tempo largo pra serem razoavelmente compreendidas – estão aí como combustível e combustão potencial de um novo ciclo de nossa cultura política. É sempre bom lembrar que o que ainda se tem de rico e expressivo em termos de cultura política nasceu da luta popular, razão pela qual em parte se explica porque as instituições clássicas estão tão desacreditadas na sociedade. Quem sabe a insatisfação das ruas não venha a se traduzir em novos horizontes utópicos e, desde aí, não se constituam novas possibilidades para transpor as muitas barreiras que ameaçam diariamente a vida de nossa população?Com isso me remeto à questão da reforma política. Ainda que essa agenda esteja sendo publicamente retomada por iniciativa do governo federal diante das manifestações, ela é uma bandeira histórica das organizações da sociedade civil, muitas das quais são filiadas a Abong. É uma plataforma que vem sendo bastante debatida e é especialmente dotada de um conjunto de novas propostas e instrumentos que apontam e assumem uma perspectiva de radicalização da participação no poder instituído e para o exercício direto do poder pelos os cidadãos e cidadãs. A carta recente da Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma do Sistema Político é bastante enfática quanto à necessidade de a Presidente Dilma apontar para mudanças sistêmicas nesse quesito, tornando claro seu apoio à ideia do plebiscito, mas, procurando influenciar nos conteúdos à medida que faz a defesa da democracia direta e da reforma do sistema eleitoral brasileiros, o que concordamos em muitos dos sentidos ali propostos.Qual a importância do envolvimento e pronunciamento específico da FASE frente aos recentes acontecimentos?A FASE não fez exatamente um pronunciamento perante os acontecimentos, muito embora, através do envolvimento de seus profissionais país afora, tenha apontado e difundido em editorial, pequenos artigos, relatos e opiniões algumas de suas percepções da conjuntura. Ora entusiasmada com as pessoas em movimentação cívica, ora desapontada com as situações e tentativas de cerceamento da estética da luta e das palavras de ordem de agremiações partidárias, das tentativas de desvirtuamentos dos significados das ruas pelos meios de comunicação hegemônicos e também com a forma autoritária e violenta dos organismos de segurança pública que deveriam ser de proteção e não de intimidação ao livre direito de associação e manifestação. Assim, até aqui a FASE tem procurado cumprir seu papel de reflexão crítica dos acontecimentos, mas, sem com isso buscar um posicionamento exclusivo seu. Ao contrário, a FASE procurou ser parte das falas coletivas, assinando as cartas e manifestos de articulações, redes, fóruns, comitês da Copa e outros coletivos dos quais ela participa, de modo a ajudar na disputa dos significados e dos conteúdos das pautas das ruas que ainda se encontram minimizadas na sua potência transformadora.Qual a sua análise do que está sendo colocado em pauta nas mobilizações populares?Apesar de muitas das vozes das ruas apontarem para uma insatisfação muito justa com a qualidade dos bens e serviços essenciais públicos urbanos (transporte coletivo, mobilidade, educação, saúde, gastos públicos com obras da copa, segurança, moradia, saneamento, etc); apesar da avalanche de críticas a letargia dos governos, do Congresso e seus parlamentares e do poder judiciário em relação às pautas de interesse coletivo, dentre outros, as vozes da rua ainda não puseram em questionamento o modelo econômico vigente que em grande medida define o padrão de reprodução precário da vida nas cidades e no campo; elas ainda não apontaram para uma contraposição urgente aos já insustentáveis padrões de consumo e de degradação ambiental dos grandes projetos, de modo que essa agenda pública já pudesse se converter em uma agenda de lutas com vistas enfrentar na sociedade o debate da transição do modelo.Nesta linha, eu espero futuramente não ter que concluir que os acontecimentos e as mobilizações calibraram sua força criativa por baixo, no sentido de que se traduziram em movimentações coletivas dotadas de muita insatisfação difusa, mas, de baixa capacidade de giro sobre as atuais bases do modelo econômico, seja ele o modelo de desenvolvimento urbano ou de configuração de redes de cidades, para ficar num exemplo específico. Também não gostaria de ver reproduzido em futuras experiências do clamor das ruas não serem igual e devidamente responsabilizadas as elites econômicas, as empresas e as corporações privadas pelas muitas formas de violação desses mesmos direitos pelos quais a população luta – como infelizmente tenho percebido daquelas em que participei. Isso passando incólume seria supor que só as instituições públicas são as responsáveis (muito embora elas também o sejam!), por exemplo, pelo superfaturamento de obras, pelos desmandos com os recursos públicos ou pelas remoções de comunidades inteiras de suas áreas para dar lugar a algum novo projeto urbanístico ou energético. Ou seja, os acontecimentos revelaram os muitos pontos de insatisfação e conflitos, a partir da ótica espontânea de quem é violado e violentado nos seus direitos básicos, [mas] não podem deixar escapar a oportunidade de fechar bem o ciclo de sua insatisfação, apontando e trazendo também a publico os outros conflitos que são as empresas e a grandes corporações privadas se reproduzem e fragmentam território, violentando gerações inteiras nos seus direitos básicos, ainda mais tendo acesso aos fartos fundos públicos nacionais e ampliando sem oposição das ruas os regimes de gestão parceria público-privada.Nessa perspectiva, acredita que essa é uma oportunidade para dar mais visibilidade à atuação da FASE?É sim uma oportunidade, mas, menos pela visibilidade individual de uma organização e mais por poder compartilhar sinais de que o diagnóstico de mais de uma década, do campo Abong do qual somos parte, se apresenta ainda muito atual e especialmente válido para desconstruir imagens de um Brasil de renda média, inclusivo e emergente como potencial internacional. Embora essa tarefa de desconstrução não seja completamente possível devido a certos avanços e conquistas diagnosticados no plano interno, essa realidade discursiva e positivamente difundida lá fora contrasta com o tipo de reivindicação que se viu e ainda se vê nas ruas. Não quero nem falar do fato que o tipo de inclusão diagnosticada está longe de apontar para uma interrupção do ciclo geracional da desigualdade que afeta hoje e se projeta para o futuro sobre os segmentos sociais hoje já os mais desiguais. Portanto,ao contrário de uma parte bem pequena do Brasil que vendeu ao mundo uma imagem de um país que deu certo, as ruas (e nós nelas) estão a avisar que ainda há muito que se fazer por aqui. Neste caso a oportunidade de visibilidade estaria muito mais voltada para as muitas causas que ainda temos que encarar com inteligência propositiva e coletiva, do que exatamente para uma atuação mais circunscrita a uma célula organizativa qualquer que seja.O fato de mobilizações estarem sendo iniciadas e estimuladas principalmente por meios virtuais, incentiva mudanças na forma de atuação e mobilização também da FASE?A FASE já usa essas ferramentas virtuais como parte de sua política de comunicação e também como mais um modo de estar no mundo. Ainda é cedo pra avaliar se isso tem provocado mudanças substantivas. No entanto, pensando em termos gerais, ainda há muito que se depurar sobre a originalidade e os impactos das chamadas redes sociais sobre determinada práxis política. A sua potência na repercussão e “retuitação” do fato aqui e agora é inegável, mas, a história participativa brasileira é entrecortada por períodos de autoritarismo e de regimes de exceção. Nem sempre ela se realizou cumulativa em termos de aprendizagens devido à sanha repressora das elites que em muitos casos dizimou por inteiro essa força criadora da tradução coletiva dos direitos. Portanto, nossa cultura política se está aberta às inovações do mundo virtual e da pós-modernidade, é igualmente portadora de muitas intermitências quanto ao estímulo da comunicação e da mobilização de novo tipo. Tendo a achar que como no tempo presente tem-se revelado na cultura política brasileira e global a existência de alto descrédito da população nas chamadas instituições clássicas e constituintes da democracia representativa, tem-se aqui uma chave de leitura que pode explicar a razão pela qual as redes sociais emergem com relevância instrumental.Justamente por isso, não seriam então as redes sociais um novo e importante instrumento de politização?As redes sociais são dotadas de ágil operacionalidade, o que traduz a potência de que dispõem de realizar a convocatória de grupos e pessoas dispersas na net em direção a um ponto físico e material de encontro. Mas, sem negar a força da espontaneidade, parece prematuro se estabelecer uma relação causal entre o instrumento (meio virtual) e a forma de atuação (mobilização), pois, desde tempos imemoriais a rua tem sido o palco das lutas, especialmente tendo a frente formas institucionais associativas e reivindicatórias. As marchas, por exemplo, são experiências militares que foram se resignificando ao longo das lutas desde movimentos tenentistas até mais recentemente sem terra e sem teto. Mas, para não parecer insensível ao meio virtual como importante fato gerador de ajuntamento e difusão de mensagens nas manifestações recentes, tendo a achar que essas ferramentas - que já gozam de prestígio bem destacado entre os internautas sem filiação associativa de qualquer gênero - mais e mais estão compondo o universo de luta e de guerra discursiva de organizações mais clássicas da sociedade civil dentro e fora do Brasil. E, certamente isso é uma novidade em termos de possibilidades de veiculação e de interação com o mundo. Mas, de longe elas não são as responsáveis sozinhas pelas mudanças na forma de atuação em direção a uma “cidadania on line”, pois ainda há um universo enorme de pessoas, grupos, segmentos, populações que, por não terem à sua disposição esses meios virtuais, exigem que nossas organizações não dispensem ainda a ferramenta real da conversa presencial, da conexão direta, da consciência cidadã no eito da luta.Fonte: ABONG
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