por Márcio Santilli*A questão rural sempre teve peso e importância enormes no Brasil. Um imenso território sem geleiras ou desertos, um histórico colonial relativamente mais associado à ocupação e ao uso do solo, uma vasta gama de atores sociais vivendo da terra, apesar do forte processo de urbanização ocorrido nas últimas décadas, uma exuberante diversidade de culturas indígenas, africanas e europeias associadas aos campos e florestas, uma produção agropecuária vigorosa e planetariamente relevante: não faltam indicadores passados e presentes dessa importância, que seguirá sendo constitutiva também do nosso futuro.Sendo assim, o “ruralismo” também pode, ou poderia, abarcar um conjunto muito grande e diverso de perspectivas sobre o mundo, o país e o território. Mas a expressão acabou sendo apropriada pelo ativismo político de parte dos quadros partidários e de estruturas corporativas que vão lhe cunhando significados restritivos, pejorativos e indicativos de posições políticas extremadas. Assim foi a trajetória da União Democrática Ruralista (UDR), que comprometeu negativamente o significado da palavra, conferindo-lhe o sinônimo de obscurantismo, prepotência, violência e patrimonialismo fundiário descolado da produção.Mas nem sempre foi assim. Está ainda recente na memória nacional a importante atuação de empresários referenciais de vários segmentos produtivos em implementar e dar visibilidade pública à pujança produtiva dos segmentos do agronegócio, sua capacidade de agregar tecnologia para alavancar produtividade, de superar variáveis adversas para conquistar mercados e ampliar a sua inserção estratégica em um mundo superpopuloso e carente de alimentos. Pessoas como Roberto Rodrigues, Marcos Jank, Luís Furlan, José Penido e tantos outros que haverão de me perdoar pela omissão dos seus nomes, até há alguns anos atrás, davam o tom quanto à agenda de interesse da produção agropecuária junto à opinião pública do país. Não por acaso, temas contemporâneos marcaram esse debate: etanol, biomassa, transgenia, protecionismo comercial, o papel da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) etc.De repente, mudaram os atores e, sobretudo, mudou radicalmente o teor da conversa. A Confederação Nacional da Agricultura (CNA) deixou-se aparelhar politicamente como nunca com a ascensão da senadora Katia Abreu (PMDB-TO) à sua presidência, ao mesmo tempo em que a bancada ruralista crescia na Câmara dos Deputados, fomentada pelas distorções na representação dos estados naquela casa, que reduz a representação relativa de estados que são grandes produtores, como São Paulo, Paraná e Minas Gerais, enquanto infla as bancadas de Roraima, Rondônia, Tocantins e outros estados que contribuem apenas com pequena parte da produção agropecuária.O esvaziamento programático dos partidos acaba favorecendo uma maior visibilidade pública da bancada ruralista. Transversal, ela abriga deputados de vários partidos e articula movimentos de pressão e ações de chantagem sobre o governo, potencializando a influência política de vários dos seus membros, que também integram o “baixo clero” da Câmara e partidos de oposição.Com essa gente, a agenda ruralista de expressão pública foi relegando a um plano secundário as demandas relativas à produção para priorizar uma plataforma reacionária, fundada na exclusão de direitos dos demais atores sociais do Brasil rural: admissão legal de relações desumanas de trabalho, privatização de assentamentos de reforma agrária, ameaça a direitos de índios e de quilombolas, desobrigação com o meio ambiente, desinformação aos consumidores, ceticismo e desprezo à ameaça das mudanças climáticas como se fosse uma questão meramente ideológica. Esse programa e os seus protagonistas valem-se, retoricamente, do sucesso produtivo dos segmentos mais dinâmicos do agronegócio para legitimar um ruralismo de fronteira, patrimonialista e preconceituoso, capaz de confrontar a agropecuária com o resto da sociedade.No entanto, uma minoria muito pequena dos produtores ou propriedades rurais está em desacordo com a legislação que proíbe o trabalho escravo, ou ocupando assentamentos de reforma agrária, ou mantendo conflitos com índios e quilombolas, ou praticando desmatamento ilegal. A grande maioria está trabalhando, enfrentando dificuldades burocráticas, concorrenciais e climáticas, procurando aumentar a produção e a produtividade, com demandas objetivas que não têm interface com essa plataforma da CNA e da bancada ruralista.Não se trata, apenas, do sequestro programático da representação ou da manipulação política da produção rural, mas do fato de que essa agenda agressiva está conduzindo à radicalização ideológica e à multiplicação de conflitos. Se não, me digam: no que interessa aos produtores, ou à produção, a desqualificação de gays e de instâncias de governo com base em preconceitos pré-civilizatórios, como o manifestado na semana passada pelo presidente da bancada ruralista na Câmara, Luís Carlos Heinze (como na epígrafe)? Ele afirmou, em gravação de vídeo, que quilombolas, índios e homossexuais são “tudo o que não presta” (saiba mais). Os precedentes históricos similares não o recomendam, como a ascensão do fascismo, no passado, ou a discriminação aos imigrantes que cresce em vários países, afetando, inclusive, milhões de brasileiros que vivem no exterior.*Filósofo, formado pela Unesp, foi presidente da Funai de setembro de 1995 a março de 1996Fonte: Instituto Socioambiental
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