Era uma manhã quente de janeiro, e os banhistas começavam a lotar o Posto 2, na Barra da Tijuca. Para Beatriz Luz, seria mais um dia de trabalho intenso no verão. Atendente de um quiosque na praia, ela caminhava até a barraca quando, de repente, foi atacada por um homem. Primeiro, ele a empurrou. Depois, a golpeou pelas costas com uma enxada, na cabeça. Na tentativa de se defender, ainda teve um dedo de uma das mãos quebrado e um dos antebraços machucado. Beatriz é transexual e tem 32 anos. Com medo, hoje ela não trabalha mais no mesmo local. Já o agressor, funcionário de um quiosque vizinho, está no mesmo emprego, embora seja acusado de tentativa de homicídio. Antes de atacá-la fisicamente, ele constantemente xingava Beatriz de “bichona” na frente de outras pessoas e dizia que “tem que ser homem para trabalhar na praia”.Subnotificação é problemaA invisibilidade que cerca a violência sofrida por Beatriz em plena luz do dia também se repete nas estatísticas. Na 16ª DP (Barra), ela foi tratada pelo nome social, que entra no registro de ocorrência para a sua qualificação como vítima. Mas, oficialmente, valem o nome de batismo e o sexo masculino que ainda constam em sua carteira de identidade. Como não há nos boletins policiais o campo transfobia, ao lado da denúncia da tentativa de homicídio, foi incluída a de homofobia, que para o movimento LGBT abrange somente gays. Resumindo: ninguém sabe ao certo no Rio quantos transexuais já foram vítimas de agressão e até de assassinatos.— Na hora de registrar o assassinato de uma mulher trans, ela é tratada como um homem trajando roupas femininas. Não temos esse quantitativo. Os levantamentos feitos são por meio de notícias de jornais e com a ajuda da internet e de amigos — afirma Indianara Siqueira, militante trans e fundadora da Casa Nem, na Lapa. — Em 2016, no Brasil todo, foram pelo menos 177 assassinatos de travestis e transexuais. Não sabemos o total, porque há muita subnotificação e nem todos os casos chegam até nós. Esse ano, já são quase 30 assassinatos. E o Estado do Rio é um dos mais violentos.A questão é delicada. Se a mulher transexual já tiver alterado sua documentação, em caso de violência ela entra na estatística feminina. No entanto, a coordenadora do Núcleo de Defesa da Diversidade Sexual e dos Direitos Homoafetivos (Nudiversis) da Defensoria Pública do Rio, Lívia Casseres, conta que nem sempre a Justiça modifica o gênero. Muitas vezes, isso só é alterado se houve cirurgia de troca de sexo.— A Justiça, quando age assim, continua renegando a pessoa a uma condição de marginalidade, tornando o acesso a emprego quase impossível — denuncia Lívia, destacando uma série de barreiras. — Já recebemos um caso de mulher transexual que não conseguiu atendimento médico porque foi tratada pelo nome de registro. É uma população condenada a espaços sociais estigmatizados. E a violência contra a mulher transexual é mais cruel. Ela é fundada no ódio, na motivação por eliminar aquele corpo.A defensora diz também que a falta de dados sobre casos de transfobia acaba inviabilizando políticas públicas de prevenção. E muitos transexuais têm receio de procurar a polícia quando são agredidos e ameaçados. A atriz Dandara Vital tem 36 anos e se autodefine como travesti, por uma questão que chama de “resistência”. Ela é uma que admite: se precisasse, pensaria duas vezes antes de pisar numa DP.— Já pensei em procurar a polícia por conta de relacionamentos abusivos. Não fui agredida fisicamente, mas sofri torturas psicológicas. Se precisasse hoje, pensaria muito por medo de estar numa delegacia. Precisamos de profissionais capacitados, que respeitem a gente — diz ela, que perdeu o emprego em uma loja quando assumiu ser travesti, e passou a encenar uma peça autobiográfica chamada “Dandara através do espelho”.No caso de Beatriz Luz, antes de entrar no carro da PM para ser levada ao hospital, o policial pediu que ela “batesse o pé” para retirar a areia da praia e não sujar o veículo. A vítima estava com a cabeça sangrando e zonza com a pancada e a violência que sofreu. Hoje, não sai à noite com medo:— Ficou o trauma. Muitas pessoas levam o que eu sofri na brincadeira. Mas também tem que partir da gente a mudança. Fazer registro na delegacia e levar até o fim. E exigir a aplicação rigorosa das leis.Crimes impunesA delegada Gabriela Von Beauvais, da Deam do Centro, pede às transexuais que, em situação de agressão ou ameaça, procurem uma unidade especializada:— A mulher trans pode procurar a Delegacia de Mulheres. Dependendo do juiz, pode ser aplicada a Lei Maria da Penha.Claudio Nascimento, que até fevereiro era coordenador do programa estadual Rio Sem Homofobia, diz que vinha negociando dentro do governo a inclusão, nos registros de ocorrência, do campo LGBTfobia e dos subcampos transfobia, homofobia, bifobia e lesbofobia. Procurada, a Polícia Civil não respondeu sobre o andamento da proposta. Ele acusa uma naturalização dos crimes contra pessoas trans, que se reflete até mesmo na hora de colher provas e buscar testemunhas. E coloca o dedo na ferida.— A pior violência contra as transexuais continua sendo o assassinato com requinte de crueldade. São facadas, socos e tiros em locais fatais. E falta solidariedade das pessoas para testemunhar em favor de uma trans. Há crimes impunes, porque ninguém viu. Isso tem a ver com a ideia de que se uma trans é morta é porque teve culpa — diz Claudio, que defende a classificação dos assassinatos de mulheres trans como feminicídio.Na prefeitura, o coordenador especial da Diversidade Sexual, Nélio Georgini, criou um sistema via WhatsApp para que, quando houver denúncia de violência contra transexuais, o superintendente municipal da área seja avisado e acompanhe a polícia até a vítima. Hoje, sua assessora é uma mulher trans, Beatriz Cordeiro:— A transexual assume a vulnerabilidade da mulher, mas com o preconceito em dobro.Fonte: Agência Patrícia Galvão
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