Prefeitura do Rio e IPHAN querem despejar a Ação da Cidadania para construir museu (*)A vida de entidade do terceiro setor não é fácil. Se para a Ação da Cidadania - entidade histórica que ajudou a alimentar mais de 15 milhões de pessoas no país durante sua campanha da fome e que foi pedra fundamental para o surgimento do que é hoje o Bolsa Família que sustenta dezenas de milhões de brasileiros nas regiões mais pobres deste país - as dificuldades são imensas, imagine para aquela liderança comunitária ou aquela entidade pequena de defesa de direitos humanos. Desde sua fundação, pelo nosso saudoso Herbert de Souza, o Betinho, a Ação da Cidadania se orgulha de ter se mantido ao longo do seus quase 25 anos de existência uma entidade apartidária, de diálogo amplo e responsável por projetos de extrema importância para o país, independente de governos. Sempre dialogamos com todos os governos, sejam eles alinhados à direita, esquerda ou centro, e não é à toa que durante os governos Itamar, FHC, Lula e Dilma, sempre tivemos diálogo aberto para nossas propostas e articulações em torno de temáticas de melhoria das condições da população mais necessitada do nosso país. Em 2014 comemoramos a saída do Brasil do mapa da fome, feito que os próprios ex-presidentes fizeram questão de relembrar, começou com o Betinho e a Ação da Cidadania. E como toda ONG séria, como costumamos dizer por aqui, procuramos lutar por uma utopia de forma que nosso trabalho não fosse mais necessário. E em 2014, chegamos de certa forma a esta utopia. É neste momento que a Ação da Cidadania começa e se repensar e planejar seu futuro. Podíamos encerrar nossas operações e comemorar o feito como um trabalho realizado com sucesso, ou podíamos olhar pra frente para novas utopias ainda muito necessárias para nosso país. Foi uma construção importante para nós. Olhamos para dentro e para fora. Trouxemos gente de fora para ajudar a repensar este futuro junto com nossos comitês e representantes de outras entidades de outros movimentos sociais que sempre trabalharam muito próximos a nós. Ouvimos muito. Debatemos muito. Tudo em um processo colaborativo e construtivo. Ao fim de 2015 chegamos ao modelo que a Ação da Cidadania iria ser daqui pra frente. Fizemos um processo profundo de re-adequação da entidade para esta nova visão. Modernizamos o estatuto e a gestão. Elegemos novo conselho e direção executiva, que hoje honrosamente eu ocupo, e começamos a preparação para que este novo ciclo da Ação da Cidadania, que tem como um foco muito claro em ações para a juventude em situação de vulnerabilidade, especialmente a juventude negra, atuando em dar protagonismo a estes jovens, seja em cultura, cidadania ou empreendedorismo/inovação. Queremos ajudar estes jovens a serem diretores de seus espetáculos, produtores, protagonistas, lideranças comunitárias, referências em temas sociais e empreendedores donos de seus negócios e fundadores de projetos inovadores. Queremos estes jovens donos de seu próprio futuro. Durante os últimos 17 anos (a Ação comemora 25 anos em 2018), a Ação da Cidadania ocupa o Galpão Docas Pedro II, popularmente conhecido como Galpão da Cidadania, na região portuária do Rio de Janeiro. Entramos em 2000 com o apoio à época da Dra. Ruth Cardoso, do Comunidade Solidária, e mulher do ex-presidente Fernando Henrique que solicitou a cessão do espaço para a Ação da Cidadania dar continuidade aos seus projetos de arrecadação de alimentos e posteriormente brinquedos para a campanha Natal Sem fome além de projetos sociais e culturais. Entramos em um galpão totalmente arruinado, com o teto caindo, mato dentro do galpão, estrutura precária e com todos os funcionários da Ação pegando dengue durante este processo. Através de projetos criados e articulados pela Ação da Cidadania, conseguimos um projeto com a Petrobrás e diversos outros parceiros da Ação da Cidadania para reforma do Galpão. Na época, a região portuária era totalmente abandonada, zona altamente degradada e nenhuma outra empresa ou entidade queria se aventurar no porto, nem de graça. Aceitamos esse desafio e hoje, o que se vê no galpão, totalmente reformado, é obra de toda a força e capacidade da Ação da Cidadania que envolveu, além do apoio da Petrobrás, o esforço de toda a comunidade da Ação da Cidadania e seus mais de 200 comitês no estado. Desde o fim da obra, a Ação mantém o espaço de forma totalmente autônoma, sem qualquer ajuda de governos ou de entidades ligadas a eles como por exemplo o IPHAN ou a Secretaria Municipal de Cultura. Desde o início da entrada no espaço a Ação da Cidadania sabia que este galpão era obra do histórico André Rebouças, primeiro engenheiro negro brasileiro, e personalidade muito importante para o movimento negro brasileiro e para o Brasil. A reforma deste espaço foi, também, uma homenagem a ele. Se não tivéssemos entrado à época no galpão, hoje este espaço não existiria e todo seu valor histórico teria sido perdido. Foram investidos ao longo destes 17 anos para obra e manutenção do espaço, em torno de 15 milhões de reais a valores de hoje, todos arrecadados pela própria Ação em parcerias com empresas ou em projetos desenvolvidos por ela. Quando as obras do porto começaram para as olimpíadas, comemoramos. Achamos que a revitalização da zona portuária era importante para a cidade, apesar de discordarmos com a forma como o entorno foi deixado de lado e como o processo de gentrificação teve pouca atitude do governo para redução do impacto social. Mas de uma certa forma, o Galpão da Cidadania funciona como um Oásis nesta imensa selva de pedra gerada nesta nova fase do porto do Rio. É aqui que entidades sociais e culturais encontram espaço para realização de seus projetos em parceria com a Ação da Cidadania, e é aqui também que a Ação da Cidadania realizou centenas de projetos sociais e culturais ao longo destes 17 anos beneficiando milhares e milhares de pessoas que passaram por este espaço onde se identificam e onde se enxergam acolhidos, muito diferente de todo o resto da zona portuária. Um destes projeto foi o musical André Rebouças, realizado no galpão, e que contava a história e trajetória do engenheiro negro, mais uma das homenagens da Ação da Cidadania à história do armazém Docas Pedro II. E foi muito antes deste galpão ser reconhecido pelo governo como espaço importante para a cultura afro-brasileira, que a Ação da Cidadania criou um projeto para a criação de um museu da Diáspora Africana no galpão. Um projeto que, por iniciativa da Ação da Cidadania, visava trazer para o público um pouco da história do espaço e também da Diáspora brasileira e internacional, em um espaço simbólico que a Ação reconhece há décadas como importante para esta cultura. Enfrentamos, desde a reforma do porto, pressões gigantescas por empresas e grupos privados querendo transformar o galpão em shoppings, cinemas, prédios e tudo mais. Nos ofereceram de tudo que se possa imaginar. Em um dos casos, nos ofereceram sustento eterno para a Ação da Cidadania, com oferta de milhões por ano, em troca de nossa anuência junto aos órgãos federais para que cedêssemos o espaço para a construção destes projetos. Resistimos duramente. Mesmo com todas as dificuldades, lutamos para manter o espaço com um propósito de acolhimento e esperança para as pessoas da periferia da nossa cidade. Um espaço de pertencimento que fosse para eles e com eles. É verdade, através do aluguel do espaço para eventos, achamos uma forma de nos manter sustentáveis e não subservientes a governos e empresas, como diversas ONG’s tem tido que fazer para se manter vivas, abdicando de seu propósito e lutas para virarem entidades prestadores de serviços sociais para governos e empresas. Foi desta forma que conseguimos, sem qualquer ajuda de governos e suas entidades, manter tudo de pé e o galpão intacto, e resistirmos à especulação muitas vezes intimidadora e com apoio de gestões anteriores de prefeitos e governos. Desde nossa entrada no galpão em 2000, lutamos pela cessão definitiva do espaço. Cessão essa fundamental para que possamos criar projetos perenes, estruturantes e que consigam nos dar sustentabilidade para manter o espaço e realizar projetos sociais e culturais, sem a necessidade de alugar o galpão para projetos que não estejam alinhados com nossa missão. Preparamos nos últimos anos projetos ambiciosos, estruturantes que contemplam a nova linha de ação da entidade como é o projeto do Campus Bantu, um hub de inovação e empreendedorismo inclusivo, dando, finalmente, oportunidade para centenas de jovens da periferia empreenderem e inovarem em um ambiente de ponta, em uma região central da cidade e com parcerias robustas que viabilizariam um projeto único no mundo, referência internacional de inclusão e diversidade. Realização de eventos culturais e sociais de grande mobilização como o Fórum Social Local que reunirá milhares de jovens da região metropolitana do Rio de Janeiro para um evento único no país e com processos locais de sensibilização e formação de jovens lideranças comunitárias beneficiando centenas de comunidades em que a Ação da Cidadania já atua há décadas, dentre diversos outros. Por fim, mas não menos importante, o Museu da Diáspora Africana, que consideramos essencial para este espaço. Tirar do papel nosso projeto de mais de 10 anos é uma questão de honra para a Ação da Cidadania. Porém, sem a cessão definitiva pleiteada há mais de 15 anos, nenhum destes projetos estruturantes é possível. Ninguém vai investir milhões em um projeto como estes aqui no galpão se, do dia pra noite, algum governo resolve nos tirar daqui do nada. E é exatamente o que está acontecendo neste momento. Depois de quase duas décadas de luta contra a degradação do espaço, a especulação imobiliária, empresários “amigos” de alguém e pressões de toda forma, estamos sob ameaça de termos de sair do galpão. O IPHAN e a Secretaria Municipal de Cultura em uma decisão totalmente autoritária e sem diálogo decidiram pela nossa saída do galpão para construírem o projeto que nós estamos nos propondo a fazer há 10 anos: um museu de memória a cultura negra. A luta com o IPHAN vem de alguns anos. A Ação da Cidadania foi totalmente favorável ao tombamento do galpão e da candidatura do cais do Valongo ao patrimônio da UNESCO. Comemoramos este fato. Porém, o IPHAN, estranhamente, incluiu dentro do seu pedido à UNESCO que o galpão da Ação da Cidadania fosse retomado e transformado em um museu com outros parceiros sem a Ação da Cidadania, pedindo assim a cessão do espaço para o IPHAN que seria repassado a um parceiro para executar o projeto do Museu. Tudo isso sem NUNCA ter ouvido ou consultado a Ação da Cidadania e sem deixar claro quem são esses parceiros. Não temos até hoje, apesar de pedidos insistentes ao IPHAN do Rio de Janeiro, que a cada vez oferece uma desculpa diferente, as informações do que foi tombado no galpão. Não sabemos, por exemplo, se o que foi tombado foi a fachada, o entorno ou a parte interna. Não sabemos, também, se tombaram o projeto de forma correta, sabendo por exemplo, que o galpão foi totalmente remodelado na época da ditadura militar, pois o galpão virou um estacionamento de veículos blindados, tendo tido suas fachadas e estruturas internas profundamente alteradas. Também não sabemos se o processo de tombamento cita que toda a parte interna do galpão não reflete a obra do André Rebouças, já que além da obra do governo militar, o nosso projeto de reforma foi efetuado pelo arquiteto Helio Pelegrino, que modificou profundamente a arquitetura interna do espaço. Cada tijolo, arco e arte dentro do galpão são obra do Helio Pelegrino, no projeto de revitalização do espaço realizado pela Ação da Cidadania. Se houve tombamento desta parte como parte da obra do André Rebouças há erros históricos gravíssimos. Tentamos de todas as formas contato com o IPHAN. O do Rio, através da Monica da Costa, serviu apenas para nos dizer que tudo isso era do IPHAN de Brasília, que ela não tinha como intervir nisto. Em Brasília, a Superintendente Kátia Bogea, apesar de insistirmos há meses para nos receber, sequer responde nossos pedidos de audiência ou resposta às nossas indagações sobre não estarmos envolvidos neste processo e os motivos de ela se recusar a nos receber são obscuros. Nos chegou inclusive o absurdo discurso de que a Ação da Cidadania estaria usando o nome do Betinho em vão. Em recente aproximação da SMC, a secretária Nilcemar Nogueira nos procurou para propor a criação, em conjunto, do museu da Escravidão, posteriormente renomeado Museu da Escravidão e Liberdade. Como tínhamos uma proposta semelhante, nosso projeto do Museu da Diáspora Africana, obviamente achamos por bem juntar os projetos para evitar esforços duplicados em um projeto com o mesmo propósito. Em uma primeira reunião, a secretária nos deixou felizes por ter um discurso de construção em conjunto, respeitando a Ação da Cidadania e inclusive divulgando publicamente através de sua assessoria de imprensa no O Globo a parceria firmada. Disse inclusive em sua fala na reunião que caso a Ação não quisesse criar o museu com a SMC, que ela procuraria outro lugar. Obviamente, fomos à favor de criar algo em conjunto, até porque por conta do nosso projeto já ter 10 anos, já temos parceiros com recursos prontos para apoiar e com isso reduzir custos do estado, já combalido com a atual crise que o país passa. Isso está claramente refletido na dificuldade que a própria SMC tem para manter apoios a projetos e espaços culturais atuais, aos quais tem demitido pessoal e reduzido os já parcos recursos. Passado um mês, depois de uma profunda falta de diálogo e informações distorcidas, nos foi informado que não existe e nunca existiu diálogo para a manutenção da Ação da Cidadania no Galpão, indo de encontro direto as palavras ditas pela secretaria em reunião em que estávamos presentes eu, Daniel Souza (presidente do conselho da Ação) e Adair Rocha (presidente de honras da Ação). A posição da SMC hoje é: remover a Ação da Cidadania do Galpão para criar o Museu da Escravidão e Liberdade, sendo sua gestão entregue a uma OS em um museu do tamanho do museu do Amanhã. Surrealmente, nos foi oferecido pela SMC o espaço do Centro Cultural José Bonifácio, centro de referência da cultura afro-brasileira, e a primeira escola pública da américa latina, reaberto com o intuito de preservar a cultura afro brasileira no país. Ou seja, usando para nossa remoção o discurso de que este espaço é histórico para a cultura afro-brasileira, nos oferecem um outro espaço histórico para o movimento negro nacional, para abrigar a Ação da Cidadania. Além disso, um espaço 10 vezes menor do que o espaço ocupado, reformado e mantido hoje pela Ação que não atende aos projetos que passamos anos desenhando e articulando apoios e parcerias. Descobrimos também que, em acordo com o IPHAN, a SMC pediu diretamente à SPU a cessão do Galpão, sem nos informar, passando por cima do diálogo que estávamos tendo com a secretaria e que essa cessão já foi aprovada e encaminhada para a SPU do Rio, e que nós seremos notificados em breve para liberar o imóvel. Vivemos tempos sombrios. Tempos em que a autoridade não tem se importado com questões sociais e que projetos pessoais estão acima de projetos históricos no Brasil. Não estamos disputando a relevância da Ação versus a relevância do Cais do Valongo. Sabemos claramente que cada um tem sua importância histórica para o país e para o território. O que estamos lutando é pela convergência, pelo diálogo e especialmente pela valorização do território que a Ação, ao longo destes 17 anos, ajudou a revitalizar, construir e manter, sozinha. Sempre quisemos o museu aqui. Temos parceiros para viabilizá-lo. Nos comprometemos com isso nos diálogos com a SPU. Porque a prefeitura e o IPHAN então querem nos remover do espaço se o objetivo é convergente e sem o estado ter que assumir estes projetos enquanto a cultura carioca amarga dificuldades em todas as áreas por falta de recursos? Este é o interesse público? Não fomos nós que deixamos de dialogar, mas um diálogo que começa com as imposições de que nós não ficaremos no galpão seja qual for o projeto do Museu e que a alternativa é irmos para um lugar 10 vezes menor e que nós teremos que estruturar e reformar este novo espaço, não é um diálogo, é uma afronta. Mas, como sempre, não fugiremos à luta. Iremos até as últimas consequências para que uma decisão autoritária como esta não destrua 25 anos de história da Ação da Cidadania, seu legado e principalmente seu futuro. Se é o que restou, é o que faremos. Se perdermos, a história registrará que foi neste governo atual que a Ação da Cidadania sucumbiu, e essa cicatriz marcará para sempre estes gestores. Betinho vive nos nossos corações, e nos deixou com a mensagem ao fim de sua vida: "agora é com vocês". Vamos à luta. #MexeuComaAçãoMexeuComigo #FicaAçãoNotícia publicada em 12.05.2017(*) Fonte: Ação da Cidadania
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