Apesar da previsão em lei de três casos em que a interrupção de uma gravidez não é criminalizada no Brasil (quando decorre de estupro ou é constatada anencefalia no feto ou risco de vida à gestante), exercer esse direito ainda não é uma realidade no país, em que a falta de informações predomina e revela um cenário de negligência do Estado e violação sistemática dos direitos das mulheres.A conclusão é da organização não-governamental de direitos humanos Artigo 19, que lança nesta segunda-feira (15/05) o relatório “Os 5 anos da Lei de Acesso à Informação – uma análise de casos de transparência” e realiza um seminário em São Paulo para debater os impactos da legislação.Segundo informações da organização Artigo 19, o estudo faz um balanço sobre como a Lei de Acesso à Informação (LAI) vem sendo aplicada desde que entrou em vigor, em 16 de maio de 2012, pontuando os principais avanços e desafios para sua implementação pelos órgãos públicos brasileiros. A publicação traz também cinco casos emblemáticos nos quais a transparência foi tema central para o exercício de direitos humanos, incluindo um que discute a falta de informações públicas disponíveis sobre o aborto legal no Brasil.A partir dos pedidos de informação feitos pela Artigo 19 sobre os serviços de atendimento para a realização do procedimento de interrupção legal de uma gestação e também com base em dados disponibilizados nos sites do Ministério da Saúde e outros órgãos públicos, o relatório constata a ausência de informações públicas sobre o tema, ressaltando que se trata de uma violação aos direitos das mulheres que demonstra a omissão do Estado sobre um tema crítico de saúde pública no Brasil. A publicação traz também entrevistas com especialistas que comentam os achados da pesquisa.Confira abaixo alguns trechos sobre: a questão do aborto legal extraídos do relatório e acesse aqui a publicação na íntegra.“No Brasil, há três situações em que a mulher é considerada apta a buscar um aborto legal. Duas delas estão previstas na legislação brasileira desde 1940 e se referem a mulheres vítimas de estupro e casos em que há risco de vida comprovado para a gestante. Apenas cinco anos atrás, uma terceira situação foi alvo de intenso debate no Superior Tribunal Federal (STF) no ano de 2012, culminando com a descriminalização de abortos em casos em que o feto é anencéfalo, ou seja, não tem condições de sobreviver fora do útero materno. Tendo em vista a existência do Serviço Único de Saúde (SUS), mulheres que se enquadram nessas circunstâncias deveriam ser acolhidas e encaminhadas com segurança para o procedimento. Em princípio, como é considerada inconstitucional a tipificação de crime para estas condições de interrupção de gestação, não deveria haver obstáculos para o acesso das mulheres a este serviço. Alguns fatores, no entanto, extrapolam aquilo que é previsto na própria legislação. Entre eles, o direito à informação ganha centralidade.Na prática, 77 anos depois da inclusão das primeiras exceções no Código Penal, a possibilidade da interrupção da gestação ainda não pode ser classificada como um direito plenamente garantido às mulheres. E a violação do acesso à informação é um dos pilares estruturais desta situação, considerando que para acessar esse serviço, é necessário, no mínimo, ter conhecimento dos procedimentos e locais de atendimento. Dada a situação de vulnerabilidade em que pode se encontrar uma mulher que precisa ter acesso a esse serviço, é preocupante que as informações não estejam em locais de fácil acesso e que as respostas oficiais remetam a questões formais.”Lacuna entre dados públicos e a realidade“Com base em evidências anteriores sobre as falhas na divulgação de informações e dados por meio da Transparência Ativa dos órgãos públicos, em julho de 2016, a ARTIGO 19 usou a Lei de Acesso à Informação para enviar solicitações ao Ministério da Saúde, com o objetivo de questionar quantos eram e onde estavam localizados os serviços de atendimento ao aborto legal no país. Entre as perguntas estavam: Quantos são e onde estão localizados; Em que endereço eletrônico essas informações estão disponíveis para consulta; Quais estados não possuem serviços de atendimento ao aborto legal; Qual é o procedimento que vítimas de violência devem seguir para realizar um aborto legal? e Qual o cronograma de instalação de novos serviços de atendimento?.Na prática, há evidências de que os serviços estão mal distribuídos pelo território nacional: em estados como Roraima, que concentra o maior número de estupros por cada cem mil habitantes, por exemplo, não existe nenhum serviço que realize o procedimento, de acordo com cadastros divulgados anteriormente pelo próprio ministério. A ARTIGO 19 também perguntou ao Ministério da Saúde como as mulheres em busca de um aborto legal devem proceder em casos como esse. O órgão respondeu que caso o serviço não esteja sendo disponibilizado em sua localidade, deve-se procurar o Ministério Público para denunciar a ausência de atendimento, bem como comunicar o Ministério da Saúde através da Ouvidoria do SUS, telefone número 136.Já em relação às unidades de saúde cadastradas para atender às mulheres aptas a realizar um aborto legal, o órgão respondeu que "todos os serviços hospitalares com serviço de ginecologia/obstetrícia devem atender as mulheres que demandam por abortos legais", corroborando com a previsão da constituição federal e com o atendimento universal e igualitário nas unidades de saúde. Apesar da resposta geral, o ministério também adicionou um dado segundo o qual atualmente 71 estabelecimentos de saúde estão classificados como Referência para Atenção à Interrupção de Gravidez nos Casos Previstos em Lei e 227 estabelecimentos de saúde realizaram aborto legal em 2015 no Brasil.O resultado do estudo mostrou um verdadeiro abismo entre os dados divulgados pelo poder público e a realidade dos hospitais públicos do país. No total, apenas 37 unidades de saúde confirmaram estar aptas a realizar abortos legais. Confirmando um grande contraste nos dados públicos, duas unidades cadastradas na lista divulgada pelo ministério informaram não ter realizado nenhum aborto. A pesquisa apontou também que os serviços de atendimento ao aborto legal estão concentrados em capitais e majoritariamente na região Sudeste. Além disso, há sete estados brasileiros que não contam com sequer uma unidade de referência preparada para acolher as mulheres e realizar o procedimento.”Mulheres negras são as mais impactadas pelas violações“Jurema Werneck, médica e doutora em Comunicação e Cultura, antes coordenadora da ONG Criola e agora diretora da Anistia Internacional, adiciona um ponto importante sobre a diferença do acesso à informação entre mulheres brasileiras. Em entrevista para a Artigo 19 no dia 23 de dezembro de 2016, ela afirmou que ‘mulheres negras sofrem por serem vítimas diretas de informações enviesadas e manipuladas’. A reflexão faz pensar sobre o impacto maior da violação do acesso à informação sobre aborto legal para mulheres negras, maioria das usuárias no SUS, que acabam também representando maioria de mulheres que morrem em função de complicações por procedimentos de abortamento mal realizados, em clínicas clandestinas.”Tabu e criminalização“Gabriela Rondon, advogada e pesquisadora do Instituto Anis, ressalta que, no que diz respeito a aborto, a questão do acesso à informação está envolta em um marco geral de análise do tema pela via do tabu e da criminalização. E essa construção de discursos impede o debate público de fato.Neste sentido, tanto a subnotificação de dados – como ocorre no caso dos abortos ilegais, apenas registrados em caso de complicações identificadas como atendimentos no SUS – quanto a obstrução ao acesso na outra ponta, ou seja, na própria Transparência Ativa e Passiva, fazem parte deste contexto e do lugar a que o tema é submetido no país."O tabu e as questões morais e religiosas que permeiam o tema criam uma atmosfera criminal, e não de saúde pública, que seria o correto. Com isso, nem sequer os abortos legais, que incluem mulheres que sofreram situações de violência ou de risco à saúde, são acolhidos de fato na maior parte da rede de saúde. A situação é muito grave e o acesso à informação é muito central em diferentes aspectos".Saúde pública“Vale ressaltar que os números de abortos legais escondem ainda uma realidade muito mais abrangente. A Pesquisa Nacional de Aborto, realizada duas vezes, em 2010 e 2016, é uma iniciativa da Anis Instituto de Bioética e da Universidade de Brasília para gerar dados sobre aborto no Brasil. Os resultados mais recentes, de 2016, mostram que houve meio milhão de abortos no Brasil em 2015, a partir do mesmo resultado de que uma a cada cinco mulheres, aos 40 anos de idade, fez aborto. Como a maioria deles é feita de forma ilegal, a pesquisa conclui que este é o maior problema de saúde do país, questionando a negligência do Estado.A pesquisa critica o contexto de criminalização do aborto, que limita a busca de informações pelas mulheres, que seriam necessárias para a realização segura do procedimento.Enquanto isso, o não cumprimento do direito de acesso à informação pública sobre procedimentos de aborto impacta a circulação geral de informações sobre o tema, limitando as possibilidades de participação popular, especialmente pelas mulheres, diretamente afetadas pela questão.”.Fonte: Agência Patrícia Galvão
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