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Pesquisadora de gênero denuncia ‘movimento neoconservador’

“Após o fim da ditadura e a promulgação de Constituição de 1988, quando havia a sensação de que estávamos indo em direção à afirmação de direitos relacionados a gênero, assistimos, nos últimos anos, a um contramovimento que instalou o que chamo de neoconservadorismo. É mais que a volta do conservadorismo, é um movimento declarado, que ganha visibilidade porque está instalado no Congresso Nacional”, afirmou, na tarde desta quarta, 19, a antropóloga e pesquisadora Lia Zanotta Machado, da Universidade de Brasília (UnB).Ela participou de mesa sobre Gênero, desigualdades, educação e justiça, ao lado das também antropólogas e professoras Regina Facchini Pagu, da Unicamp, e Rozeli Porto, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.Ainda de acordo com Lia Zanotta, o movimento teve origem no Legislativo, para depois ser encampado pelo Executivo. E uma de suas características é a manipulação política da religião. Ela lembrou que, há pouco mais de dez anos, em reação a proposta do governo federal de pôr em debate mudanças na legislação sobre o aborto, formaram-se várias frentes parlamentares “em defesa da vida e a favor da família, que é tratada como fator de estabilização da sociedade. Os deputados falavam em nome da salvação religiosa para defender direitos desiguais”.A pesquisadora leu trechos de textos e discursos em que pastores com assento no Congresso citaram a Bíblia para definir papéis desiguais para maridos e mulheres, sob ameaça da destruição da família e da nação. “A família tem sido usada como base do discurso contra o aborto e os homossexuais”, disse Lia Zanotta, que é presidente da Associação Brasileira de Antropologia.Ao comentar que a Lei Maria da Penha segue como alvo de contestações, ela defendeu o caráter não punitivo da legislação. “A Lei dá proteção às mulheres, por meio de medidas cautelares inéditas e do encaminhamento de agredidas e agressores ao apoio psicossocial. A aplicação da lei pelo aspecto punitivo se dá, por vezes, em razão de falta de percepção por parte de julgadores ou por falta de recursos”, afirmou a pesquisadora. “Ela funciona bem, impondo limites, mas acolhendo agressores e vítimas.”Para Lia Zanotta, no caso de violência doméstica contra as mulheres, é preciso tomar cuidado para não se buscar a conciliação familiar a qualquer custo. “Essa não é a solução para todos os casos. A Lei Maria da Penha determina que proteger a família é proteger todos os membros da família”, concluiu a pesquisadora.Ideologia de gêneroAo iniciar sua fala, Regina Pagu exibiu números da violência de gênero: a cada quatro minutos, uma mulher procura o SUS por causa de agressão sofrida; 500 mil mulheres são estupradas por ano no Brasil; dois terços dos participantes de paradas LGBT declaram já ter sofrido algum tipo de violência. A professora da Unicamp ressaltou que políticas de gênero são criadas para combater a violência, mas que esse esforço gerou, como reação, a categoria acusatória “ideologia de gênero”.Depois de historiar a abordagem das questões de gênero nas políticas de educação, Regina lembrou que o período entre 2014 e 2015 foi marcado por uma articulação política eficiente de bloqueio às propostas de discussão sobre o respeito à diversidade sexual nas escolas. “Opôs-se uma ‘cidadanização’ da sexualidade a uma cidadania religiosa; o cidadão ao crente. Após décadas de avanços na questão da igualdade de gênero, surgiu um ativismo católico conservador, compartilhado por outras igrejas, que introduziu a acusação à ideologia de gênero e à ‘cultura da morte’, em referência ao aborto.”Segundo Regina Pagu, os evangélicos ascenderam demograficamente e ganharam representatividade política, e a moral religiosa tornou-se fator central da atuação de deputados quanto a direitos reprodutivos e sexuais. “A CNBB [Confederação Nacional dos Bispos do Brasil, que representa a Igreja Católica], por sua vez, passou a defender o direito da família de definir as bases para a educação, pregando a união estável entre homem e mulher e a identidade entre o povo brasileiro e a família tradicional.”A pesquisadora também relatou o caso de uma cartilha apócrifa distribuída em igrejas e outros locais e publicada na internet há alguns anos: o texto tratava a ideologia de gênero como um “perigo” e afirmava, entre outras coisas, que as crianças precisariam “inventar” novas identidades de gênero. “Esse é um exemplo de mobilização de pânico moral, que chega a lançar mão de argumentos do âmbito do direito”, afirmou Regina Pagu.AbortoPesquisadora das questões relacionadas ao aborto, Rozeli Porto, da UFRN, reforçou que as tendências legislativas no país são conservadoras, acentuam a desigualdade de gênero e põem em xeque direitos conquistados. “Os discursos no Parlamento têm tons impositivos, moralistas e religiosos”, disse Rozeli. “Não por acaso, a palavra ‘família’ foi a mais proferida nas falas do Congresso no impeachment de Dilma Rousseff. E os mesmos defensores da família nuclear são os que criam obstáculos às políticas públicas por mais direitos e agem contra o aborto”, completou a pesquisadora, deixando claro que não fazia apologia à interrupção da gravidez, apenas tratava de direitos fundamentais das mulheres.Nos anos 1990 e no início dos anos 2000, segundo Rozeli Porto, havia discussão sobre o cuidado com a saúde reprodutiva das mulheres, mas, em meados da década passada, iniciou-se campanha fundamentada em narrativa contrária à legalização do aborto, mesmo nos casos de estupro e de feto anencéfalo.A professora da UFRN afirmou, citando informações da Câmara dos Deputados, que, entre 1991 e 2017, foram apresentados 51 projetos de lei que têm o aborto como tema, mais de dois terços contrários à prática. Esses projetos foram propostos por 74 homens e 11 mulheres. “É uma legislação androcêntrica, escrita e validada por homens, que não representa as demandas da população feminina e impõe a maternidade como destino único para as mulheres.”Ainda de acordo com Rozeli Porto, a criminalização não diminui o problema, porque força o aborto clandestino e inseguro, já que as mulheres recorrem a ambientes não hospitalares. “As mulheres acabam utilizando instrumentos e medicamentos que causam danos à saúde ou a morte. A proibição não vai mudar o quadro de meio milhão de abortos por ano no Brasil”, disse a professora.Fonte: UFMG

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