Por Maria Emília Lisboa Pacheco*A Lei Orgânica da Segurança Alimentar e Nutricional (nº11.346 de 15 de setembro de 2006) é um conquista cidadã, fruto de lutas e mobilização social. Guarda um significado estratégico ao articular dimensões sociais, culturais, econômicas, ambientais e culturais como política de estado para a garantia do Direito Humano à Alimentação Adequada.É importante relembrar o significado de sua abrangência e regulamentação em decreto (nº 7.272 de 25 de agosto de 2010), que define as diretrizes da política nacional, incluindo: a ampliação das condições de acesso ao alimento com base na produção da agricultura tradicional e familiar agroecológica e a conservação da biodiversidade; a garantia do acesso à água; a coordenação de ações de segurança alimentar e nutricional voltadas para povos indígenas, quilombolas e demais povos e comunidades tradicionais; a promoção da saúde e da nutrição; a educação alimentar e nutricional, respeitando-se as múltiplas características culturais do país, e ações no plano internacional, em consonância com o princípio do Direito Humano à Alimentação Adequada.Programas e políticas intersetoriais implementados no período 2002 a 2015 buscaram concretizar essa visão, mesmo que em meio a profundas contradições de um país que historicamente não rompeu com as estruturas que reproduzem a injustiça social e ambiental. E como um dos países mais desiguais do mundo, apresentou melhora dos indicadores de segurança alimentar e saiu do Mapa da Fome.Como escolas da cidadania, organizações da sociedade civil e movimentos sociais, nos espaços autônomos de mobilização e articulação e nos espaços de consertação com o governo, como o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), contribuíram para a ampliação da esfera pública e influenciaram na elaboração de políticas. Apresento alguns exemplos.Romperam velhos paradigmas, ao propor a incorporação da perspectiva da convivência com o semiárido nos Programas “Um milhão de cisternas” (P1MC) e “Uma Terra e Duas Águas” (P1+2), liderada pela Articulação do Semiárido Brasileiro (ASA), em oposição à visão até então dominante do combate à seca, alimentada historicamente pela indústria da seca e pelas relações clientelistas. O reconhecimento internacional e sua premiação recente como medida contra a desertificação evidencia a repercussão de seus sentidos para além de nossas fronteiras.O grito de milhares de mulheres na Marcha das Margaridas ecoou, quando ao contestarem o modelo de agricultura sob a hegemonia do agronegócio, expressaram a reivindicação de uma Política Nacional de Agroecologia. Foi reafirmado o papel da agricultura familiar e camponesa e do agroextrativismo na produção da “comida de verdade” combinada com o manejo e conservação de nossa biodiversidade. Construída por uma miríade de organizações sociais e movimentos que praticam a agroecologia reunidos na Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), apoiada pelo Consea, foi materializada no Decreto 7.794 de 20 de agosto de 2012.A inovação da proposta, nascida no Consea, do Programa de Aquisição e Alimentos que construiu a interação entre instrumentos da política agrícola com a política de segurança alimentar e nutricional, também deve ser relembrada e celebrada. Os agricultores familiares, e principalmente as mulheres agricultoras, através de suas formas organizativas fortaleceram-se como sujeitos de direitos e foram encontrando caminhos para a construção de sua autonomia econômica no enfrentamento das desigualdades de gênero.Mas como assegurar essas conquistas sem a garantia da terra e dos direitos territoriais? Por isso, reiteradas vezes nos posicionamos no Consea a favor da Reforma Agrária, que foi paralisada nesse período. Também nos manifestamos junto aos três poderes em relação às crescentes investidas contra os direitos territoriais dos povos indígenas, comunidades quilombolas e outros povos e comunidades tradicionais. Acompanhamos ainda com indignação as decisões de flexibilização das normas ambientais no Código Florestal, e de liberação dos agrotóxicos e transgênicos.A decisão do atual governo de limitar o aumento dos gastos públicos à variação da inflação por vinte anos já se faz presente nos drásticos cortes da Proposta da Lei Orçamentária de 2018, com a extinção do “Programa de Apoio ao desenvolvimento sustentável aos povos indígenas, comunidades quilombolas e outras comunidades tradicionais” e no corte de 11% do Programa Bolsa Família. Reduzir em 99,8% os recursos do PAA para Compra com Doação Simultânea, Aquisição de Sementes e Compra Direta, representa na prática o fim dessas modalidades que atendem aos segmentos mais pobres do campesinato. É inaceitável também que, em período de seca prolongada, sejam drasticamente reduzidos os recursos para os programas de convivência com o semiárido.O Brasil passa por uma grave crise política, econômica e ética que acarretou a ruptura do processo democrático e a violação de direitos inscritos na Constituição Federal. Há retrocessos manifestados nas propostas de mudanças da legislação trabalhista e previdenciária, na legislação agrária e ambiental, que somados aos cortes dos programas de segurança alimentar e nutricional levarão de volta o país ao Mapa da Fome.Por isso protestamos e nos indignamos. Não podemos aceitar que a Losan se transforme em um marco institucional vazio e arquivado pela história.*Maria Emília Pacheco é antropóloga, atua na Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase); foi conselheira e ex-presidenta da Consea. Fonte: Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional
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