Autor original: Paulo Henrique Lima
Seção original: Artigos de opinião
Compõem o movimento uma grande diversidade de forças sociais, unidas mais pelo sentimento de que assim não dá do que por reivindicações precisas. Os sindicatos de trabalhadores e as organizações camponesas, até outro dia pichadas de forças do atraso, aqui e lá fora, mostram a sua cara e a sua capacidade renovada de luta. Ao lado, jovens estudantes no que poderá ser mais uma das periódicas irrupções contestatárias que balançam valores, práticas e estruturas. Estão lá junto as incontáveis redes civis mundiais: do Greenpeace à campanha 50 Years is Enough ("50 Anos Bastam") contra a política das instituições de Breton Woods; do Friends of the Earth ("Amigos da Terra") ao ATTAC ( "Por uma Tobin Tax para a Ação Cidadã"); do DAWN ("Agenda de Desenvolvimento de Mulheres para uma Nova Era) ao Social Watch ("Observatório da Cidadania", na versão brasileira). Formadas por ativistas e agrupando ongs, no rastilho da própria globalização, as redes civis já carregam um boa dose de um novo internacionalismo emergente.
A onda montante de contestação já não pode ser vista simplesmente como algo na contramão da história. Quem parece estar na contramão hoje são os pregoeiros da globalização. O "Consenso de Washington" começa a se desfazer. A "Terceira Via", incapaz de ir substantivamente além dos marcos dados pela globalização, nem conseguiu emplacar. Seria um erro, porém, menosprezar a estrutura de poder e as políticas constituídas na era da globalização. Nem dá para desprezar a impregnação ideológica da globalização no cotidiano de nossas vidas. Estamos diante de uma gigantesca tarefa de reconstrução cidadã, de resultado totalmente imprevisível.
Por trás de todas as mazelas sociais da globalização, com a liberação quase irrestrita da tal mão invisível do mercado, a flexibilização de direitos e o desmonte de mecanismos nacionais de regulação do desenvolvimento, é preciso reconhecer o novo "locus" do poder e o modo como se forjam as políticas globais. O mais evidente é o poder quase sem limites e sem contrapeso das grandes corporações econômico-financeiras que, hoje, controlam relações e fluxos de riqueza em escala mundial. As grandes decisões sobre políticas que afetam as nossas vidas se deslocam de parlamentos e governos nacionais eleitos para instâncias como Comissão Européia, OCDE, Banco Mundial, FMI e, particularmente, a OMC - Organização Mundial do Comércio. A globalização repousa sobre estruturas pouco transparentes e longe do controle cidadão. A própria ONU, como organismo de concertação entre as nações, perdeu importância. Estamos diante de um problema de reconstrução da governabilidade democrática, problema tornado mundial. Velhas divisões e esquemas explicativos da dependência e da desigualdade no mundo, como Norte-Sul, ou Leste-Oeste, são insuficientes para dar conta de processos de concentração de riqueza e poder em curso hoje. A globalização forjou a sua própria (des)ordem mundial, levando a uma nova expansão capitalista selvagem.
A globalização tornou-se, também, uma referência ideológica. Fomos bombardeados por idéias e valores que justificaram e legitimaram os processos e as políticas globais, por mais destrutivas e excludentes que elas sejam. A hegemonia do pensamento econômico neoliberal, mais do que explicar processos, foi capaz de quebrar resistências e criar um clima cultural favorável à saúde dos negócios, mesmo à custa de empregos e direitos. O "Homo Economicus" de Davos (do Fórum Econômico Mundial que se realiza anualmente em Davos, na Suiça) foi apresentado como ideal. Talvez uma das idéias-força mais difundida e ouvida, mesmo não tendo nenhum fundamento lógico ou histórico, foi que a globalização é inevitável. Deixou-se de explicar o processo e a palavra "globalização" virou varinha mágica, causa e explicação para tudo.
Reconhecendo essas várias facetas do problema, para que seja possível uma outra "globalização" temos que voltar aos ideais e à força criativa do internacionalismo solidário, contemporâneo e contestatário do próprio capitalismo. Claro, um internacionalismo igualitário e participativo impregnado por novos desafios e valores. Trata-se de buscar mais equidade valorizando e tirando partido da diversidade que nos caracteriza como seres humanos, seja de gênero, idade, etnia ou cultura. Trata-se, também, de um internacionalismo que reconhece a necessidade de redefinir a nossa própria relação com o meio ambiente, buscando sustentabilidade democrática na apropriação e uso dos recursos comuns da humanidade. Trata-se, sobretudo, de radicalizar os direitos humanos, incorporando como direitos de cidadania planetária os direitos econômicos, sociais e culturais junto aos direitos civis.
Para que a onda de contestação emergente seja portadora do ideal internacionalista é preciso que as forças que o compõem assim o queiram. As sementes estão aí e estas forças são, sem dúvida, as que com maior legitimidade podem liderar um novo surto do internacionalismo humanista. Mas todos devemos contribuir. Esta é a grande tarefa para a cidadania neste começo de século.
* Sociólogo, Diretor do Ibase
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