Autor original: Paulo Henrique Lima
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A revisão Pequim+5 se iniciou em março de 2000 numa sessão de Comitê Preparatório sob responsabilidade da Comissão para o Status da Mulher e foi palco de negociações árduas. Dois dias antes de encerrar-se a Sessão Especial da Assembléia Geral, as negociações estendiam-se pela madrugada. Havia inclusive o risco de não se chegar a um documento final.
Tais circunstâncias não são surpreendentes. Em 1995, quando mais de 180 governos aprovaram uma Plataforma de Ação para promoção dos direitos humanos das mulheres, em Pequim, registraram-se fortes resistências por parte de governos islâmicos, de alguns outros países e do Vaticano - que é observador permanente das Nações Unidas. Estes atores levantavam obstáculos quanto ao direito igual de herança e de participação política e no que diz respeito às recomendações na área de saúde sexual e reprodutiva, sobretudo, ao aborto inseguro como problema de saúde pública e no que se refere aos direitos sexuais das mulheres. Além disto, em Pequim assim como nas demais conferências dos anos 90, as negociações sobre os direitos das mulheres foram sistematicamente contaminadas por tensões econômicas entre os países ricos e o mundo em desenvolvimento. Ou seja, os progressos em relação aos direitos das mulheres e à igualdade de gênero estiveram sempre sob o risco de se tornarem reféns das querelas Sul-Norte sobre questões macroeconômicas e acesso a recursos financeiros para o desenvolvimento.
Globalização e Política de Gênero
Para compreender a dinâmica que prevaleceu nas negociações políticas da ONU nos últimos anos é preciso examinar os impactos paradoxais da globalização sobre as mulheres e as relações de gênero. Ao longo das décadas de 1980 e 1990, em praticamente todos os países, as mulheres entraram massivamente no mercado de trabalho e passaram a auferir renda pessoal. Em muitos casos isto se deu sob a pressão de necessidades econômicas familiares, mas também foi uma resposta às novas oportunidades criadas pelo mercado de trabalho e por mudanças no plano das mentalidades. Para uma mulher, contudo, a entrada no mercado de trabalho não implica, automaticamente, que ela terá maior controle sobre a renda e sua vida. Pode na verdade significar mais encargos, mais trabalho e múltiplas responsabilidades. Ter renda pessoal freqüentemente aumenta o valor da mulher na família, mas, ironicamente, pode, às vezes, resultar num controle ainda maior da sua vida. Porém também pode significar maior mobilidade física e autonomia pessoal e a possibilidade de romper barreiras de gênero e patriarcais, ou outros mecanismos de controle masculinos.
Em tais condições, no plano do debate político global, as mulheres se vêem frente a uma ironia. Os que promovem a globalização da economia mundial são, freqüentemente, os mesmos que apóiam a ruptura com as ordens patriarcais tradicionais. Por outro lado, entre os que se opõem à globalização, há os que o fazem em nome de valores e sistemas de controle que oprimem abertamente as mulheres: a nação, a etnia, a religião. Não sem razão ao longo da década de 90, no âmbito do debate global, o desafio para as mulheres tem sido o de combinar agendas, justiça econômica, justiça de gênero e justiça erótica num mundo crescentemente globalizado, em que se assiste, simultaneamente, a proliferação de manifestações do conservadorismo moral.
As tensões do milênio
Embora estes elementos estruturais estivessem presentes em todas as conferências da década de 1990, foi possível atravessá-los a partir de pressão sobre os governos para a construção de pontes entre o Norte e o Sul em torno à igualdade de gênero e da grande capacidade advocacy das ongs de mulheres nos momentos de negociação. Entretanto, seriam mais difíceis as condições políticas que presidiram o processo Pequim+5. A crise econômica de 1997 a 1999 e os impasses da Organização Mundial do Comércio (OMC) em dezembro do ano passado em Seattle tornaram mais agudas as tensões Norte-Sul, proporcionando novo fôlego político ao Grupo dos 77 (G77) - agrupamento que reúne na ONU, desde a década de 70, os países em desenvolvimento. Tanto assim que desde a reunião da Comissão sobre o Status das Mulheres, em março de 1999, o Grupo dos 77 - à diferença do que havia ocorrido no Cairo (1994) e em Pequim (1995) - insistiu em se posicionar de maneira unificada sobre todas as questões, mesmo quando se sabe que não consenso interno ao grupo em relação aos temas de gênero, saúde e direitos sexuais e reprodutivos. Vale dizer que o G77 não atuou como bloco, exceto no debate sobre questões econômica, em Pequim.
Mas outros fatores correlacionados devem ser contabilizados. Na esteira do aumento dos preços do petróleo observa-se, desde o ano passado, um "renascimento" da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP) como ator global, o que reativa a plataforma política histórica dos países islâmicos. Em 1999, a operação da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) em Kosovo suscitou, em vários quadrantes, reações quanto a hegemonia militar dos Estados Unidos e da Europa. Nos últimos dois anos, vem se ampliando, inclusive no interior da ONU, críticas quanto aos impactos sociais do embargo econômico em relação à Cuba e ao Iraque. E, embora possa parecer um mero factóide, o episódio Elian vem afetando, desde o ano passado a relação entre Havana e Washington.
Estes eventos e seus efeitos colaterais desaguaram nos corredores e salas da ONU no momento em que se tratava de fazer um balanço da implementação de Pequim. Por um lado, isto se deve ao fato de que os avanços conseguidos a partir da Plataforma de Ação - embora possam ser considerados restritos, do ponto de vista das próprias mulheres - sinalizam para mudanças profundas e de longo prazo que desagradam, e muito, as forças regressivas. Ou seja, em 2000, a Plataforma de Ação se tornou, de fato, alvo de ataque das forças do conservadorismo moral. Caso na sua revisão não tivesse sido possível acordar um texto final estes setores poderiam afirmar que o consenso de 1995 estava rompido. Por outro lado, Pequim +5 se constituiu em "Cavalo de Tróia" a partir do qual as várias forças atuantes num cenário global crescentemente paradoxal se prepararam para despejar baterias verbais uns sobre os outros.
O ambiente institucional
Além de serem árduas as condições políticas, a revisão de Pequim+5 enfrentou problemas de outra ordem. Ao longo do processo, contava-se com pouca capacidade técnica e política por parte do Secretariado e do Burô da conferência. Registrou-se na primeira etapa ausência quase total das agências especializadas da ONU e de outros atores importantes - como o Banco Mundial - no tocante ao suporte técnico. A honrosa exceção foi o Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para as Mulheres (Unifem), que acompanhou de perto as negociações, desde março e mobilizou recursos humanos para garantir resultados positivos.
Durante o Comitê Preparatório, em março, identificou-se ainda grande desequilíbrio entre a experiência de negociação das delegações conservadoras (principalmente compostas por diplomatas experimentados) e as progressistas (principalmente formadas por pessoas enviadas das capitais nacionais, maioritariamente mulheres envolvidas nos mecanismos de promoção da igualdade entre gêneros, dos direitos humanos e do empoderamento das mulheres). As enviadas de capitais tinham, em geral, grande compromisso com os direitos das mulheres, mas pouca experiência no que se refere aos procedimentos e complexidades das negociações de alto nível na ONU.
Estes problemas seriam parcialmente superados na etapa final da negociação. A capacidade diplomática das delegações progressistas ampliou-se e na última semana (de 3 a 10 de junho) houve um investimento importante do sistema das Nações Unidas no sentido de chegar-se a um documento final forte e orientado para ação. Particularmente importante foi o apoio técnico oferecido pelo Fundo para Atividades de População (FNUAP) em relação à área de saúde e direitos em reprodução e sexualidade que rapidamente se tornou foco de grandes embates. Entretanto, o tempo perdido em março, continuou afetando, dramaticamente o ritmo e a qualidade das negociações.
Dinâmica de negociação
Em março, os impasses de Pequim+5 estiveram associados a lógica de coesão do Grupo dos 77 em relação a todos os temas. Isto porque a construção do consenso no interior do grupo era inviável e proscatinava o processo. Mas também porque um número importante de países que desde 1995 têm posições progressistas em relação a igualdade de gênero, não tinha voz própria. Entretanto, nas sessões intermediárias que tiveram lugar em maio, um grupo de países latino-americanos descolou-se do grupo no tocante aos temas sobre os quais não era possível obter consenso interno no G77 constituindo um grupo de facilitação das negociações que se autodenominou SLAC (Some Latin American Countries). O SLAC contou com a participação de todos os países da região com exceção da Nicarágua e de Honduras, sendo que, em relação a questões de saúde, Argentina e Chile se posicionavam individualmente em razão de pressões internas e legislação nacional que impedem posicionamentos mais ousados em relação a questões como aborto e sexualidade.
Em junho, o SLAC seria acompanhado em sua postura mais aberta pelo México (que não é membro do G77), Caribe, África do Sul e o grupo da África Austral conhecido como SADC (South Africa Development Commission), alguns outros países africanos - como Camarões, Gana e Quênia - e, em certos temas, pela Índia. A emergência destas novas vozes alterou radicalmente a dinâmica do debate possibilitando que se conseguisse chegar a um documento de consenso.
No que se refere aos conteúdos que foram objeto de controvérsia, continuaram em pauta os "temas quentes" de 1995, em especial o conceito de direitos sexuais e a eliminação da discriminação com base em orientação sexual. É importante dizer que propostas neste sentido não vinham apenas das ongs mas estavam na pauta de várias delegações como a África do Sul, Estados Unidos, Canadá, Austrália, Nova Zelândia, Turquia e, mais especialmente a União Européia cuja Convenção de Direitos Humanos conta com uma referência explícita a não discriminação por razões de orientação sexual. Entretanto, ao longo do processo também tiveram lugar fortes resistências em relação a questões aparentemente menos polêmicas como violência contra as mulheres, ratificação da Convenção contra todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (Cedaw) e seu Protocolo Opcional, cotas de participação política e fortalecimento dos mecanismos institucionais de promoção dos direitos das mulheres, indicadores de avaliação das políticas. Praticamente não houve área que não tivesse sido objeto de debates acirrados.
No que se refere às tensões Norte-Sul, se repetiram padrões clássicos no que se refere a maior volume de recursos para os países em desenvolvimento e a questão da globalização foi objeto de muito debate. Entretanto, ao contrário do que aconteceu nas conferências anteriores, em Pequim+5 o núcleo duro do confronto Norte-Sul se deu, sobretudo, no âmbito das negociações sobre questões como sanções, medidas coercitivas unilaterais, erradicação das minas anti-pessoais, redução do arsenal nuclear terrorismo. Isto sugere que está em curso senão um deslocamento, ao menos uma combinação entre a velha tensão de natureza econômica com fricções derivadas da hegemonia militar dos países ricos.
Pequim+5 e o Brasil
As negociações de Nova Iorque têm muitos significados para nós brasileiras. Aqui, como em outros países, a Plataforma de Ação tem sido utilizada como instrumento de pressão para implementação de políticas públicas favoráveis às mulheres. As políticas brasileiras em relação a questões controvertidos como saúde reprodutiva, prevenção do HIV/AIDS, educação para sexualidade, em que pesem suas limitações, precederam as recomendações de Pequim. Já em 1995 a posição brasileira foi positiva no sentido de enfrentar debates polêmicos e defender com veemência os direitos das mulheres como direitos humanos, inalienáveis, integrais e indivisíveis. Em 2000, o Brasil foi um dos países que não economizou esforços no sentido de chegar ao fim do processo com um documento consistente em mãos.
Sobretudo, os debates de Nova Iorque e as recomendações que dele resultam são relevantes para as mulheres brasileiras. Um ganho inequívoco de Pequim+5 foi a re-estruturação do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher que volta a ter uma estatuto institucional robusto. Mas falta muito para erradicar a violência sexual e domésticas. Os crimes de honra ou motivados pela paixão continuam impunes. Nem mesmo começamos a debater a questão do estupro marital. Embora os direitos das mulheres estejam garantidos legalmente persiste um abismo entre a lei a vida real. Avançamos bastante em saúde sexual e reprodutiva, mas resta ainda muito a ser feito. Continuamos frente ao desafio de reduzir a disparidade salarial entre homens e mulheres e, sobretudo, de reduzir a desigualdade de renda e oportunidades entre as próprias mulheres.
Um dos debates mais candentes da semana passada dizia respeito a armas e armamentos. Algumas posições afirmavam que os grandes arsenais nucleares são os que tem impactos mais negativos sobre a vida das mulheres, na medida em que consomem recursos que poderiam ser utilizados em políticas sociais. Já outras posições argumentavam que o tráfico ilícito de armas leves tinha impactos mais dramáticos sobre as mulheres e crianças pois constituía uma ameaça cotidiana. Não resta dúvida que um mundo sem armas nucleares deve ser parte inegociável de nosso projeto político. Entretanto a absurda morte de Geisa na Rua Jardim Botânico, no dia 12 de junho, nos diz que reduzir o acesso a armas leves e coibir seu contrabando e venda ilegal é uma medida urgente para garantir o bem estar e o direito à vida das mulheres brasileiras. Nunca é demais lembrar que estas são medidas que estão ao alcance do nosso poder de decisão e ação.
* Sônia Corrêa é antropóloga, membro do Conselho Diretor da Comissão de Cidadania e Reprodução (CCR) e da Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (ABIA), além de representar a Comissão Nacional de População e Desenvolvimento na Comissão Intersetorial de Saúde da Mulher, instância assessora do Conselho Nacional de Saúde.
Resultado das negociações | |||
O documento final condena a violência doméstica e sexual, incluindo o estupro marital, os crimes de honra, o estupro sistemático em situação de guerra e conflito armado; recomenda a ratificação do Protocolo Opcional da Cedaw e faz menção à eliminação e punição da discriminação racial. Além disso, faz recomendações quanto à erradicação do analfabetismo feminino, à redução da pobreza e ao fortalecimento de políticas públicas para a promoção dos direitos das mulheres. |
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